DEPARTAMENTO DE LETRAS



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DEPARTAMENTO DE LETRAS COMANDOS PARAGRAMATICAIS: O PRECONCEITO (SOCIO)LINGUÍSTICO NO BRASIL Kleberson da Silva Alves (FACSAOBENTO-BA) Jeferson da Silva Alves (PUC-MG) jefersonsalves@gmail.com A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer (Graciliano Ramos). Antes de uma reflexão sobre a diversidade linguística e o preconceito sócio-racial é importante conceituarmos o termo cultura, fundamental para nossas reflexões. De acordo com o Dicionário Brasileiro Globo, edição de 1989, cultura designa as ações relativas à lavoura e, quanto para o ser humano, estado de quem tem desenvolvimento intelectual; conjunto de conhecimentos; instrução; saber; [ ] adiantamento; civilização. Já o termo culto, ainda de acordo com o dicionário, designa alguém civilizado, instruído, sabedor etc. (Fernandes; Luft; Guimarães, 1989). Assim culto é alcunhado para denotar o individuo que partilha de determinadas normas culturais e, obviamente, linguísticas. Ao contrário deste pensamento, cultura é entendido como todo o conjunto de conhecimentos aplicados ao convívio social (Cf. Silva, 2005). De acordo com o antropólogo Laraia (2004, p. 94-101), a cultura é sempre dinâmica, está em constante estado de transformação: processo que é acentuado quando diversas culturas se encontram. Ora, o Brasil possui diversos matizes linguísticas e culturais, então como pleitear uma língua portuguesa que despreze (ou menospreze) essa diversidade. A tradição gramatical apresenta dois níveis para a língua, um culto e outro inculto, conectando a este, adjetivos como: rude, tosco, grosseiro, bronco, selvagem, incivilizado, cru, ignorante o mesmo é apresentado no verbete inculto do Dicionário Brasileiro Globo, e vinculando o adjetivo culto ao mundo da leitura, ou seja, para eles o ideal de língua, menosprezando a fala da maioria da população, juntamente com suas ideologias etc. 42 SOLETRAS, Ano IX, Nº 17. São Gonçalo: UERJ, jan./jun.2009

FACULDADE DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES Os divulgadores desta tradição em alguns elementos possuem alguma razão: a língua não é única, só o pecam por apresentarem níveis onde uma variável é considerada superior. Segundo Laraia (2004, p. 80-86), e nossas vivências, participamos de forma diferenciada da cultura em que nascemos, assim nem todos os elementos desta cultura nos são socializados, ou seja, um perfeito conhecedor da norma padrão, certamente, é um verdadeiro ignorante para muitos dos aspectos da vida dos, considerados, incultos. 2 Os conhecimentos não devem ser hierarquizados. Segundo Bagno (2003, p. 58-59), quando dizemos que uma pessoa é muito culta, que tem muita cultura estamos dizendo que essa pessoa acumulou conhecimentos de uma determinada modalidade de cultura [a da classe dominante], uma entre muitas. Do ponto de vista sociológico e antropológico, simplesmente não e- xiste nenhum ser humano que não esteja vinculado a uma cultura, que não tenha nascido dentro de um grupo social com seus valores, suas crenças, seus hábitos, seus preconceitos, seus costumes, sua arte, suas técnicas, sua língua (Bagno, 2003, p. 58). Os valores linguísticos sejam os marginalizados, ou os julgados cultos, assim como outros aspectos da vida são construídos a- través do processo de socialização, elemento que é sistematicamente desprezado pelos gramatiqueiros. A título de conhecimento, socialização é o termo utilizado para conceituar o processo em que o individuo, através das experiências e vivências diárias, forma sua identidade. Ademais é também através dela que apreendemos os elementos essenciais ao viver em sociedade (Oppo, 2000), como os elementos essenciais à comunicação, aí incluída a língua. Não se pretende aqui uma rejeição sistemática às normas linguísticas tradicionais, e sim compreendermos que toda expressão linguística possui sua norma (transcrita ou não em forma de gramática) que é construída socialmente (uma gramática social), sendo então compreendida por seus usuários. 2 O diferencial aqui é que apenas alguns possuem meios para divulgar suas normas e valores, a mídia. Para Bagno (2001) a mídia é um dos divulgadores da língua dos comandos paragramaticais, ou seja, expõem as ideias da tradição gramatical de alguns perpetuadores dos preconceitos linguísticos, entre eles Cipro Neto, Arnaldo Niskier, Luiz Antonio Sacconi e Dad Squarisi. SOLETRAS, Ano IX, Nº 17. São Gonçalo: UERJ, jan./jun.2009 43

