Cultura e Desenvolvimento Sustentável A ascensão, nas últimas décadas, do termo sustentabilidade no discurso corrente, político e acadêmico assinala a emergência, na sociedade contemporânea, da percepção crescente e aguda dos limites da razoabilidade das ações do homem no ambiente que o cerca. Entre o mito herdado do século XIX de que a tecnologia e o progresso seriam fiadores do bem estar da sociedade e a constatação da fratura das promessas que acompanhavam essa crença estão experiências históricas trágicas, que colocaram em xeque diferentes dimensões da experiência da modernidade. Cenários de guerras, devastação de paisagens, destruição de antigos modos de vida, massa de homens refugiados, contingentes marginalizados em seus próprios países e a perturbadora perda do sentido de lugar e da identidade decretaram o esgotamento de antigos paradigmas e, sobretudo, assinalaram a falência de um modelo de desenvolvimento, centrado na geração exclusiva de riquezas e em um modus operandi alheio às diversidades dos contextos geográficos, históricos e culturais. Assiste-se, por conseguinte, nos últimos decênios do século XX, uma crise que alcança diferentes esferas da vida social, ganhando contornos globais de crise ambiental, de desenvolvimento, cultural e de valores. Ao desenvolvimento a qualquer preço é contraposta a idéia de desenvolvimento sustentável - expressão empregada primeira vez em 1987, no Relatório Brundtland 1, elaborado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, da ONU. Segundo o referido Relatório sustentabilidade significa suprir as necessidades da geração presente sem afetar a habilidade das gerações futuras de suprir as suas. Assim concebida, a idéia de desenvolvimento sustentável ultrapassou nos anos seguintes os limites das relações entre geração de riqueza e questão ambiental - foco inicial do debate sendo incorporada a uma agenda política mais extensa, a exemplo do desenvolvimento urbano, do turismo e da cultura. No caso da cultura, sua integração ao debate da sustentabilidade é hoje incontestável, embora essa seja uma questão ainda incipiente, imprecisa ou mesmo pouco compreendida. As principais chaves para se pensar as imbricações entre cultura e desenvolvimento sustentável estão explicitadas em dois importantes documentos que deverão nos servir de referência: a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, da Unesco, de 2005, ratificada pelo Brasil em 2007 e o Plano Nacional de Cultura PNC em fase de aprovação no Congresso Nacional. Pode-se dizer que a Convenção de 2005 constitui um divisor de águas. A concepção universalista da cultura, fundada em critérios de excepcionalidade, que havia orientado até então a atuação da Unesco, cede lugar ao reconhecimento da diversidade cultural como patrimônio comum 1 Trata-se do documento Nosso Futuro Comum também conhecido como Relatório Brundtland. 1
da humanidade. Articulada aos direitos humanos, assim como ao principio da diversidade, a cultura é concebida como elemento estratégico no processo de desenvolvimento sustentável. Conforme o texto da Convenção: A diversidade cultural constitui grande riqueza para os indivíduos e as sociedades. A proteção, promoção e manutenção da diversidade cultural é condição para o desenvolvimento sustentável em benefício das gerações atuais e futuras. Formulado em um processo inédito no país, que contou com a participação direta da sociedade, o Plano Nacional de Cultura estabelece como uma de suas diretrizes a ampliação da participação da cultura no desenvolvimento socioeconômico sustentável, considerando que: Economia e desenvolvimento são aspectos da cultura de um povo. A cultura é parte do processo propulsor da criatividade, gerador de inovação econômica e tecnológica. A diversidade cultural produz distintos modelos de geração de riqueza que devem ser reconhecidos e valorizados. O PNC estabelece vínculos entre arte, ciência e economia na perspectiva da inclusão e do desenvolvimento. Ambos os documentos convergem a respeito do papel da diversidade cultural como vetor de desenvolvimento. Adotando uma perspectiva mais pragmática, o PNC enfatiza, sobretudo, as possibilidades econômicas da cultura 2, e traça diretrizes de ações que contemplam, em linhas gerais, a formação e a qualificação do mercado de trabalho e o incentivo à indústria cultural, o que representa um inegável avanço, em se tratando de políticas públicas. Há, no entanto, alguns aspectos na relação entre diversidade cultural e desenvolvimento sustentável que merecem uma análise mais detida. Compreendido para além do mercado e do crescimento econômico, o desenvolvimento estende-se a diferentes esferas da vida; trata-se de desenvolvimento que alcança dimensões humanas, coletivas, subjetivas. Vale