A DEMORA: IMAGENS NO LUGAR DO FAZEDOR Sofia Lopes Borges 1



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Transcrição:

A DEMORA: IMAGENS NO LUGAR DO FAZEDOR Sofia Lopes Borges 1 Resumo: Este texto pretende refletir sobre as possibilidades e especificidades que o vídeo nos oferece na percepção das singularidades das durações que cria, partindo do princípio de que existe no lugar privilegiado de acesso a percepção natural. Todo o texto se traduz numa óptica a partir do lugar do fazedor. Palavras-chave: vídeo, imagem em movimento, duração, tempo Email: info@sofialborges.com Início Salienta-se muitas vezes a capacidade dos media com base em tempo serem anunciadores de um tempo outro diferente do nosso, de um tempo retirado a si mesmo e do seu fluxo. Se a fotografia, por um lado, retira-se de um fluxo para se oferecer parada, para sempre morta e imortalizada; o cinema por seu lado devolve-nos um outro tempo que tenta impingir à normal sequência do tempo, fazendo-nos pensar que vivemos ao mesmo tempo que ele. O espaço do vídeo é outro; o movimento que nos oferece existe num outro sentido. O texto que apresentamos fala sobre as possibilidades que o vídeo nos oferece na percepção das singularidades das durações que cria a partir do lugar do fazedor. Cinema/Movimento O movimento e a percepção de tempo que o cinema nos dá é muito diferente da que nos oferece o vídeo. Segundo Serge Daney, na sala de cinema o movimento das imagens (...) pode apenas ser percebido porque as pessoas o público encontrava-se imóvel antes dessas mesmas imagens (Daney 2008, 334). O público imobilizou-se para olhar para as imagens. Esta sala de cinema era um momento outro, silencioso, momento de uma espera pelo que acontecia do outro lado da tela. A imagem em movimento do cinema pede por uma audiência que abandone a sua vida fora da salas e que se dedique a este tempo 1 Doutoranda em Cultural Studies na Goldsmiths College, University of London. Borges, Sofia Lopes. 2013. A demora: imagens no lugar do fazedor. In Atas do II Encontro Anual da AIM, editado por Tiago Baptista e Adriana Martins, 127-134. Lisboa: AIM. ISBN 978-989-98215-0-7.

Atas do II Encontro Anual da AIM novo, oferecido, que se dedique a uma vida nova que se parece com a vida dele próprio. Diferente de uma fotografia ou de um quadro, no cinema há um passado e um futuro porque ele é normal como a vida (Barthes 2008, 100). Aqui a ilusão é maior precisamente porque o cinema parece-se mais com o real, com a vida. Nele não acrescentamos nada à imagem, ele não tem uma elaboração mental no sentido em que o cinema não é um momento, ele é o todo. E esse todo vive de um tempo, de uma sequência e de uma narrativa. O cinema não é quadro, é esconderijo. No quadro tudo morre no interior, no cinema temos um campo cego. A essência do cinema é não esperar pelo espectador, não espera que o espectador tenha lugar para os seus pensamentos. O público de cinema tem um modo diferente de olhar para as imagens, este deixa-se maravilhar e coloca-se num papel paciente. Não lhe é dado, e ele também não o exige, tempo para que crie um universo dentro dos filmes. Segundo ainda Serge Daney, os espectadores perderam o direito de falar dentro das salas de cinema. Apaziguaram-se tal era a força que as imagens provocavam em cada um dos espectadores. Todo o aparato a sala escura, a projeção em grande escala, o silêncio forçou de cada vez, o espectador a ver as imagens que à frente que lhe passavam com mais obediência. Segundo o mesmo autor esta é uma audiência que foi lentamente treinada para desistir dos seus maus hábitos, para parar de falar ou interromper a projeção com choros (Daney 2008, 334) e Daney diz ainda que aquilo a que chamamos a história do cinema é a história da domesticação do público, a sua imobilização (ibidem) onde o facto da audiência permanecer imóvel torna-a mais sensível à mobilidade do mundo que outra vez refeito à sua frente. Mas de facto, o cinema sofreu inúmeras mudanças desde os inícios e o impacto de surpresa que o cinema uma vez causou alterou-se. Com o passar dos tempos a relação entre espectador e as salas de cinema passou de surpresa a hábito segundo Walter Benjamin (1992) e a audiência passou a aceitar aquilo que via com maior naturalidade, distração como forma especial de comportamento social. A audiência mostrou-se cada vez mais acostumada a esta nova forma de ver imagem. Para o mesmo autor, esta mudança que aconteceu na mudança das percepções das massas no inicio do século XX, não 128

