Mielomeningocele: tratamento cirúrgico e resultados



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Transcrição:

0021-7557/95/71-06/317 Jornal de Pediatria Copyright 1995 by Sociedade Brasileira de Pediatria Jornal de Pediatria - Vol. 71, Nº6, 1995 317 ARTIGO ORIGINAL Mielomeningocele: tratamento cirúrgico e resultados Myelomeningocele : Surgical treatment and results J. Francisco Salomão 1, José Alvaro B. Pinheiro 2, João G.S. Carvalho 3, Renê D. Leibinger 3, Gianne Lucchesi 3, Vera Bomfim 4 Resumo Os autores estudaram retrospectivamente 72 casos de mielomeningocele tratados em um hospital pediátrico do Rio de Janeiro. 65 (90,2%) lesões localizavam-se nos segmentos inferiores da coluna vertebral, e 87,5% dos pacientes necessitaram de derivações ventriculares para controle da hidrocefalia. Infecções de derivações ventriculares foram três vezes mais freqüentes em portadores de spina bifida cística que no restante da população de hidrocéfalos tratados na instituição. Houve grande incidência de complicações pós-operatórias relacionadas a infecções e necrose de ferida cirúrgica. Onze pacientes (15,3%) desenvolveram sinais e sintomas relacionados à malformação de Chiari do Tipo II. A mortalidade foi 8,3% e, na maioria absoluta dos casos, associada à malformação de Chiari. J. pediatr. (Rio J.). 1995; 71(6):317-321: disrafismo espinhal, hidrocefalia, mielomeningocele, malformação de Chiari II, spina bifida. Abstract The authors made a retrospective study of 72 patients with myelomeningocele treated at a pediatric hospital in Rio de Janeiro, Brazil. 65 (90.2%) lesions involved the inferior segments of the spine and 87.5% of the patients needed shunt procedures for hydrocephalus control. Shunt infections in spina bifida cystica patients were more frequent than in any other group of hydrocephalic patients treated at the institution. There was a great incidence of postoperative complications such as wound infections and skin necrosis. 11 (15.3%) patients developed signs and symptoms related to Chiari II malformation. The overall mortality was 8.3%, and in most of the cases, ascribed to the Chiari malformation. J. pediatr. (Rio J.). 1995; 71(6):317-321: spinal dysraphism, myelomeningocele, spina bifida, hydrocephalus, Chiari II malformation. Introdução A mielomeningocele é a mais complexa de todas as malformações congênitas do Sistema Nervoso Central compatível com sobrevida prolongada, associando anomalias da coluna vertebral, encéfalo, nervos periféricos e sistema ósteo-articular 1. Ao contrário do que se poderia supor, grande número dos portadores do defeito têm coeficiente intelectual normal ou próximo à normalidade 2,3,4,5. A análise da história natural da spina bifida cística revela que a maioria das complicações fatais ocorrem durante o primeiro ano de vida, a maior parte relacionadas a sinais e 1. Chefe do Serviço de Neurocirurgia Pediátrica 2. Médico Residente do Serviço de Neurocirurgia 3. Neurocirurgiões 4. Pediatra. Coordenadora do Grupo de Spina Bifida. sintomas de comprometimento da junção bulbo-cervical, decorrentes da malformação de Chiari do Tipo II. O objetivo deste relato é analisar o resultado e as complicações cirúrgicas das mielomeningoceles tratadas no Instituto Fernandes Figueira (IFF - Fiocruz). Pacientes e Métodos Características da população: foram analisados, retrospectivamente, os prontuários de todos os portadores de mielomeningocele atendidos no IFF-Fiocruz, entre janeiro de 1987 e dezembro de 1993 (n=72). Desses pacientes, 41 (56,9%) eram do sexo feminino, e 50% dos casos estudados nasceram na própria Instituição. Os demais foram a ela referidos em períodos de tempo variável entre poucas horas e 11 anos após o nascimento. 317

