DÁDIVA E SOLIDARIEDADE: perspectiva de mudanças no cenário sócio-político brasileiro Raldianny Pereira dos Santos Resumo. Este trabalho busca uma reflexão sobre o fracasso do paradigma do interesse na apresentação de soluções concretas para os problemas sociais e o delineamento de um outro paradigma, o da solidariedade, pautado na ação coletiva, no espaço da cultura política contemporânea brasileira. A análise é centrada na reciprocidade e na confiança entre os atores e sistemas de troca e entre estes e as instituições como elementos básicos na dinâmica da constituição dos vínculos e do funcionamento do social. O pressuposto geral corresponde à compreensão de que o sentido da confiança no campo da ação social permite perceber e analisar complicados e variados aspectos da conduta dos indivíduos no que diz respeito a sua participação política. A questão que se coloca é: como estas duas dimensões de análise reciprocidade e confiança despontam como potenciais instrumentos para o êxito do atual governo federal no que se refere especialmente à perspectiva da implantação de projetos sociais e à consolidação do paradigma da solidariedade em substituição ao paradigma do interesse no cenário da política nacional? Palavras-chave: solidariedade, reciprocidade, confiança, cultura política, participação social. A sociedade moderna, dominada pelo mercado, atribui ao elemento humano uma certa representação impregnada também de uma visão economicista. Segundo esta visão, a sociedade seria formada por uma massa de indivíduos livres para agir mediante seus interesses para produzir e consumir. As decisões em torno da produção e do consumo seriam efetivadas tão somente em razão das próprias preferências individuais. Esta é a lógica da tradição de um pensamento que, nas Ciências Humanas, é identificado por variadas denominações como teoria das escolhas racionais, racionalidade instrumental, individualismo metodológico, utilitarismo econômico, entre outras. O núcleo Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPE.
2 comum entre estas diferentes designações é a tentativa de explicar o sistema de produção e, sobretudo, de circulação de bens e serviços na sociedade a partir das noções de interesse, racionalidade e utilidade. É este o princípio do conhecido paradigma do interesse que hoje dá sustentação ao chamado neoliberalismo, corrente política que privilegia o cálculo econômico no movimento de trocas entre as nações. Os efeitos nocivos do neoliberalismo sobre a vida social de diversos países, em especial sobre os problemas sociais de nações em desenvolvimento, a exemplo do Brasil, têm sido um assunto recorrente, principalmente nesses primeiros anos desta primeira década de um novo milênio, período em que parece se generalizar um certo anseio por mudança e justiça social em populações de várias partes do mundo notadamente aquelas menos desenvolvidas. A evidente perda de importantes espaços por parte dos Estados nacionais para a Economia de Mercado é uma das graves conseqüências da expansão desenfreada do paradigma do interesse em países emergentes, que se deu de forma bastante acentuada nas duas últimas décadas do século passado. No que se refere à nação brasileira, os resultados sociais e econômicos dos últimos anos do século XX apontam para uma premente necessidade de redefinição de suas prioridades políticas. É fácil perceber que, no Brasil, as políticas neoliberais, em que se destaca o tão propalado processo de globalização, além de não solucionar problemas sociais, e mesmo questões econômicas mais gerais, prestaram-se ainda para aprofundar as desigualdades nesses dois níveis social e econômico na mesma medida em que serviram também para reforçar a condição de dependência do país no cenário internacional. Em contrapartida, o reconhecimento pela opinião pública quanto à incapacidade do neoliberalismo para apresentar soluções concretas para os problemas sociais aliado aos desequilíbrios provocados pelo domínio da Economia de Mercado têm impulsionado a sociedade brasileira a desenvolver um movimento espontâneo de reação contra os prejuízos causados pelo paradigma do interesse. No nosso entendimento, a escolha popular do candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Luiz Inácio Lula da Silva, para a Presidência da República significa um importante exemplo do movimento de reação da sociedade civil organizada às tendências danosas das políticas neoliberais. Mais que isso, a vitória de Lula nas urnas com a aprovação de 53 milhões de brasileiros, o que corresponde a aproximadamente 60 por cento dos eleitores, representa um desejo da população no sentido