Sofia Lopes Borges foi necessariamente má. Estas novas maneiras de percepcionar renovam presentemente todas as velhas atitudes perante a obra de arte, as massas quebraram a tradição, mudaram qualitativamente o sentido do tipo de participação. Criaram uma habituação, o público tornou-se um examinador distraído. Um examinador que não se deixava surpreender com facilidade, que sabia o que via. Para o autor este poder de se habituar à imagem significava também o poder do homem se apenas contemplar, de apenas olhar e de se estabelecer apenas nas qualidades estéticas. Para Benjamin a humanidade é contemplação de si mesma. A alienação de si própria atingiu o grau que lhe permite viver a sua própria aniquilação como um prazer estético de primeira ordem. Movimento da sala do cinema para a sala de casa Quase um século mais tarde os cinemas passaram por várias mudanças e sofreram profundas alterações. De facto, com o aparecimento da televisão, computadores pessoais, internet, etc., as imagens deixaram de ser exclusivo das grandes salas para passarem a fazer parte do quotidiano. Assistimos agora a uma verdadeira alteração no modo como as imagens em movimento são percebidas e mais, assistimos a uma imensa alteração do como estas mesmas imagens são produzidas. Tornámo-nos nós próprios nos criadores destes filmes e convivemos com eles. Estas mudanças no mundo das imagens, representam para Serge Daney, um alteração absoluta desde as primeiras reações provocadas pelo cinema, tornámo-nos muito móveis na nossa relação com as imagens, que se tornaram por sua vez cada vez mais imóveis (Daney 2008, 335). O movimento que vemos hoje nas imagens tornou-se cada vez menos notado, ele pouca atenção chama aquele pouco espectador que passa. O loop em publicidade, por exemplo, ofereceu ao público a sensação de não ter grande importância. As pessoas passam pelas imagens. Pouco interessa se foi visto por completo todo o anuncio; por seu lado o anunciante tenta vender o seu produto da maneira mais eficaz no mínimo espaço de tempo. O modo de pensar as imagens alterou-se de tal modo que é agora visto como um todo (como é vista a pintura ou a 129

Atas do II Encontro Anual da AIM fotografia). Nesta mesma publicidade, as imagens em movimento ambicionam apenas dar a ver um produto especifico, todo o movimento construído tem de facto apenas uma função: a de vender. Nesse sentido o cinema reconcilia-se assim com uma das suas iniciais vocações, a apresentação das coisas (que é talvez uma vocação mais primordial que a representação (ibidem). Os filmes são vistos num todo e através da sua função específica. Nós éramos portanto imóveis antes das imagens em movimento e hoje tendemos a mover-nos perante o aumento destas imagens que se tornaram imóveis. Mas o que é uma imagem imóvel? Não deve ser apenas entendida enquanto um frame-congelado (ibidem). O autor diz que teremos de procurar por um diferente género de imobilidade uma vez que o frame-congelado segundo ele apenas para a continuidade. A pergunta que se coloca hoje prendese com de onde vem o movimento, em vez de onde estava o movimento. No fundo é no campo dos afectos que se coloca esta questão. O que o movimento provoca no espectador destaca-se em relação àquilo o movimento é. Que forças nos seguem ao vermos uma imagem em movimento, que género de estímulos provocam em nós? A questão do movimento deixou de ser um problema por si, ele não é mais surpresa ou fonte de deslumbramento. Ela traz-nos motivos concretos aos quais respondemos. O movimento não está mais nas imagens, na sua força metafórica ou na capacidade de serem editadas em conjunto, está no enigma da força que os programou (Daney 2008, 337). A imagem imóvel de que o autor nos fala corresponde acima de tudo à falta de movimento, digamos, mental que fazemos para a compreender. Estas figuras que vemos são muitas das vezes imagens imobilizadas, de uma imobilidade que conhece apenas um movimento desaparecer. Estas figuras não podem ser mudadas ou envolvidas neste movimento, elas são lugar de passagem, figuras que ficam. Mais do que falar de corpos imóveis (ou imagens) devíamos falar de imagens ou corpos enquanto autómatos (idem, 339). Imagens que não se fazem esperar, que mostram rápido e que pedem cada vez menos que o espectador as siga. Na Carta a Serge Daney, Gilles Deleuze (1992) aponta para a impossibilidade do cinema de ser sozinho, de viver em si. Ele diz que se o 130