318 Jornal de Pediatria - Vol. 71, Nº6, 1995 Métodos: foram registrados o estado da lesão por ocasião da cirurgia (rota, integra ou epitelizada), bem como sua localização, tempo de vida por ocasião da correção do defeito (até 48h e após 48h de nascido), presença ou não de complicações infecciosas anteriores à cirurgia (principalmente sepsis e ventriculite), bem como a presença ou não de ventriculomegalia ao nascer, constatada por ultra-sonografia transfontanela ou tomografia computadorizada. Foram também anotadas as complicações observadas no pós-operatório atribuídas à correção cirúrgica da mielomeningocele (ventriculite pós-operatória, infecções de ferida operatória, necrose significativa de pele, septicemia, etc.) e dos procedimentos de derivação ventricular realizados naqueles pacientes que desenvolveram hidrocefalia (infecção do sistema válvula e complicações mecânicas). Foram também registrados os sinais e sintomas relacionados à malformação de Chiari do tipo II e as medidas adotadas para seu tratamento. Estabeleceu-se o período de acompanhamento de 1 ano por dois motivos: 1) por dispor-se de follow-up integral de todos os sobreviventes neste intervalo de tempo; 2 ) por ser este o período em que ocorre a maioria das complicações relacionadas ao tratamento cirúrgico. Resultados Mielomeningocele: tratamento cirúrgico... - Salomão JF, et al. Localização e estado das lesões: todos os 72 pacientes apresentavam uma única lesão disráfica e 65 (90,2%) localizavam-se nos segmentos inferiores da coluna vertebral, da região dorso-lombar até o sacro (Figura 1). 28 lesões (38,8%) estavam rotas por ocasião do ato operatório, 34 (47,2%) íntegras e 5 (6,9%) epitelizadas. Em outros 5 casos, não foi possível obter informações sobre o seu estado (Figura 2). Estado pré-operatório: em 5 recém-nascidos (6,9%), ventriculite foi diagnosticada por exames de LCR, antes que qualquer procedimento cirúrgico fosse realizado, isolando-se germes Gram negativo em 4. Em todos esses, a lesão estava rota e apenas um paciente havia sido inicialmente tratado no IFF. Correção das lesões: 70 pacientes tiveram suas lesões corrigidas. Em um, a cirurgia foi contra-indicada pela presença de outras malformações congênitas, consideradas incompatíveis com a vida. Em outro, os familiares não autorizaram a correção do defeito, concordando, no entanto, com a instalação de derivação ventrículo-peritoneal. 33 portadores do defeito (47,1%) tiveram as lesões corrigidas nas primeiras 48h de vida, e 35 (50%), após este período. Duas paciente foram tardiamente referidas ao Serviço com lesões epitelizadas, e a correção foi feita aos 6 meses e aos 11 anos de idade, respectivamente. Complicações pós-operatórias: as complicações pósoperatórias relativas à correção da mielomeningocele estão relacionadas na Tabela 1. Infecções de ferida cirúrgica foram observadas em 16 (22,8%), necrose significativa de pele em 7 (10%), ventriculite em 5 (7,1%). Sepsis e fístula de líquido céfalo-raquidiano ocorreram em igual número de pacientes (n=3 ou 4,3%). Toraco-lombar 24,6% Segmentos Sacro e Toraco-lombares 90,3% Lombar 33,8% Lombo-sacro 35,4% Sacro 6,2% Figura 1 - Localização das lesões em 72 pacientes

Mielomeningocele: tratamento cirúrgico... - Salomão JF, et al. Jornal de Pediatria - Vol. 71, Nº6, 1995 319 Rotas 38,9% Não Rotas 47,2% Sem Informações 6,9% Epitelizadas 6,9% Mortalidade: dos 6 pacientes (8,3%) que vieram a falecer no primeiro ano de acompanhamento, 5 (83,3%) apresentaram, em algum momento, sinais e sintomas relacionados à disfunção bulbar atribuída à malformação de Chiari do tipo II. As causas de morte foram crises de apnéia refratárias às medidas de ressuscitação (n=2); sepsis conseqüente a pneumopatia (n=1); infecção de shunt (n=1) e hemorragia intracraniana complicando instalação de drenagem ventricular externa (n=1). Todos os 3 pacientes submetidos à descompressão cranio-vertebral desenvolveram sinais e sintomas durante o primeiro trimestre de vida e não responderam à instalação de drenagem ventricular. Eventualmente, todos vieram a falecer. Os 6 outros portadores dessa malformação beneficiaram-se acentuadamente com implantação ou revisão do sistema de drena- Figura 2 - Estado das lesões em 72 pacientes por ocasião do nascimento Hidrocefalia e complicações relacionadas à instalação de derivações ventriculares: 63 pacientes (87,5%) evoluíram com sinais de hidrocefalia. Em 56 (77,7%), a ventriculomegalia foi constatada por ocasião do nascimento e apenas 9 pacientes (12,5%) não desenvolveram dilatação ventricular que necessitasse implantação de derivações ventriculares. Dois pacientes faleceram antes da implantação do sistema de derivação. Dos 61 operados, 22 (36%) apresentaram complicações decorrentes da instalação do shunt, sendo a mais freqüente a infecção do