3 da substituição do paradigma do interesse por um outro paradigma, o da solidariedade, pautado na ação coletiva. O presente trabalho pretende levantar pontos para a reflexão em torno do sentimento popular de aprovação ao Governo Lula como potencialidade para um possível êxito do atual governo federal no intento de implementar projetos que primem pelo social e, concomitantemente, fortalecer a emergência de um novo paradigma legitimado na solidariedade coletiva. Reciprocidade, confiança e política A noção de solidariedade de que trata este trabalho baseia-se no entendimento de uma ação humana calcada numa compreensão de que o melhor para mim é também o melhor para o outro 1. Portanto, o conceito de solidariedade que apresentamos coloca em destaque a importância de uma tomada de consciência de que a solução dos problemas individuais passa, necessariamente, pela solução dos problemas coletivos. Desta forma, pensar sobre solidariedade conduz naturalmente a uma reflexão em torno da reciprocidade. O princípio da reciprocidade funciona como elemento de convergência e de agregação dos indivíduos nos processos sociais. Sahlins define este princípio como um sistema total de trocas que ocorrem de forma contínua, caracterizando uma relação entre a ação e a reação entre duas partes 2. Logo, a reciprocidade faz parte do próprio processo de sociabilidade e estruturação dos sistemas sociais e, enquanto modo de sociabilidade, remonta à dádiva, o clássico modelo elaborado pelo sociólogo francês Marcel Mauss 3, nas primeiras décadas do século XX. Para Mauss, a regra básica que determina a ação direta dos indivíduos em favor da construção de vínculos é constituída em três momentos, na dinâmica da reciprocidade social proveniente dos movimentos de dar, receber e retribuir. É o sentido de reciprocidade nas liberdades e obrigações compartilhadas individual e coletivamente que possibilita às 1 ARROYO, João. Economia popular e solidária. In : MEDEIROS, Alzira & MARTINS, Paulo Henrique. (orgs.). Economia popular e solidária : desafios teóricos e práticos. Recife : PCR, 2002, p. 54. 2 SAHLINS, M. On the sociology of primitive exchange. In: SAHLINS, M. Stone age economics. London : Tavistock, 1976. In: LANIADO, Ruthy Nadia. Troca e reciprocidade no campo da cultura política. Revista Sociedade e Estado dádiva e solidariedades urbanas. Vol. XVI, n. 1-2, jan./dez. 2001, p. 229.
4 pessoas a aceitação das normas presentes na própria lógica da dádiva, por meio do estabelecimento de um senso de pertencimento entre os atores sociais. Segundo Douglas, (...) a dádiva produz a identidade e o reconhecimento de cada um em relação ao grupo, confirmando um sentimento de pertencimento reafirmado, constantemente, nas obrigações que compartem. Ou seja, (...) um dom (presente) que não contribui em nada para enaltecer a solidariedade seria uma contradição. 4 Noutras palavras, a ambivalência da reciprocidade dar-receber, no pensamento de Mauss, só faz sentido para a produção de solidariedade quando seus elementos estão relacionados, conjugando entre si todos os recursos materiais e simbólicos que estabelecem as aproximações entre o dar e o receber 5. A análise do sobrinho de Durkhein permite também estabelecer relações entre o conceito de reciprocidade e as idéias de participação e confiança no processo de estruturação dos sistemas sociais e na ação dos indivíduos na produção do seu mundo nos diferentes e sucessivos períodos da história. Laniado define a confiança como um sentimento ou uma crença que vincula o indivíduo aos outros nas interações interindividuais e o vincula também aos sistemas sociais que organizam a vida em sociedade. A autora salienta ainda que são os valores e as normas compartilhadas pelos atores sociais, em épocas determinadas, que constituem o que podemos denominar substrato da confiança 6. Destacamos que é justamente este substrato resultante do compartilhamento de valores e normas que conduz naturalmente os indivíduos ao envolvimento e à participação no campo da ação social, uma vez que a confiança é o elemento essencial do sistema de troca e reciprocidade. 3 MAUSS, Marcel. Essai sur le don: forme et raison de l échange dans les societés archaïques, L Année sociologique, nova série, 1, 1925. 4 DOUGLAS, M. There is no free gift. In : MAUSS, M. The Gift. Londres : W.W. Norton, 1990. In : LANIADO, Ruthy Nadia. Troca e reciprocidade no campo da cultura política. Op. cit., p. 232. 5 LANIADO, Ruthy Nadia. Troca e reciprocidade.... Op. cit., p. 232. 6 Idem, p. 233.