lembrar que a palavra sustentar, do latim sustento, significa suportar, suster, defender, proteger, favorecer, manter, conservar, cuidar. Sustentabilidade é a característica ou condição daquilo que é passível de renovar o conjunto de substâncias ou elementos necessários à manutenção, conservação da vida 3. Multidimensional e complexo, o desenvolvimento sustentável no campo da cultura, pressupõe preservar e fomentar a diversidade e a pluralidade, promovendo, ao mesmo tempo o desenvolvimento e a inclusão social. Em lugar da homogeneização de uma cultura globalizada, a reinvenção de identidades coletivas, locais e territoriais em favor de um desenvolvimento integral. Em lugar da exclusão ou destruição de expressões culturais em nome do progresso, a convivência das mais diversas formas de expressão, assim como a participação de todos os atores sociais. 2 SIQUEIRA, Maurício. Sustentabilidade das Políticas Culturais. Disponível em: www. casaruibarbosa.gov.br. 3 Ver ambos os verbetes em Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 2
Preservar a diversidade cultural não é senão proteger e potencializar o capital cultural e as energias criadoras de uma comunidade. Nessa perspectiva, o sentido da preservação presente na idéia de sustentabilidade cultural alinha-se não à idéia de repetição, de engessamento do status quo, mas aos processos que buscam assegurar a integridade de referenciais de uma coletividade que podem ser colocados a serviço de um processo transformador. Há, portanto, uma dimensão política do desenvolvimento cultural sustentável uma ação de impacto coletivo, de caráter transformador e que se projeta para o futuro - assim como uma dimensão ética, a qual se materializa no reconhecimento e respeito ao outro, ao diferente, ao que é diverso culturalmente. Como se vê, a conexão da cultura com o desenvolvimento comporta diferentes arranjos. Além do potencial econômico da cultura geração de emprego e renda - e do papel coadjuvante da cultura no desenvolvimento econômico e social diferentes culturas geram modelos distintos de desenvolvimento trata-se também de conferir ao capital cultural o papel de protagonista do desenvolvimento. Em todas essas conformações da dinâmica entre cultura e desenvolvimento impõe-se uma territorialização, uma aproximação da localidade da cultura. O desenvolvimento foi considerado por muito tempo, tal como a cultura, um fenômeno universal. Conferir-lhe sustentabilidade representa abandonar essa acepção em favor de uma concepção em consonância com as particularidades das configurações culturais de determinado território. Ou seja, em seu novo estatuto, o desenvolvimento qualifica-se como local, endógeno, territorial, culturalmente enraizado. Ele mobiliza atores e recursos no contexto particular; ele dinamiza as potencialidades locais, tendo sempre a cultura como vetor e destino desse processo. 4 Não se quer dizer com isso que se trata de aprisionar a comunidade e o seu projeto de desenvolvimento a localismos ou a dinâmicas atomizadas e fragmentadas. Ao contrário, o desenvolvimento local só poderá ser bem sucedido se alcançar um equilíbrio entre o reforço de traços de identidades e vocações locais e a sua inserção em uma arena cultural comum, ampliada, construída a partir das contribuições locais e do exterior, de modo estabelecer conexões vitais entre a comunidade e os âmbitos alargados do regional, nacional e internacional. 5 4 A título de exemplo de projeto cultural territorializado, que tem como horizonte o desenvolvimento local, cita-se o Museu de Percursos do Vale do Jequitinhonha, em desenvolvimento pelo Governo do Estado de Minas Gerais. Tendo como referência experiências de ecomuseus e museus comunitários, o projeto busca contrapor e, em certa medida, minimizar o quadro histórico de índices sociais e econômicos dramáticos da região, valorizando o patrimônio cultural de comunidades distintas que compartilham um território comum. Vale lembrar que a visão transcendente que tais comunidades nutrem de si mesmas e de suas relações com o ambiente, que a riqueza de suas expressões culturais, aliadas ao forte sentido de identidade coletiva constituem em recursos cultural e simbólico acumulados pelas populações do Vale do Jequitinhonha, os quais não podem ser desconhecidos em qualquer projeto que pretenda promover o desenvolvimento sustentável da região. 5 VARINE, Hugues de. O Direito de Aprender: patrimônio e educação popular. Disponível em: www.direitodeaprender.com.pt Produzido em Joomla! 17/12/ 2008. 3
