Palavras-chave: conjuntos habitacionais, avaliação do espaço, morfologia



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Transcrição:

Virando pelo avesso: transformações do espaço urbano em conjuntos habitacionais do Recife Resumo Circe Maria Gama Monteiro Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano MDU/UFPE circe@elogica.com.br Este artigo apresenta a história urbana recente de transformação de uma tipologia urbana. Objetiva descrever os processos ocorridos em conjuntos habitacionais implantados na década de 70, identificando as natureza das modificações efetuadas pelos moradores, assim como compreender a lógica sócio-cultural deste processo. Os conjuntos habitacionais com concepções urbanas advindos dos preceitos do movimento moderno, (quadras livres, zoneamento de usos, separação de movimentos) têm sido alvo de críticas principalmente, face a relação dessas estruturas habitacionais e a emergência de problemas sociais graves. De fato, conjuntos habitacionais tem sido associados com noções de segregação, marginalização, violência dentre outros. Em Recife, como em outras capitais, a construção de grandes conjuntos habitacionais na década de 70, em áreas periféricas, longe dos centros urbanos acabavam gerando vastos problemas para os governos locais. Conjuntos com milhares de unidades habitacionais foram construídos pelas COHABs no meio do nada, criando problemas de transporte, infra-estrutura, alem de causar maiores custos à população pela distância ao trabalho e pela impossibilitando de prestação de serviços por outros membros da familia. Um dos primeiros equívocos possíveis de se diagnosticar após mais de tinta anos de implantação desses conjuntos, foi a concepção destes espaços como bairros essencialmente residenciais, faltando qualquer referência quanto a inclusão de uma vida urbana e a complexidade das atividades relacionadas ao morar. Estes espaços concebidos como áreas de residência, na realidade, foram transformados em espaços de vivência e, nessa condição, foram sendo criadas condições para a instalação de atividades mistas de modo a promover a sustentabilidade nesta vida periférica. O artigo exemplifica estas transformações espaciais identificando a concepção urbana tanto da proposta original como da área transformada, identifica os processos de mudanças no uso e experiência dos espaços privados e públicos resultantes.os resultados apontam para uma inversão na forma de utilização do espaço, virando pelo avesso as concepções urbanas propostas. Finalmente são discutidas as implicações de tais transformações, assim como as lições para novas concepções de áreas de habitações populares. Palavras-chave: conjuntos habitacionais, avaliação do espaço, morfologia 1

Virando pelo avesso: transformações do espaço urbano em conjuntos habitacionais do Recife Circe Maria Gama Monteiro 1 Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano MDU/UFPE Introdução Os conjuntos habitacionais implantados no Brasil desde a década de 70, com soluções urbanas advindas dos preceitos do movimento moderno, têm sido objeto de severas críticas principalmente pelas relações entre essas estruturas e a emergência de problemas sociais graves. De fato, conjuntos habitacionais tem sido associados com noções de segregação, marginalização, violência dentre outros. Em Recife, como em outras capitais, a década de 70 foi marcada pela construção de grandes conjuntos habitacionais, a maioria em áreas periféricas longe dos centros de serviços e que acabavam se tornando áreas problemas para os governos locais. Conjuntos com milhares de unidades habitacionais eram construídos pelas COHABs no meio do nada, demandando transporte, infraestrutura, e serviços de natureza urbana.. Estes complexos habitacionais eram, na maioria das vezes, entregues a sua própria sorte, visto que as prefeituras das municipalidades não tinham condições de fornecer serviços urbanos, muito menos efetuar alguma fiscalização do espaço, fazendo que a própria população assumisse o papel de agente transformador de sua realidade. Embora os locatários tivessem conhecimento de que qualquer mudança ou reforma a ser efetuada no imóvel deveria ser aprovada pelo órgão gestor competente, ou seja a COHAB, na prática a completa ausência de fiscalização, levou os moradores a expandirem suas casas, a se apropriarem dos espaços públicos e a dar novos contornos a seu espaço de moradia. O resultado destas transformações já foi descrito como a "favelização" dos conjuntos habitacionais, e visto como resultado indesejável. Por outro lado, tais transformações nos fornecem informações sobre a concepção espacial dos moradores de suas necessidades, de seus valores culturais e sociais e mesmo da imagem almejada do lugar de moradia. Alguns exemplos passam a ser consideradas como boas práticas urbanas levando a sustentabilidade local sendo portanto ressaltada a necessidade de serem melhor estudadas e avaliadas. 2