5 Laniado busca aprofundar a discussão em torno do sentido da confiança e do seu papel na relação entre os indivíduos e os sistemas sociais. Para isso, recorre aos estudos formulados por Luhmann 7 e Mutti 8. Para Luhmann, nas chamadas sociedades modernas, o sentido da confiança em relação às condutas sociais dividi-se em dois níveis: a confiança-expectativa (confidence) e a confiança-risco (trust). O primeiro nível confidence significa confiar que as coisas acontecerão do modo que se supõe (se sabe) que elas devam acontecer, isto é, está diretamente vinculado a uma expectativa de ocorrência 9. Por sua vez, o segundo nível trust significa agir conforme certas decisões e compromissos assumidos, o que incorre em riscos, já que decisões não pressupõem um domínio completo dos determinantes dos acontecimentos 10. O pensamento de Mutti aproxima-se, em muito, da análise de Luhmann. Tal como este último, Mutti também propõe que a compreensão do sentido da confiança seja construída sobre dois eixos analíticos: o da confiança sistêmica (de caráter impessoal) e o da confiança pessoal ou interpessoal. É possível observar como a chamada confidence está para a confiança sistêmica, assim como a confiança pessoal ou interpessoal está para a confiança risco. Ambos os autores caminham na mesma direção ao elegerem as organizações, os sistemas e as instituições sociais como destinatários do tipo de confiança expectativa/sistêmica por parte dos indivíduos, ao mesmo tempo em que ressaltam a confiança risco/pessoal ou interpessoal como diretamente dependente do grau de interação comunicativa que se estabelece entre os atores sociais. A questão principal que emerge desses diferentes níveis do sentido da confiança no campo da ação social é exatamente que eles possibilitam perceber e analisar complicados e variados aspectos da conduta dos indivíduos no que diz respeito à atuação dos atores sociais no âmbito da cultura política. Nesse sentido, no que concerne ao mundo da política, ambiente que, em princípio, seria pouco dependente do caráter da pessoalidade, é fundamental o sentido da confiança como expectativa (confidence), diferentemente do que 7 LUHMANN, N. Familiarity, confidence, trust. In : GAMBETTA, D. (Ed.) : Trust: making and breaking cooperative relations. Oxford : Brasil Blackwell, 1988. In : LANIADO, Ruthy Nadia. Troca e reciprocidade.... Op. cit. 8 MUTTI, A. La fiduccia: un concetto fragile, una solida realtà. Rassegna Italiana di Sociologia, v. 28, n. 2, abr./jun. 1987. In : LANIADO, Ruthy Nadia. Troca e reciprocidade.... Op. cit. 9 LANIADO, Ruthy Nadia. Troca e reciprocidade.... Op. cit., p. 234.
6 ocorre no âmbito das relações interpessoais, em que prevalece o sentido da confiança como risco (trust). O debate em torno da reciprocidade e da confiança como elementos básicos na dinâmica da constituição dos vínculos e do funcionamento do social abre espaço para uma tentativa de incursão no território da cultura política contemporânea brasileira, mais precisamente no cenário que está sendo desenhado pelo atual Governo Lula. Nossa intenção é buscar refletir sobre como estas duas dimensões de análise reciprocidade e confiança despontam como potenciais instrumentos para o sucesso do governo federal em curso no que se refere especialmente à perspectiva da implantação de projetos sociais e consolidação do paradigma da solidariedade em substituição ao paradigma do interesse no campo da política nacional. Governo Lula, solidariedade e democracia Em praticamente duzentos anos de capitalismo, modelo econômico sustentado pelo interesse individualista, o mundo produziu três categorias de indivíduos: ricos, pobres e miseráveis. A indigência no planeta aumentou consideravelmente nesses últimos dois séculos. Sobram bilhões de excluídos. Não se destinou espaço para eles nos inumeráveis projetos internacionais e nacionais. No Brasil de 170 milhões de habitantes, 30 por cento de sua população se enquadra hoje nos níveis de pobreza e miséria, o que corresponde a 50 milhões de brasileiros tratados como estrangeiros em seu próprio país, encarados como aquele grupo indesejado, quase inimigo, cuja minoria rica quer manter cada vez mais isolado, à margem, distante, separado por muros cada vez mais altos e fortemente aparelhados com todo um arsenal de segurança. Este Brasil de dimensões continentais que parece incapaz de assegurar em seu seio o lugar de direito de cada um de seus filhos revela aos olhos do mundo o quadro que é resultado de um flagrante fracasso político. A produção agrícola atual poderia alimentar 300 milhões de pessoas, seis vezes mais que a quantidade de famintos do país. No entanto, os governantes, pelas mãos dos quais têm sido traçados os destinos do Brasil e do povo 10 Ibid, p. 234.