sistema de derivação, observada em 13 pacientes (21,3%). Em 9 pacientes (14,8%), registraram-se disfunções mecânicas do sistema de derivação, a maioria (n= 7) devido à obstrução ou posicionamento defeituoso do catéter proximal. Malformação de Chiari II sintomática: 11 dentre 72 pacientes (15,3%) desenvolveram sinais e sintomas neurológicos relacionados à malformação de Chiari do tipo II. Cinco foram tratados com derivações ventriculares, 3 com descompressão cranio-vertebral, 1 com revisão do sistema de drenagem e 1 com instalação de drenagem ventricular externa. Um paciente faleceu em decorrência de apnéia irreversível, antes que qualquer medida terapêutica fosse tomada (Tabela 2). Tabela 1 - Complicações - 70 pacientes Tabela 2 - Chiari II sintomático - Tratamento D.V.P 5 Descompressão 3 Revisão D.V. 1 D.V.E. 1 Não tratados 1 gem ventricular. O único óbito não relacionado à malformação de Chiari deveu-se a sepsis conseqüente à necrose e infecção de pele após correção de extenso defeito dorsolombar (Tabela 3). Os 66 pacientes restantes foram encaminhados ao ambulatório de neurocirurgia para acompanhamento. Tabela 3 - Mortalidade - 6/72 pacientes (8,3%) Chiari II Insuficiência respiratória 2 Sepsis (pneumopatia) 1 H. Ventricular 1 Infecção D.V.P. 1 Infecção de ferida operatória (Sepsis) 1 Tipo de complicação n % Infecção de ferida 16 22,8 Necrose de pele 7 10,0 Ventriculite 5 7,1 Fístula LCR 3 4,2 Sepsis 3 4,2 Total 34 47,2 Discussão A tendência atual é que portadores de mielomeningoceles sejam tratados agressivamente 1,4,5,6. Essa filosofia reflete a evolução dos conceitos relacionados à postura médica frente a portadores de spina bifida cística, não mais

320 Jornal de Pediatria - Vol. 71, Nº6, 1995 se justificando a adoção de critérios seletivos, conforme os propostos pelo grupo de Sheffield há mais de 20 anos 7. A análise de 407 portadores de mielomeningocele, em 1964 8, revela que o número de pacientes que teve o defeito corrigido correspondeu aproximadamente à terça parte da população estudada, que a maioria morreu de infecções intracranianas e que a possibilidade de um recém-nascido alcançar os 12 anos de idade era de 29%. A introdução de antibióticos mais potentes, bem como o desenvolvimento e posterior aperfeiçoamento dos sistemas de derivação ventricular, levaram a crescentes índices de sobrevivência destes pacientes e, em parte, motivaram a adoção de critérios de seleção, cujo objetivo era oferecer tratamento apenas àqueles considerados de melhor prognóstico. Desta maneira, a associação de paraplegia, hidrocefalia volumosa, mielocifose e defeitos congênitos era responsabilizada pelo baixo desempenho intelectual destes pacientes 7. Nesta série, publicada em 1971 por Lorber 7, a adoção destes critérios resultou em óbito de todos os pacientes não elegíveis para tratamento cirúrgico em um período de 9 meses. Esses resultados não foram, no entanto, reproduzidos por outros autores, e a conseqüência foi um considerável número de sobreviventes com qualidade de vida extremamente comprometida 2,5. Uma análise comparativa de séries selecionadas e não selecionadas demonstrou que o maior limitativo ao desempenho intelectual dos pacientes não era a hidrocefalia, mas a ocorrência de infecções do Sistema Nervoso Central e hemorragia intracerebral 3,6,9,10 ; e que a mortalidade entre ambas não era significativamente diferente 2,3,6. Essa constatação levou a maioria dos centros médicos a abandonar a seleção de pacientes, oferecendo tratamento a todos os portadores do defeito, excetuando-se aqueles em condições pré-agônicas ou portadores de outras malformações incompatíveis com a vida. Em nossa série, conforme já citado, em apenas um paciente as malformações associadas foram consideradas incompatíveis com a vida. Em outros pacientes, a existência de malformações associadas, aqui não relacionadas por dificuldades metodológicas, não influenciaram os resultados cirúrgicos e tampouco foram relacionadas aos óbitos porventura ocorridos. A maioria das séries reporta uma maior possibilidade de infecções do Sistema Nervoso Central quando a lesão é corrigida após 48 h de vida 10,11. McLone e cols. 10 observaram uma incidência de ventriculite de 37% em crianças cujo defeito fora tardiamente corrigido, contra 