ENTRE MAÇÃS, DETETIVES E FEMINISMO: REPRESENTAÇÃO DA MULHER FEMINISTA NO ROMANCE CARTAS NA MESA DE AGATHA CHRISTIE



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Transcrição:

ENTRE MAÇÃS, DETETIVES E FEMINISMO: REPRESENTAÇÃO DA MULHER FEMINISTA NO ROMANCE CARTAS NA MESA DE AGATHA CHRISTIE Juliana Maia Mendes * Durval Muniz de Albuquerque Júnior (Orientador) ** 1 As lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, o seu domínio. 1 As lutas de representações, tal como denominou Roger Chartier, muito nos mostra acerca dos conflitos e dos mecanismos de poder utilizados para estabelecer grupos e suas visões de mundo sobre outros. O gênero, categoria ainda recente na historiografia ocidental, esteve presente entre tantas dessas disputas durante a História, na qual a construção do masculino e feminino determinou os lugares, ações e papeis que cabiam a cada sexo. * ** Graduanda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professor titular do departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 1 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988. p. 17.

Às reações a estes modelos se percebem contrarreações. Assim ocorreu com as lutas das mulheres, contrarreação percebida claramente nos movimentos antissufragistas europeus e norte-americanos do início do século XX. Para tentar combater o movimento sufragista, os veículos de informação e publicidade foram tomados por propagandas que buscavam difundir a ideia de que o sufrágio feminino traria a destruição da família e má-educação dos filhos; uma vez que, as mulheres deixariam o seu lugar natural e de direito, a casa, para tomar o dos homens, abandonando suas obrigações domésticas e maternas. Ao mesmo tempo, foi sendo construída a imagem da suffragette, aquelas que lutavam pelo voto feminino, como uma mulher solteira e mal-amada, representação esta que posteriormente se estendeu às feministas. Ela seria feia, masculinizada e solitária, e era seu desgosto e inveja que promovia o desejo de ocupar o lugar dos homens. As primeiras décadas do século XX também presenciaram revoluções no ambiente artístico, com o modernismo trazendo a tona inúmeras e diferentes expressões nas artes plásticas, na música e no cinema, por exemplo. Foi nesse período, também, que as chamadas artes de massa conquistaram sua hegemonia cultural cada vez mais inegável 2, proporcionando um boom ao romance policial, gênero basicamente britânico que teve como pioneira a autora Agatha Christie. 2 Agatha Christie, que viveu entre 1890 e 1976, publicou mais de oitenta livros, sendo, a maioria, romances policiais, algumas peças, coletâneas de contos, autobiografias e romances. É a autora mais publicada de todos os tempos, ultrapassou a incrível marca de dois bilhões de livros vendidos em inglês e teve suas obras traduzidas para mais de cinqüenta línguas. Com um estilo de escrita e gênero bastante atraente ao grande público o de 1920 até o dos dias atuais ela conquistou fãs em todo mundo e suas criações alcançaram pessoas de diferentes idades, gêneros e classes. Este foi motivo pelo qual escolhi uma de suas obras para destacar como se construiu a representação da mulher feminista e fomentou um estereótipo que persiste até os dias atuais, mesmo que em sociedades diferentes daquela Inglaterra da primeira metade do século XX. 2 HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 192.

Este artigo trará a análise de uma versão do romance Cartas na Mesa : a edição brasileira da Editora Record, de 1987, no formato de livro de bolso publicado em papel jornal. O suporte é um indicador do objetivo e função da obra, entretenimento barato e de fácil acesso às massas, por isso produzido em material econômico, pouco resistente. Por se tratar de uma tradução, passível de modificações (extremas, inclusive), pretendo durante o continuar da pesquisa analisar outras versões brasileiras e também inglesas. No presente texto, porém, me detenho na análise da propagação e manutenção do estereótipo da mulher feminista, relacionando-os à recepção e apropriação por parte dos leitores - e todos aqueles que deixaram sua marca na edição da Record, como os editores, por exemplo. Cartas na Mesa foi originalmente publicado em 1936, numa Inglaterra que havia estabelecido o voto feminino há quase duas décadas e onde as mulheres já tinham conquistado o direito à vida pública, mesmo que limitada, sendo a própria autora um exemplo de tais vitórias. Apesar disso, Agatha Christie passa à sua trama os estereótipos que carrega, dentre eles aquele herdado das propagandas antissufragistas. Tendo como título original Cards on the Table, a história se dá a partir do assassinato de Mr. Shaitana, um rico estrangeiro e excêntrico colecionador. Suas coleções vão desde armas, jóias, todo tipo de objetos exóticos, até... assassinos. Em uma noite, ele planeja um jantar para oito pessoas. Convida, então, quatro dos maiores peritos do crime na Inglaterra, dentre eles o famoso detetive belga Poirot, e a grande autora de romances policiais Ariadne Oliver. Para completar, outros quatro convidados, aparentemente inocentes e fora de suspeitas, comparecem. Lá, Mr. Shaitana dá a entender o motivo da reunião: juntar investigadores e assassinos. Porém, algo que o insensato colecionador não previu acontece, ele é assassinado por um de seus próprios punhais de coleção, e a noite termina com a descoberta do seu corpo e o início da investigação para descobrir o assassino. Quem dos quatro convidados é o culpado? Em meio a trama de suspense e investigação, Christie monta seus personagens e, apesar de não ser seu objetivo, transparece suas concepções do mundo e da sociedade em que vive, proporcionando um relato sobre seu tempo. 3 A arte, e isto inclui a literatura, sendo um produto social, está sujeita a influências de mãos duplas. Como afirma Antônio Cândido,