Experiências similares de transformações espontâneas de áreas residenciais, são pouco reportadas em países desenvolvidos onde leis urbanas são mais fortemente controlados. Autores como Teymur (1992) apontam a necessidade de re-humanização destas áreas habitacionais nas cidades européias após constatação de seus efeitos perversos sobre as novas gerações. Hillier (1989), analisa as condições morfológicas do uso de de uma série de espaços residenciais vernáculos, tradicionais e modernistas, de modo a compreender sua lógica social, visto que entende que o que deve ser procurado é uma relação entre sujeitos sociais (seja indivíduo ou grupo) e o objeto espacial. Assim, nas ultimas décadas temos assistido ao crescimento de investigações sobre a experiência do usuário com o ambiente construído, em várias perspectivas como as avaliações pósocupação, que avalia a concepção de ambientes com a efetiva utilização dos mesmos pelos usuários; as perspectivas psico-ambientais que procuram compreender comportamentos, ações, e sentimentos emanados na interrelação do usuário com o ambiente e as análises morfológicas que descrevem a ocorrência de fatos, eventos e movimentos no espaço na tentativa de consubstanciar teorias sobre a relação do habitante com o espaço primário da casa e do bairro. Antecedentes: Há vários anos conjuntos habitacionais como o IPSEP na área central do Recife, Rio Doce em Olinda e Curado III e IV em Jaboatão vêm sendo monitorados em estudos exploratórios focalizando aspectos de natureza diversas. Nestes estudos (Monteiro, Trigueiro e Loureiro, 1995), registram que espaços construídos nestes conjuntos habitacionais começaram a sofrer alterações quase que imediatamente após a sua ocupação e analisam as adaptações no espaço doméstico das habitações. Monteiro (1997) desenvolveu estudo comparativo da experiência doméstica em moradias de diversas classes sociais, incluindo o conjunto habitacional do Curado e IPSEP, demostrando os problemas de adaptação dos hábitos de vida doméstica da população à rígida tipologia destes apartamentos. Amorim e Loureiro (2000) discutem a natureza das mudanças morfológias e tipológicas em várias destas áreas como decorrência das concepções formais dos planos. Rigatti (1997) também apresentando processos semelhantes proporcionando uma detalhada descrição das transformações sofridas em um conjunto habitacional em Porto Alegre, onde, após a ocupação, parte do conjunto foi invadido, tendo sua concepção original drasticamente transformada nos anos subsequentes 3

Resultados prévios têm revelado que aspectos específicos de configuração espacial associam-se a formas diversas de atividades e de comportamento social e que as normas segundo as quais os espaços são organizados, no sentido de promover a integração e a segregação de atividades e seus atores, relacionam-se consistentemente com necessidades dos usuários, variando entre sociedades, entre grupos distintos em uma mesma sociedade e ao longo do tempo. Procurando ter em mente que o uso do espaço, especialmente o de moradia, está fortemente relacionado a fatores individuais, sociais e culturais buscou-se associar as descrições morfológicas com a efetiva experiência de atividades cotidianas desenvolvidas no tempo. O conjunto do Curado III localizado no município de Jaboatão, na região periférica oeste de Recife, é apresentado de modo a exemplificar o que identificamos como processo de reconstrução da urbanidade. Criando o pacto coletivo De modo geral, as primeiras transformações que ocorrem são distantes das unidades habitacionais e tendem a ocupar áreas consideradas de uso indefinido. No perímetro da quadra em áreas adjacentes as vias de acesso são construídos os primeiros abrigos para automóveis, depois fechados em garagens, depois transformados depósitos. Em vias de movimentação e de penetração na áreas estas garagens são posteriormente ocupadas por usos comerciais e de serviços. Quase todos os conjuntos habitacionais populares no período não previram a propriedade de automóveis por parte dos moradores. Garagens ou espaços para estacionamentos são inexistentes. As vias quase sempre de dimensões reduzidas não permitem estacionamentos permanentes. Por outro lado os moradores requerem a presença dos veículos o mais próximo possível da residência, sendo requisito importante a localização das garagens ou local de estacionamento num angulo de visão do interior da casa. O segundo processo que se inicia parte dos moradores dos andares térreos e consiste na apropriação de espaços com a construção de cercas e muros. Este processo proporciona a criação de um pacto coletivo, onde de maneira sub-reptícia se estabelece a prática de ocupações de espaços, nesta condição a distinção não é entre espaços públicos, ou semi- públicos e privados; mas entre espaços com funções, onde se circula ou acontecem atividades e os vazios. Os vazios são de ninguém e portanto passíveis de ocupação. Moradores raramente reclamam destas invasões e 4