Sofia Lopes Borges cinema voltasse agora não seria segundo uma nova função da imagem, uma nova política, uma nova finalidade da arte. As questões que o autor coloca debatem-se sobre o que há realmente para ver na imagem. E segundo ele, se o cinema voltasse, o que mudava era então um conjunto de relações da imagem cinematográfica, ou seja, a sua montagem. Este pensamento do cinema deixou de ser triunfante e colectivo para ser aventuroso e singular. O olho vazio passou a ver através de lente de contacto. Essa lente é a câmara. Agora somos nós que nos inserimos na imagem, já não é ela que se dá ou não a ver. A imagem de agora existe no seu terceiro estado, ela é uma imagem que desliza sobre uma imagem que já existe. Ou seja, este estado rivaliza com a natureza e, segundo Deleuze, perdemos o mundo. Já nada acontece aos seres humanos, é à imagem que acontece tudo. A questão final que Deleuze coloca é como devolver o vídeo à lentidão que escapa ao controlo e que conserva, como ensina-lo a andar lentamente ( )? Vídeo A minha apresentação prende-se então sobre a questão do vídeo e de como podemos pensar o vídeo na sua relação com o espectadores de imagens em movimento. Se o cinema revelou já que o mundo é um fluxo de imagens e que o mundo das imagens é uma constante transformação, então a tecnologia do vídeo causa uma desterritorialização adicional desses próprios fluxos (Lazzarato 2008, 283). O vídeo descobre a imagem em movimento que se liga ao corpo, que regista o fluxo continuado e que se desloca ao ritmo de cada passo. O vídeo não se constrói a partir de um aparato mecânico que justapõe dois fotogramas. Ao invés refaz cada espaço colorido, imprime cores com um pincel electrónico capta o movimento a partir das oscilações da matéria; é a oscilação ele própria (...) é a relação entre os fluxos. É o resultado da contração sobre a dilatação da matéria tempo (idem, 284). O vídeo compreende-se na sua condição de natureza incerta, compreende-se na sua relação com o corpo que segue a imagem e a guia e que está sujeita a todas as variações que os pés possam pisar. Há por isso uma aproximação maior entre o que as imagens mostram e o que o corpo percebe, melhor, a aproximação existe no sentido em 131