[...] para o sociólogo moderno, ambas as tendências tiveram a virtude de mostrar que a arte é social nos dois sentidos: depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais. 3 Portanto, ao criar uma das personagens principais do romance como uma reconhecida feminista que aparece, não só neste, mas em outros cinco, Agatha Christie deixa que se manifeste em sua escrita o estereótipo que a mulher feminista carrega já há algumas décadas. Ariadne Oliver tem como principais características seu vício por maçãs e o fato de ser uma exaltada feminista. Ela é uma senhora de meia idade bem sucedida e conceituada, porém sua inteligência não supera o fato de ser desordenada, pouco racional e que visivelmente despreza os homens de maneira geral. Sua apresentação no livro se inicia da seguinte forma: Mrs. Ariadne Oliver era extremamente famosa como uma das maiores escritoras de histórias de detetive e sensação. Escrevia artigos loquazes, embora não especialmente gramaticais, sobre A tendência do criminoso, Célebre crimes passionais, Homicídio por amor versus homicídio por lucro. Era também exaltada feminista e, quando algum crime importante ocupava as colunas da imprensa, uma entrevista com Mrs. Oliver tornava-se imprescindível. Afirmava-se, inclusive, que Mrs. Oliver havia dito, Ah, se uma mulher ocupasse a chefia da Scotland Yard! Acreditava piamente na intuição feminina. Quanto ao resto, [...]. 4 4 Sua famosa frase, Ah, se uma mulher ocupasse a chefia da Scotland Yard!, é repetida diversas vezes e está presente em todos os livros em que Oliver ocupa papeis centrais. Além disso, ao, repetidamente, retratá-la exasperada pela suposta ineficiência masculina, acaba por reforçar a idéia do sentimento de superioridade que muitas vezes parece sentir a personagem em relação ao sexo oposto. Os homens, os homens..., passa a história inteira suspirando impaciente a escritora. Assim sendo, percebe-se uma forma específica de representação da mulher feminista que deu origem aos estereótipos personificados por Ariadne Oliver. Sendo uma representação, e retomando a citação inicial que alude às guerras de 3 4 CÂNDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Nacional, 1985. p. 20. CHRISTIE, Agatha. Cartas na Mesa. Rio de Janeiro: Record, 1987. p. 15.

representação, as características invocadas, e suas relações com a imagem divulgada pelas propagandas antissufragistas e antifeministas, tomam lugar no campo de batalha. Desta forma, a noção de representação [...] não distancia nem do real nem do social. Ela ajuda os historiadores a se desligarem de sua bem fraca ideia do real como escrevia Foucault, colocando em destaque a força das representações, sejam elas interiorizadas ou objetivadas. Elas não são simples imagens, verídicas ou enganosas, de uma realidade que lhes seria exterior. Possuem uma energia própria que convence que o mundo, ou o passado, é realmente o que elas dizem que é. Produzidas em suas diferenças pelas desigualdades que fraturam as sociedades, as representações, por sua vez, as produzem ou as reproduzem. 5 Ou, como descreve Pesavento, As representações construídas sobre o mundo não só se colocam no lugar desse mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade e pautem a sua existência. São matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de força integradora e coesiva, bem como explicativa do real. Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a realidade. 6 Sendo assim, em meio às lutas, não só as políticas ou sociais mas, aqui cabe reforçar, as de representação, criou-se uma sólida imagem do que seria uma mulher e uma mulher feminista. Às mulheres estão reservados os sentimentos, exacerbados e, desta forma, seriam emotivas e não teriam capacidade de tomar decisões. A mulher feminista, então, era masculinizada, tornando-se uma mulher que queria ser homem, mas que não tem capacidade biológica para tal (e os discursos científicos que persistiram durante os séculos XIX e XX trabalhavam para confirmar a suposta inferioridade natural do sexo frágil ). À mulher cabe o papel de mãe e esposa, mantenedora do lar e da família; à feminista, que nega sua função materna, resta apenas a inveja do falo, pois que por serem feias e chatas, quase sempre são retratadas como solteironas rabugentas e mal-amadas, senão lésbicas. A propaganda foi tão forte durante a primeira parte do século XX que essa representação se solidificou e criou estereótipos tão duradouros quanto danosos. Já que, como alerta Rago em relação ao exemplo 5 5 6 CHARTIER, Roger. Apêndice: Aula inaugural do Collège de France. In: ROCHA, João Cezar de Castro (Org.). Roger Chartier A força das representações: história e ficção. Chapecó, SC: Argos, 2011. p. 281. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 39.

