MÍDIA, MUSA E ARTE: O PAINEL DE DI CAVALCANTI



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Transcrição:

MÍDIA, MUSA E ARTE: O PAINEL DE DI CAVALCANTI Nelyse Ap. Melro Salzedas Livre Docente UNESP PG FAAC - Bauru Resumo Di Cavalcanti narra, em seu painel, através da mitologia grega, a história das musas do teatro. O Teatro de Cultura Artística incendeia-se. A arte de Di vive. Palavras-chave: linguagem, musa, teatro, painel, mídia. Abstract Di Cavalcanti recounts into his picture, through greec s mitologic the story of theatre muses. The Theatre Cultura Artística is burnned up. The art of Di is alive. Key Words: language, muse, theatre, pictures, media. Este texto tem uma história: o diálogo entre duas notícias comentadas e publicadas no Caderno 02 e no Caderno C, Cidades, do jornal O Estado de São Paulo. Ambas dizem respeito ao incêndio do Teatro de Cultura Artística, enfocando o painel de Di Cavalcanti, em cujo lead se lê: Obra de Di Cavalcanti não foi destruída por incêndio. Mas o que motivou a leitura dessas publicações no leitor? a perenidade da arte. E isto remeteu-me a Natalika (1924) de Guilherme de Almeida, que, segundo Suzi F. Sperber, simboliza a profissão de fé do poeta. O texto de Guilherme de Almeida, além de uma narrativa, contém oito afirmações que são paradoxos entre a perenidade da arte e a efemeridade da natureza. A primeira afirmação: Tudo passa na natureza; tudo fica na arte. A natureza é provisória; a arte é definitiva. Porque a natureza conhece o tempo e arte não conhece. Após a segunda, a terceira, quarta, quinta, sexta e sétima afirmações, a última, a oitava, aproxima-se de um posicionamento mais adequado ao Modernismo de 22. No princípio, a arte era natureza mesmo; depois a arte foi cópia da natureza; depois interpretação; depois o aperfeiçoamento e, agora, é a negação da natureza. Parece-me que a oitava afirmação traça um histórico sobre o percurso estético da arte. Entretanto, o que me interessa, é a discussão que Guilherme de Almeida provoca sobre a perenidade da arte e a efemeridade da natureza, 1-1020

associada à sobrevivência do painel de Di Cavalcanti, vivo, enquanto o Teatro ardia, pois ele incendiou-se, o painel restou incólume. E o que dizia, ou melhor, narrava o painel? Por que aquela estrutura? Por que aquela composição? Mais uma vez recorro à memória e revejo, no Museu de Nápolis, nas ruínas de Pompéia, os painéis de tesselas, os deuses gregos, as musas, as ninfas, que decoravam as casas romanas, os seus balneários, as representações eróticas guardadas nas salas proibidas. Di com todo entrosamento com a modernidade buscou há mais de dois mil anos atrás modelos para figurarem em um frontispício de um teatro contemporâneo erguido naquela Paulicéia Desvairada. O painel, segundo o jornal O Estado de São Paulo, tem 48 metros de largura e 08 de altura, inaugurado, em 1950, com o Teatro já terminado; compõe um espaço cênico com dez figurantes, ou melhor, protagonistas: as nove musas, filhas de Zeus com Mnenosine, e uma, a décima, filha e criação de Di. As musas são Calíope (poesia épica); Clio (a história); Erato (lírica coral); Euterpe (flauta); Melpómene (tragédia); Polimnia (pantomima); Tália (comédia); Terpsícóre (dança) e Urânia (astronomia). Embora cada uma tenha uma função, em princípio foram concebidas como um conjunto inseparável. Eram elas as ninfas relacionadas com rios e fontes, espírito das águas e os gregos atribuíram a elas virtudes proféticas e a capacidade de inspirar toda a classe de poesia e todas as formas de arte. A afirmação de que foram concebidas como um conjunto inseparável, talvez tenha impelido a Di Cavalcanti a agrupá-las em seu painel como se pertencessem a uma constelação e documentassem, outrossim, o entendimento do pintor sobre o teatro: soma de linguagens, mimetização da história, concretização de sentimentos e veículo de idéias. Assim o teatro seria uma poesia épica (Calíope); representaria a história (Clio), teria o coro poesia lírica (Erato); seria musical (Euterpe); mas também acumularia em seu repertório uma mistura de gêneros: tragédia (Melpómene); comédia (Tália); pantomima (Polimnia) e a dança (Terpsícóre). O painel de DI Cavalcanti, Alegoria das Artes, em sua composição traça todo conceito grego de mimesis (representação). Agora, uma pergunta: Como representou a mitologia grega nosso pintor? Transcrevo um fragmento do Caderno Cultura de 24 de agosto de 2008, publicado no jornal O Estado de São Paulo e atribuído a Di Cavalcanti: Em matéria de mulheres, por exemplo, modéstia à parte, sou mais eu, antipicassiano. Nunca soube o que se passava na cabeça dele, daquele cigano magnífico, mas o fato é que ele não servia para fazer mulher bonita. Era 2-1021