Atas do II Encontro Anual da AIM que são os fluxos temporais e do movimento que são percepcionados através de igual género de forças. Estes fluxos apesar de não poderem ser percepcionados podem, pelas palavras de Maurizio Lazzarato, ser compilados quando organizados. Este fluxos dissipar-se-ão para que deles outros se possam criar. Diferente da câmara de cinema que precisa de tempo para ser preparada, em vídeo é preciso apenas olhar e ver as imagens encontramo-nos na dimensão das puras oscilações. O fluxo da matéria tempo (idem, 285) porque já tudo acontece quando a câmara começa a filmar. Para Bergson a imagem pura não pode ser vista através do olho humano e para Lazzarato o vídeo permitenos assim aceder a alguma coisa que pertence às percepções puras que ultrapassam a própria imagem e onde acedemos ao fluir da luz, o fluir da matéria-fluxo (idem, 286). A percepção pura existe apenas no abstracto porque é sempre preciso algo mais que a torne visível. A nossa percepção convoca um espaço homogéneo de uma incerta variedade (a duração infinita) da matéria. Ao invés, deve-se observar movimentos no tempo. Isto é exatamente o que o vídeo faz. A partir deste ponto de vista, o vídeo está mais próximo da realidade do que da percepção natural desaparecimento que é muitas vezes lamentado (Lazzarato 2008, 287-88). A câmara de vídeo atua como o cérebro ao traduzir movimentos, que não são perceptíveis nas nossas categorias de espaço e tempo, em imagens que podem ser percebidas (idem, 288) Pensar lentamente Mas retomemos à questão de Deleuze sobre como podemos devolver o vídeo à lentidão e como ensiná-lo a andar lentamente. Por outras palavras, como fazer com que a audiência do vídeo ande mais lentamente, olhe mais lentamente, pense mais lentamente. Mais, como deixar que a surpresa das imagens em movimento provoquem o repensar da própria percepção do tempo, como devolver a lentidão para pensar o próprio tempo. 132

Sofia Lopes Borges O vídeo é talvez o meio ele mesmo capaz de nos fazer repensar os movimentos uma vez que percebe nele o traço das pequenas percepções de tempo e das singularidades das durações. Como vemos em Deleuze, iniciado a partir de um momento em que é ainda pensamento, ou seja, não se inicia nos primeiros frames, mas antes, onde toda a sequência está já descrita numa espécie pré-filme, num inicio. Assim o realizador não filma uma coisa qualquer mas sempre algo que já teve inicio. Cabe ao artista criar uma ideia do que vai ser o seu filme mas também estar atento às possibilidades que surgem diante da sua câmara. Se de facto existe um pré-filme, existe também, e mais acreditamos no vídeo, um campo aberto de cada vez que alguém começa a filmar. Os vídeos surgem de câmaras várias que acompanham o corpo e testemunham acontecimentos rápidos e inesperados. Partindo do principio que o método como foi feito cada vídeo pode não interessar ao espectador o mesmo não acontece obviamente a quem o faz. No ponto de vista do fazedor, é no descobrir o especifico da matéria com que se trabalha que se encontra aquilo com que se trabalha. Nas palavras de Filomena Molder sobre o gesto imaginário, mas que creio se adequam, é andar à procura daquilo que se está a dizer (Molder 2006, 13). Ou por Kafka que, dividido entre si e o mundo, se coloca no lado do mundo, o que será o mesmo que dizer do lado da matéria. É do intervalo entre o fazedor e o fazedor espectador que falo. O vídeo é na sua ligação ao corpo que o transporta, pouca diferença faz se o filme se trata de um registo imprevisto ou de uma montagem, o vídeo segue os passos do corpo. BIBLIOGRAFIA Barthes, Roland. 2008. A câmara clara. Lisboa, Edições 70. Benjamin, Walter. 1992. A obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica. In Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, de Walter Benjamin, Lisboa: Relógio d Água. Deleuze, Gilles. 1992. Carta a Serge Daney: Optimismo, pessimismo e viagem. In Conversações, de Gilles Deleuze, 88-102. Rio de Janeiro: Editora 34. 133

Atas do II Encontro Anual da AIM Leighton, Tanya, ed. 2008. Art and the Moving Image. A Critical Reader. Londres: Tate Publishing. Daney, Serge. 2008. From Movies to Moving. In Art and the Moving Image. A Critical Reader, editado por Tanya Leighton, 334-39. Londres: Tate Publishing. Lazzarato, Maurizio. 2008. Video, Flows and Real Time. In Art and the Moving Image. A Critical Reader, editado por Tanya Leighton, 283-91. Londres: Tate Publishing. Molder, Maria Filomena. 2006. O Absoluto que Pertence à Terra. Lisboa: Edições Vendaval. 134