7 brasileiro, têm priorizado a exportação. Desta forma, nossos dirigentes têm produzido riqueza pela produção da pobreza. A falência do modelo político-econômico que tem contribuído para a generalização da mazela social, cujos sintomas evidentes tendem a tornarem-se em breve incontroláveis, exige urgentemente um processo de transformação no país. É possível que a mudança no Brasil, pela própria formação cultural de seus habitantes, não se faça por meio de manifestações revolucionárias ou explosões sociais. Entretanto, a pacificidade com que o brasileiro é geralmente identificado não significa sinônimo de conformidade ou acomodação. Como dizia o sociólogo Herbert de Souza, a mudança no Brasil não corre, mas ocorre. Um dos mais recentes e relevantes sinais de transformação social desta nação foi, sem dúvida, a histórica vitória nas urnas de um ex-torneiro mecânico para ocupar o maior posto político do país, o de Presidente da República. A imagem de Luiz Inácio Lula da Silva é associada a um difícil passado recente do Brasil, quando o sindicalismo reagia à repressão militar e desafiava a força policial do então governo ditatorial, nas greves que agitaram o ACB paulista em finais dos anos 70 e início dos anos 80. A figura e a história de vida de Lula não se aproximam daquelas dos intelectuais que sempre conduziram os rumos do Brasil e que, aparentemente, sempre tiveram a aprovação popular. Talvez aí encontremos o primeiro indício do desejo de mudança por parte do povo brasileiro: substituir no máximo cargo político da nação a imagem que lhe remete à classe dominante por uma imagem que lhe remete às classes dominadas. Mais que isso, talvez seja possível apreender desta escolha popular o entendimento de que a maior parte dos brasileiros que elegeu o atual presidente foi movida pela vontade de reconhecer naquele que neste momento ocupa posição dominante na sociedade sob o ponto de vista político de que é posição, e não, oposição os melhores desejos de transformação para o Brasil, acreditando que, assim, haveria reais possibilidades desses melhores desejos, correspondendo também aos melhores desejos de cada brasileiro, viessem a se tornar realidade. Estas observações não apontam para uma mera percepção do que poderia ser reduzido a um momento de euforia e esperança por parte da nação brasileira em relação ao futuro político, social e econômico do país. Na verdade são a constatação de um fenômeno
8 ímpar na História do Brasil: a expressão da presença significativa da confiança, no seu sentido de expectativa, como afirma Luhmann. Aquele sentido de confiança que é primordial no mundo da política e que se traduz no sentimento de certeza de que as coisas acontecerão da maneira que se espera que elas devam acontecer. É justamente este sentido de confiança que poderá agregar os brasileiros em torno de ações sociais que pretendem ser desenvolvidas pelo Governo Lula, a exemplo do Programa Fome Zero. A certeza de que finalmente chega ao poder um representante do povo, eleito pelo povo, principalmente vindo do povo, que rejeita a idéia de que o problema secular da fome é algo inevitável e reconhece o direito inalienável de todo indivíduo a uma vida digna, provoca um sentimento de identidade de cada um em relação ao grupo. É este sentimento de identidade que constitui o germe da mudança do país, visto que uma transformação social efetiva, legitimada na ação coletiva, só se dará no Brasil a partir da tomada de consciência de que a solução dos problemas individuais passa, necessariamente, pela solução dos problemas coletivos. É esta a base do princípio da solidariedade, que se dá na dinâmica da reciprocidade social, no movimento eqüitativo de dar, receber e retribuir. Porém, é preciso ressaltar que o sentido de confiança presente hoje na sociedade brasileira em relação ao Governo Lula poderá facilmente ruir, caso seus projetos sociais, como o Fome Zero, descambem para o também secular e estéril assistencialismo. Os contingentes excluídos da população cobram, cada vez mais, sua parcela de cidadania, que implica a garantia de direitos como alimentação, moradia, saúde, educação, saneamento básico, lazer, mas, acima de tudo, o direito ao trabalho e a uma renda digna que lhe retire da condição de coitado e lhe assegure plenas condições de participar ativamente da vida pública. Garantir o direito à cidadania e à dignidade humana implica igualmente a conscientização dos indivíduos sobre seus deveres, sobre a importância de, por sua parte, também buscar sair da condição de coitado e voltar-se para o outro, integrando-se igualmente ao ciclo social do dar, receber e retribuir. Nesse sentido, o combate a políticas assistencialistas representa também fator fundamental para que a cidadania seja compreendida pela totalidade social dentro de um conceito mais amplo. O Governo Lula tem, diante de si, um grande desafio. Contudo, tem também um ambiente social favorável ao rompimento do círculo utilitarista e egoísta do individualismo
9 e à construção do espaço fecundo da solidariedade coletiva. É este o papel do Estado democrático. É para isso que ele existe. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARROYO, João. Economia popular e solidária. In : MEDEIROS, Alzira & MARTINS, Paulo Henrique. (orgs.). Economia popular e solidária : desafios teóricos e práticos. Recife : PCR, 2002. LANIADO, Ruthy Nadia. Troca e reciprocidade no campo da cultura política. Revista Sociedade e Estado dádiva e solidariedades urbanas. Vol. XVI, n. 1-2, jan./dez. 2001. MAUSS, Marcel. Essai sur le don: forme et raison de l échange dans les societés archaïques, L Année sociologique, nova série, 1, 1925.