apropriações, pois sabem que está sendo estabelecido o seu direito de fazer o mesmo, quando lhe aprouver. As observações indicam que as primeiras expansões das moradias se dão também nas habitações térreas que apresentam expansão dos limites da habitação ao redor da unidades, a maioria abrigando novas salas, garagens e principalmente terraços. No caso do Curado foram mapeadas todas as expansões habitacionais, a localização de novas portas e janelas e principalmente os novos acessos estabelecidos para as habitações. Não só os apartamentos térreos sofrem expansões, geralmente uma estrutura serve de base à ampliação do primeiro Foto1. Apartamentos do térreo e do 1 andar tornam-se um duplex. ou segundo pavimentos, ou ainda térreo e primeiro pavimento participam de uma mesma reforma, transformando dois apartamentos em um duplex. Finalmente em um terceiro estágio de ocupação os espaços livres e públicos também são apropriados pelos moradores com fins de geração de renda. Escolas, botecos, consultório odontológico, como também estabelecimentos de lazer, ausentes na concepção do conjunto, surgem por iniciativa e necessidade dos moradores, como tentativa de vencer as dificuldades geradas pela distância em relação a qualquer centro urbano. Os dados registrados em imagens 3D permitem visualizar a morfologia resultante inclusive bloqueios de circulação, criação de espaços secundários, enfim, perceber os contornos atuais da espaço do Curado. Figura 1. Vista 3D das quadras A, B e C antes das transformações 5 efetuadas

. Figura 2. Vista 3D das quadras A, B e C após as transformações efetuadas. A urbanidade da área foi também analisada pela observação das vias com maior movimento, do estabelecimento de espaços de convivência, de bares onde os homens se encontram, e dos espaços onde as mulheres puxam suas cadeiras à tarde para conversar e interagir com vizinhas. Sob a forma de entrevista e observações no local, procuramos entender a lógica da espacialização das atividades dos moradores, como também a natureza e significado das reformas efetuadas pelos mesmos, modificações que refletem-se no arranjo urbano do conjunto habitacional. As transformações efetuadas pelos moradores são de aumento da área construída, privatização dos espaços públicos pela expansão das unidades habitacionais, re- hierarquização dos espaços públicos etc. O seguinte gráfico dá uma idéia do nível de transformações físicas, por setores, que têm sido efetuadas no Curado III por parte de seus moradores. 6

Figura 3. Planta de fundo-figura de parte do Conjunto Habitacional Curado III, onde os espaços em preto representam as áreas ocupadas por edificações e pelas áreas de uso privativo e os espaços em branco representam os espaços livres de edificação e de uso público. Na primeira imagem, temos a situação original do conjunto e, na seguinte, a situação atual. Verificamos que as construções que abrigam as atividades vitais (comércio, serviço, educação, saúde e lazer), ausentes do projeto do Curado III, concentram-se na área de maior integração do conjunto, o setor C, à margem das vias de maior conectividade e possuindo aberturas voltadas para as mesmas, como sendo esse um fator determinante de seu sucesso econômico e social. Este fenômeno caracteriza um padrão espacial gerado pelo movimento e comunicação possíveis, produto do arranjo morfológico atual do Curado III. Adiante dispomos um gráfico comparativo dos usos atuais, em termos percentuais, de duas quadras para uma ilustração comparativa. Tipos de Uso da Área Construída do Setor C HA BITAÇÃ O 33% 42% GARAGEM COMÉRCIO SERVIÇO 17% 0% 5% 3% ÁREA PÚBLICA APROPRIADA ÁREA PÚBLICA Tipos de Uso da Área Construída do Setor F 12% 2% 86% HA BIT AÇÃO GA RA GEM COM ÉRCIO Figura 5. Gráfico de uso dos setores 7 C e H.

Construindo a urbanidade: lógica de viver Foto2. via interna ao setor C. Foto3. Setor B : protegido da rua por muros e construções Visando compreender a estruturação global do movimento no conjunto procedemos a uma análise sintática através de uma mapa axial das vias de circulação do conjunto buscando identificar suas qualidades de acessibilidade, espaços mais integrados e mais segregados. No projeto, as vias de acesso às quadras eram mais longas e os espaços vazios da quadra ligavam-se à Rua Dolores Duran, via de entrada e potencial eixo de integração do conjunto. Verificamos, na nova configuração, que as quadras menores, de caminhos mais curtos, tenderam a se fechar, criando uma verdadeira muralha para o exterior e voltando seus acessos e circulações para o interior da quadra. 8