7% nos precocemente operados, motivo pelo qual a cirurgia deve, sempre que possível, ser efetuada com a maior brevidade, apesar de alguns acreditarem que demora superior a 48h tenha pouca influência na incidência de complicações 12. Deiscência de sutura, infecção de ferida e fístula incisional de LCR são complicações pós-operatórias reconhecidas pela maioria dos autores 1,2,13,14 e, em geral, conseqüência Mielomeningocele: tratamento cirúrgico... - Salomão JF, et al. da extensão da lesão e da técnica cirúrgica utilizada. A incidência de ventriculite após correção das lesões pode variar entre 6% e 40% 12,13,15, e, caracteristicamente, os índices mais elevados têm sido associados à demora na correção do defeito 1,2,10, apesar destas evidências serem contestadas por alguns 12. Embora intervenção cirúrgica de emergência raramente seja necessário, a maioria concorda que o defeito deva ser corrigido nas primeiras 48h de vida 1,4,5,13,14. A maioria absoluta dos portadores de mielomeningocele têm hidrocefalia associada e, em mais de 70% dos casos, há necessidade de instalação de derivações ventriculares 2,3,4,13,14. A hidrocefalia ocorre geralmente no contexto da malformação de Chiari do Tipo II, em função de um ou mais mecanismos que incluem obstrução dos orifícios de saída do 4º ventrículo, bloqueio do fluxo liquórico por impactação da porção inferior da fossa posterior no nível do foramen magno, estenose secundária do aqueduto cerebral e compressão de seios venosos da dura mater 4. Os dados de nossa série estão de acordo com os de vários autores, indicando que infecções de derivações ventriculares em portadores de mielomeningocele são muito mais freqüentes que no restante da população de hidrocéfalos 1,2,4,5,13,14. A incidência de infecções de DV s nos portadores de spina bífida por nós estudados foi 21,3%, três vezes maior que a média do Serviço 16,17. Julgamos importante enfatizar que infecções do sistema nervoso constituem a principal causa de comprometimento intelectual em portadores de mielomeningocele 2,10. A mortalidade operatória registrada na literatura varia entre 2% e 19% 2,13,18,19, e uma das mais elevadas foi, curiosamente, relatada em uma série em que critérios seletivos foram observados 19. McLone e cols. 2,3 relatam uma mortalidade global de 14% em follow-up de 3,5 a 7 anos. A maioria das mortes relaciona-se, como é bastante evidente em nossa série, a intercorrências relacionadas à malformação de Chiari do tipo II 1,2,5,13,14,20. Admite-se que 6 a 32% dos portadores de mielomeningocele, em um momento ou outro, apresentem manifestações neurológicas relacionadas à malformação de Chiari II 2,13,21. Em recém-nascidos e lactentes, o estridor laríngeo é a mais freqüente manifestação clínica desta malformação. Paralisia de cordas vocais, dificuldade de sucção, regurgitamento de alimentos pelas fossas nasais, cianose, retrocollis, opistótono, sinais piramidais e apnéia podem acompanhar o quadro. O fenômeno parece ser mais severo em portadores de lesões lombo-sacras baixas com motilidade preservada em membros inferiores e que, a início, não apresentam hidrocefalia importante 2, escapando assim a eventuais critérios seletivos. O tratamento dessa malformação é bastante controverso, com alguns acreditando que o quadro se resolva apenas com medidas de terapia respiratória 13, e outros aconselhando imediata descompressão da fossa posterior, ao primeiro sinal de comprometimento da junção bulbo-cervical 21. Uma terceira alternativa propõe que inicialmente se contemple o

Mielomeningocele: tratamento cirúrgico... - Salomão JF, et al. controle da hidrocefalia, com instalação de sistemas de drenagem ou revisão de sistemas previamente implantados 4,13,20. Em nossa série, observamos que a descompressão, realizada em 3 pacientes, induziu melhora neurológica que, no entanto, foi insuficiente para prevenir complicações mais tardias como pneumonias por aspiração e sepsis que, posteriormente, determinaram o óbito de todos esses pacientes ainda no primeiro ano de vida. McLone 2, coloca em questão o valor da descompressão de fossa posterior, visto que, a despeito da melhora imediata observada em 4 casos assim tratados, 2 faleceram e 1 sobrevive com acentuados problemas. Este autor acredita que