brasileiro, mas que se encaixa nesta análse, é impressionante como esse processo de eliminação da historicidade dos fenômenos, ou de naturalização pode ser claramente percebido na relação estabelecida com vários movimentos sociais [...]. 7 Christie, ao nos trazer Ariadne Oliver, seu exemplo de feminista, reforça o que foi anteriormente discutido. A amante de maçãs nos traz basicamente aquilo que o estereótipo retrata, mesmo que em uma personagem bem-sucedida. Porquanto, seu sucesso na carreira de escritora não impede de ser abobalhada e pouco racional, sempre sendo a que não é levada a sério por ninguém. Oliver se gaba por ser mulher, repete que é o gênero feminino que carrega a inteligência e intuição; mas, enquanto isso, debocham dela por estar sempre a quilômetros da verdade, ao contrário do que imagina. A escritora é motivo de piadas, por ser convencida e atrapalhada, ou de exasperação, já que se torna até entediante tratar com alguém por demais tolo e impressionável. Além, é claro, das descrições físicas até que era bonita, mas negligente e desarrumada, e de como se relaciona solteira e solitária. Enfim, esta pesquisa, iniciada há alguns meses, ainda está em processo. Porém, ficou bastante claro no decorrer dos estudos que ao se trabalhar com literatura, história da leitura e representação é necessário cuidados para evitar anacronismos, generalizações e tantos outros problemas, além de ser uma área tão rica que se torna multidisciplinar. Até esse ponto me parece válida minha hipótese sobre o papel da literatura, principalmente daqueles gêneros de grande aceitação do público, na construção e reforço de representações. Cabe, nesse sentido, retomar um conceito da psicologia social, o de Representação Social: 6 A teoria de Representações Sociais (R.S.), como se sabe, procura dar conta de um fenômeno, sobretudo urbano, em que o homem manifesta sua capacidade inventiva para assenhorar-se do mundo por meio de conceitos, afirmações e explicações, originados no dia-a-dia, durante interações sociais, a respeito de qualquer objeto, social ou natural, para torná-lo familiar e garantir comunicação no interior de grupo e, também, interagir com outras pessoas e grupos. 8 7 8 RAGO, Margareth. Feminizar é preciso: por uma cultura filógina. São Paulo em perspectiva, São Paulo, v. 15, n. 3, p. 60, 2001. SOUZA FILHO, Edson Alves de. Análise de Representações Sociais. In: SPINK, Mary Jane P. (Org.). O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 109.

Os mecanismos da representação social se mostram bastante abertos à influência do entretenimento de massa, pois que é construção de conceitos e conhecimento no dia-a-dia. Aprendizado diferente do científico, mas que constrói discursos e molda o mundo tão quanto, ou mais eu ousaria dizer?, que este, ao dar forma ao cotidiano dos indivíduos. E é este tipo de literatura de amplo acesso, mais do que os grandes cânones ou os clássicos acadêmicos, que se faz presente em tantas e diferentes vidas. Essa característica também demonstra seu papel na construção e perpetuação de estereótipos, como o da mulher feminista. Além disso, outras questões, como as referentes especificamente a construções de discurso e o modo como este é utilizado nas reafirmações de poder e opressão, me foram postas e suscitaram expansões do objetivo inicial da pesquisa. O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos; e, quando tudo pode, enfim, tomar a forma do discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as coisas, tendo manifestado ou intercambiado seu sentido, podem voltar à interioridade silenciosa da consciência de si. 9 7 Assim, buscando em uma literatura de entretenimento características que são apreendidas até hoje, percebe-se a construção de um discurso acerca da questão de gênero, estabelecendo o que é o ser mulher e o ser feminista. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CÂNDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Nacional, 1985. CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988. DUBY, Georges; PERROT, Michelle (Orgs.). História das Mulheres no Ocidente: o século XX. Porto: Afrontamento, 1991. vol. 5. FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2011. HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 9 FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2011. p. 49

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003 RAGO, Margareth. Feminizar é preciso: por uma cultura filógina. São Paulo em perspectiva, São Paulo, v. 15, n. 3, p. 58-66, 2001. ROCHA, João Cezar de Castro (Org). Roger Chartier A força das representações: história e ficção. Chapecó, SC: Argos, 2011. SPINK, Mary Jane P. (Org.). O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 1995. 8