sempre com um olho a mais ou a menos, um nariz de lado. Saía sempre um Picasso bonito, mas nunca uma mulher bonita E, contrastando com as suas mulatas, as musas de seu painel eram todas aparentemente brancas, talvez fiel ao ideário grego-clássico. Para formálas, ou melhor, construí-las, usou cerca de mil e duzentas tesselas, todas cortadas manualmente, chamou-as como ao painel: Alegoria das Artes. Passo agora a indagar como representou-as? Transportou a representação grega? Recriou-as? Os gregos representavam Clio com o rolo de escrituras às mãos; Erato com uma lira; Euterpe com uma flauta; Melpómene com a máscara trágica; Polimnia meditando, com joelhos postos sobre um pedestal ou uma roca; Tália, jovem e risonha, coroada com ervas, levando o cajado do pastor e a máscara cômica; e finalmente Terpsícóre, tocando a lira. E Di como as dispôs em seu painel? A minha leitura principia a partir de uma imagem iniciante do painel, por Mneosine, filha de Geia (terra) e de Urano (céu), moradora em uma gruta nos cumes do Monte Citeron; que unindo-se a Zeus durante nove noites consecutivas, gerou nove musas. Destaco três que estão sob a proteção da genitora, representadas metaforicamente por três máscaras: da tragédia, da comédia e da pantomima, respectivamente as musas Melpómene, Tália e Polimnia. Em uma outra musa, Polimnia, volta a ser representada com uma roca sob um pedestal. Acredito que a décima musa, criação de Di Cavalcanti, seja um misto de Euterpe (que é a flauta), mais dois instrumentos comuns á cultura brasileira, o vilão e o tambor. Seria uma musa responsável pela sonoridade desenvolvida pelo teatro: a linguagem sonora, cujas imagens seguem abaixo 3-1022

Imagem 01 1950, Di Cavalcanti, Mosaico de Vidro, 48,00 x 8,00m (Detalhe: Musa Melpómene) Imagem 02 1950, Di Cavalcanti, Mosaico de Vidro, 48,00 x 8,00m (Detalhe: Musa Polimnia) 4-1023

Imagem 03 1950, Di Cavalcanti, Mosaico de Vidro, 48,00 x 8,00m (Detalhe: A criação de Di Cavalcanti, sua musa, que não tem respaldo representativo, segundo os dicionário de mitologia, na cultura grega. Eu comecei o presente texto transcrevendo um lead que dizia A obra de Di Cavalcanti não foi destruída por incêndio, tal afirmação levou-me, casuísticamente, a pensar na perenidade da arte, na efemeridade da natureza e no aforisma a arte não tem tempo. O que levou a Di Cavalcanti a construir painéis com tesselas, a buscar temas e figuras mitológicas dentro de um processo artístico que se chamou Modernismo. O que se conclui que ser moderno não é ignorar o passado e as heranças recebidas, mas ajustá-los culturalmente ao seu tempo. Referências bibliográficas ALMEIDA, Guilherme. Natalika, 1924. MARTINEZ, Constantino Falcon, FERNANDEZ-GALIANO, Emilio e MELERO, Raquel Lopez. Diccionario de La Mitologia Clasica. Madri: Alianza Editorial, 1995. 5-1024