para se advogar a descompressão de fossa posterior em pacientes sintomáticos, um índice de sucesso superior a 2/3 deva ser demonstrado. Recuperação dramática foi observada em nossos pacientes tratados com derivação ventricular ou revisão do sistema de drenagem na vigência de sinais e sintomas relacionados à malformação. Em conclusão, observamos elevado índice de complicações pré e pós-operatórias em portadores de mielomeningocele, com uma incidência de infecção muito superior à observada em outros procedimentos cirúrgicos sobre o Sistema Nervoso Central. Por sua vez, os sinais e sintomas relacionados à malformação de Chiari foi responsável, direta ou indiretamente, pela absoluta maioria dos óbitos observados durante o primeiro ano de vida destes pacientes. Referências bibliográficas 1. Reigel DH, Rotenstein D. Spina bifida. In Cheek WR, Marlin AE, McLone DG, Reigel DH, Walker ML (eds.) Pediatric Neurosurgery. Surgery of the developing nervous system. 3ª ed. Philadelphia; Saunders, 1994:51-76. 2. McLone DG - Results of treatment of children born with a myelomeningocele. Clin Neurosurg 1983; 30:407. 3. McLone DG - Continuing concepts in management of spina bifida. Pediatr Neurosurg 1992; 18:254-256. 4. Rekate HL. Neurosurgical management of the newborn with spina bifida. In Rekate HL (ed) Comprehensive management of spina bifida, Boca Raton, Florida: CRC Press; 1991:2-28. 5. McLone DG. Treatment of myelomeningocele : Arguments against selection. Clin Neurosurg 1986; 33:359-370. 6. McLone DG, Naidich TP. Myelomeningocele : outcome and late complications. in McLaurin RL, Schut L, Venes JL, Epstein F (eds) Pediatric Neurosurgery. Surgery of the Developing Nervous System 2ª ed. Philadelphia: Saunders; 1989: 53-70. 7. Lorber J. Results of treatment of myelomeningocele. An analysis of 524 unselected cases, with special reference to possible selection for treatment. Dev Med Child Neurol 1971; 13:279. Jornal de Pediatria - Vol. 71, Nº6, 1995 321 8. Laurence KM. The natural history of spina bifida cystica. Detailed analysis of 407 cases. Arch Dis Child 1964; 39, 41-47. 9. Hunt GM, Holmes AE. Factors relating to intelligence in treated cases of spina bifida cystica. Am J Dis Child 1981; 130:823-355. 10. McLone DG, Czyzewski D, Raimondi AJ, Sommers RC. Central nervous system infections as a limiting factor in the intelligence of children with meningomyelocele. Pediatrics 1982; 70:338-342. 11. McLone DG, Dias MS. Complications of myelomeningocele closure. Pediatr Neurosurg 1991-92; 17:267-273. 12. Charney EB, Weller SC, Sutton LN, Bruce DA, Schut LB. Management of the newborn with myelomeningocele : Time for a decision-making process. Pediatrics 1985; 75:58-64. 13. McCullough DC. Meningomyelocele: Surgical treatment and results. In Raimondi AJ, Choux M, Di Rocco C (eds) The Pediatric Spine I, Springer, New York; 1989:160-178. 14. McCullough DC, Johnson DL: Myelomeningocele repair: Technical considerations and complications. Concepts in Pediatric Neurosurgery 1988; 8:29-40. 15. Fernandez-Serrats AA, Guthkelch AN, Parker SA. The prognosis of open myelocele with a note on a trial of Laurence s operation. Dev Med Child Neurol 1967; 13 (suppl): 65-74. 16. Salomão JF, Leibinger RD, Menezes MLB, Carvalho JGS. Infecção nas derivações ventriculares em uma população pediátrica. Arq Bras Neurocirurg 1993; 12:255-264. 17. Salomão JF, Shinzato IG, Leibinger RD, Carvalho JGS : Estudo retrospectivo do desempenho de derivações ventrículo-peritoneais em relação ao ponto de inserção cefálico. Resultados a curto e médio prazo. J Bras Neurocirurg 1992; 3 (4):125-128. 18. Ames MD, Schut L. Results of treatment of 171 consecutive myelomeningoceles - 1963-1968. Pediatrics 1972;50:466-471. 19. Lorber J, Salfield SAW. Results of selective treatment of spina bifida cystica. Arch Dis Child 1981; 56:822-830. 20. Epstein F - Meningomyelocele: Pitfalls in early and late management. Clin Neurosurg 1983; 30:366-383. 21. Park TS, Hoffman HJ, Hendrick EB, Humphreys RP. Experience with surgical decompression of the Arnold-Chiari malformation in young infants with myelomeningocele. Neurosurgery 1983; 13:147-152. Endereço para correspondência: J. Francisco Salomão Av. N. S. Copacabana, 1018 - apto. 608 CEP 22060-000 - Rio de Janeiro, RJ