MAIS INTEGRADO MAIS SEGREGADO Figura 6. Eixo de integração, a nível global, do Projeto do Conjunto Habitacional CuradoIII antes das modificações efetuadas pelos moradores MAIS INTEGRADO MAIS SEGREGADO Figura 7. Eixo de integração, a nível global, do Projeto do Conjunto Habitacional Curado III após as modificações efetuadas pelos moradores. Numa relação local, a dinâmica inter-quadras também se modifica: se originalmente o sistema composto por grandes linhas fazia com que os setores A, B e C constituíssem o núcleo de integração do conjunto, hoje os essa dinâmica sofreu alterações, os espaços vazios internos às quadras ligam-se às vias de acesso a entradas específicas (das residências que têm ligação direta com a rua), compreendendo percursos mais curtos e restringindo o núcleo de integração ao setor C. Como conseqüência, ruas antes mais profundas, como a Francisco Soares Cunha, tornaram-se mais integradas internamente a essa área, o que nos faz supor que esse é um percurso provavelmente muito utilizado pelos pedestres em seus deslocamento pelo bairro. 9

Que lógica é esta? Segundo Amorim & Loureiro (2000), o princípio gerador dessas transformações é a procura por uma acessibilidade direta da rua para a unidade habitacional, ou seja, como negação ao princípio condominial, a população gera espaços de acessibilidade convexos e menores, numa relação público privado presente na tipologia de uma casa. Esse processo de apropriação dos espaços do conjunto habitacional, modificam a dinâmica intraquadras, seja pelo estabelecimento de caminhos informais para uso de pedestres e veículos, pela concretização do desejo de acessibilidade direta da rua ou pela modificação do sistema de controle. Modificando as vias de acesso à quadra, que eram geralmente mais longas, através da geração de pátios internos privados, passagens mais curtas, os moradores obtêm um maior controle do espaço, como também criam outras possibilidades de relações entre si e com estranhos ao assentamento. De acordo com Rigatti (1997), O conjunto de relações espaciais existentes numa morfologia urbana é definido pelo arranjo dos espaços abertos formados pelos limites físicos organizados pela disposição das barreiras à permeabilidade das pessoas. Alterado o arranjo morfológico, alteram-se as configurações. Desta forma, ficam estabelecidas as modalidades de interfaces sociais possíveis numa dada morfologia, trazendo consigo, portanto, profundas implicações sociológicas. Observa-se que as transformações que vêm ocorrendo parecem tentar superar as restrições geométricas de uma configuração arquitetônica baseada nas regras modernistas de organização do espaço. No sentido de restituir algumas propriedades que estavam ausentes no ambiente projetado, a morfologia do espaço é modificada (fenômeno em andamento contínuo), e a estrutura atual, gerando novas relações configuracionais, assemelha-se mais aos tecidos urbanos tradicionais, resultantes de assentamentos espontâneos. Lições e recomendações O projeto urbanístico do Curado III envolve princípios formais baseados em algumas noções de igualdade, repetição, geometria, ritmo, harmonia, etc, sistema geométrico claramente identificável em planta. No entanto, confrontando-se esses conceitos com espaços reais, a ordem projetual não necessariamente rebate-se na experiência espacial, tornando tais noções lógicas incompreensíveis a nível de experiência concreta. As intervenções dos moradores ocorrem no sentido de criar relações mais locais, características da vida em conjuntos de habitação multifamiliar e vilas, como poder se reunir no boteco com os vizinhos, espreguiçar-se numa rede na varanda 10

enquanto observa o movimento na rua, etc. Ao ocupar os espaços que lhes foram pensados logicamente, a comunidade recria-os pela incorporação de seus valores culturais e de necessidade de vida, gerando recintos que lhe forneçam um sentido de identidade. O desenvolvimento deste estudo continuará buscando uma aprofundação maior no entendimento das naturezas espacial, funcional, social e psicológica das manifestações apresentadas neste documento. Agradecimentos: Este trabalho contou com a inestimável participação dos bolsistas de iniciação científica Ana Rosaly de Medeiros Justo, Eveline de Sena Carvalho, Robson Canuto e Thyana Galvão. Referências Bibliográficas RIGATTI, Décio.1997. Do Espaço Projetado ao Espaço Vivido: Modelos de Morfologia Urbana no Conjunto habitacional Rubem Berta. São Paulo. MONTEIRO, Circe. 1997. The Morphology of Domestic Experience: A comparative analysis of the spatial patterns of domestic activity in Brazilian dwellings. LOUREIRO, Cláudia; MONTEIRO, Circe; TRIGUEIRO, Edja. 1995. Reconciliação Com O Espaço Real: Transformações Morfológicas em Conjuntos Habitacionais. Trabalho apresentado no VI Encontro Nacional de Tecnologia do Ambiente Construído. AMORIM, Luiz Manuel do Eirado; LOUREIRO, Cláudia. Agosto/setembro 2000. Uma Figueira Pode Dar Rosas? Um Estudo Sobre As Transformações em Conjuntos Populares. Artigo submetido ao NUTAU 2000, São Paulo. HILLIER, B (1989) Against Enclosure. 11