No processo de globalização, no qual experiências de integração regional promovem fusões culturais indesejáveis, convertem diferenças em desigualdades e arrastam consigo tradições, o desenvolvimento cultural pode significar fomentar a reconstrução de identidades culturais locais e territoriais. Nesse processo, o caráter emancipatório do desenvolvimento será assegurado somente se o foco no horizonte de identidades coletivas não ceder às tentações chauvinistas e ao ímpeto de discursos monovalentes. É preciso permitir a emergência das diferenças internas das comunidades, considerando o conjunto de conflitos e interesses, assim como a diversidade de projetos e necessidades culturais que permeiam a sociedade. 6 Em face dessas breves observações, a implementação de um projeto dessa natureza instiga algumas inquietações. Como operacioná-lo? Que modelo seguir? Como avaliá-lo? São perguntas que se impõem aos gestores e que projetam os desafios a serem enfrentados. Isso porque não se trata de eleger modelos; não haverá modelo a ser seguido quando o que está em jogo são particularidades locais, comunidades específicas que se reinventam culturalmente, em processos transitórios, instáveis, nos quais identidades e memórias são reconstruídas permanentemente, assim como deverá ser refeita sempre as pontes do local com as esferas transterritoriais. Experiências concretas poderão apenas assinalar caminhos e possibilidades aos quais devem se juntar alguns pressupostos básicos. De todos os princípios norteadores do desenvolvimento sustentável o mais importante é o da participação efetiva da população. E nessa perspectiva, o desafio é tanto transferir e compartilhar responsabilidades com comunidades quanto estabelecer uma nova cultura da gestão cultural, a qual deverá também contaminar as políticas de desenvolvimento econômico e social. Trata-se de mudar formas cristalizadas de gerir projetos, sobretudo, nas instâncias governamentais, em geral, pouco permeáveis às inovações decorrentes do deslocamento do foco decisório para setores da sociedade. Exemplo de experiências bem sucedidas são os chamados ecomuseus, museus comunitários ou museus territoriais. Nesse tipo de gestão museológica, território, patrimônio cultural e comunidade se articulam com o propósito de construir a comunidade de destino revelando a comunidade de origem. 7 Para isso não é preciso necessariamente planejar novos equipamentos ou projetos culturais. Iniciativas em curso, instituições culturais já existentes podem adquirir nova vitalidade, instigados justamente pelas demandas e vocações locais. 8 6 TEIXEIRA COELHO. Guerras culturais; arte e política no novecentos tardio. São Paulo: Iluminuras, 2000, p.92-96. 7 SOUZA, Fernando de Sá. Dimensión cultural del desarrollo local. In: OLMOS, Héctor Ariel; GüEMES, Ricardo Santillán. Culturar: las formas del desarrollo. Buenos Aires:Fund. Centro Integral Comunicación, Cultura y Sociedad Ciccus, 2008. P. 159. 8 O caso do Museu Casa Guimarães Rosa é exemplar desse processo de requalificação cultural. Criado nos moldes convencionais na década de 1970, em Cordisburgo/MG, a partir dos anos de 1990 o Museu passou a catalisar experiências culturais que tem conferido papel protagonista aos moradores da cidade. A atuação do Museu permitiu que a literatura Roseana pouco a pouco fosse apropriada pela comunidade local, por meio de narrativas orais de trechos da obra do escritor. Em um círculo culturalmente virtuoso, a literatura universal de Rosa enraizada no solo do sertão, retorna ao lugar de origem; da escrita para a oralidade, da literatura para a narrativa de histórias; do mundo para o local em um processo no qual a comunidade se reconhece e se 4
Finalmente, é preciso considerar o horizonte das grandes metrópoles nesse debate sobre cultura e desenvolvimento sustentável. Cidades são historicamente identificadas como territórios de encontros de culturas. No contexto da globalização e do crescimento anárquico das cidades, a urbanidade se desintegra e diferentes territórios culturais se entrincheiram no espaço. Não se pode, é claro, desconhecer a identidade dessas várias peças do quebra cabeça urbano. Mas, antes, reconhecêlas como expressões da diversidade cultural, com grande potencial para estabelecerem, de forma criativa, conexões entre si. As grandes cidades podem ser vistas como laboratórios de interculturalidade; zonas de contato onde diferentes culturas devem se encontrar em relações simétricas. Essa talvez seja a equação desafiadora para o desenvolvimento cultural sustentável dos grandes centros urbanos; equação que, se bem resolvida, pode conferir às cidades um emblema cultural de ampla visibilidade. Letícia Julião II Conferência Municipal de Cultura Belo Horizonte, outubro de 2009 reinventa permanentemente. É esse amálgama da população e com o seu patrimônio cultural e ambiental que logrou firmar Cordisburgo como importante destino de turismo cultural em Minas Gerais. 5