DEPARTAMENTO DE LETRAS Analisando alguns comentários, feitos por pessoas da mídia brasileira, a respeito da língua portuguesa, falada no Brasil, percebese a falta de respeito, preconceito, desprezo pelos falantes que dela desfrutam, criticando diversos segmentos da sociedade, principalmente aqueles que tiveram e têm suas vozes ocultadas até hoje, como os negros, índios, nordestinos, jovens etc. Segundo Bagno (2001, p. 29): O papel dos meios de comunicação nesse processo evidencia-se, nos dias que correm, pela força crescente de um movimento que denomino neogramatiquice, levado adiante por comandos paragramaticais: programas de rádio e de televisão, colunas de jornais e de revistas, manuais de redação de empresas jornalísticas, consultórios gramaticais por telefone, páginas na internet ( ) etc. Vejamos alguns chavões altamente preconceituosos em relação aos falantes brasileiros, apresentados por Bagno (1999; 2001), todos expressos pela mídia impressa: 1. Fala-se mal o português. Ou melhor, fala-se errado (Sérgio Limoli, Isto É, 20/8/1997) 2. Só índio fala pra mim fazer (Eduardo Martins, Isto É, 20/8/1997) 3. Professor de português um idioma que de tão maltratado no dia-a-dia dos brasileiros, precisa ser divulgado e explicado para os milhões que o têm como língua materna (Mario Sabino, Veja, 10/9/1997) 4. A língua é difícil (Marilene Felinto, Folha de S. Paulo, 28/10/1997) 5. Atentados contra a língua portuguesa (Daniel Castro, Folha de S. Paulo, 26/10/1997) 6. Nunca se falou tão mal o idioma de Ruy Barbosa (Arnaldo Niskier, Folha de S. Paulo, 26/10/1998) 7. A língua portuguesa propriamente dita é bastante difícil (Arnaldo Niskier, O Dia, 28/2/1999) 8. Basta pensar que a língua brasileira é outra. Uma pequena mostra de erros de redação coletados na imprensa revela que o português aqui transformou-se num vernáculo sem ló- 44 SOLETRAS, Ano IX, Nº 17. São Gonçalo: UERJ, jan./jun.2009

FACULDADE DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES gica nem regras (Marilene Felinto, Folha de S. Paulo, 4/1/2000) 9. Na Bahia, porém, na sempre formidável Bahia, as pessoas se acordam. O mais interessante é que se acordam e vão direto à praia (Luiz Antonio Sacconi, Não erre mais!, p. 73) Podemos ver o preconceito estampado também, no dicionário de questões vernaculares, deixando claro o alto preconceito em relação às classes sociais não dominantes, ou seja, a maioria da população, dominada e sem voz na sociedade, segundo o autor do citado dicionário, Napoleão de Almeida, criticado por Bagno, (1999, p. 79): Os delinquentes da língua portuguesa fazem do principio histórico quem faz a língua é o povo verdadeiro moto para justificar o desprezo de seu estudo, de sua gramática, de seu vocabulário, esquecidos de que a falta de escola é o que ocasiona a transformação, a deterioração, o apodrecimento de uma língua. Cozinheiras, babás, engraxates, trombadinhas, vagabundos, criminosos é que devem figurar, segundo esses derrotistas, como verdadeiros mestres de nossa sintaxe e legítimos defensores do nosso vocabulário. Na linguística há uma regra que diz que para existir uma língua é necessário que haja seres humanos que a falem, contudo quando analisamos os chavões supracitados, nota-se que a preocupação maior é com a língua do que com os seres que dela desfrutam, sabemos ainda que todo ser humano é um animal político, logo tratar de língua é tratar de um tema político, já que se trata também de seres humanos, e sem estes não haveria língua. Percebe-se que os ditos cientistas da língua (os gramatiqueiros) continuam a propagar mitos que vem de séculos a séculos e continuam firmes e fortes nos dias atuais, tais quais os brasileiros não sabem o português, somente em Portugal o português é bem falado, refletindo aqui um complexo de inferioridade, em relação ao europeu (colonizador) e os brasileiros (colonizados), segundo Bagno (1999, p. 21), não é difícil encontrar intelectuais renomados que lamentam a corrupção do português falado no Brasil, língua de matutos, de caipiras infelizes, arremedo tosco da língua de Camões. Outra questão constante nesses manuais de propagação do como bem dizer o português, é que o português é muito difícil, e isso só ocorre porque o nosso ensino formal é pautado todo em cima SOLETRAS, Ano IX, Nº 17. São Gonçalo: UERJ, jan./jun.2009 45

DEPARTAMENTO DE LETRAS das regras da língua de Camões, ou seja, na gramática da língua portuguesa europeia, e não em nosso real uso, em nossa língua materna, aquela que todos falamos e é adquirida antes mesmo de chegarmos à escola, ou seja, aquela que valorize nossos processos de socialização. Esses propagadores dos mitos, como se vê, baseiam-se na crença de que há somente uma língua portuguesa, a qual é ensinada nas escolas, explicada nas gramáticas e catalogadas nos dicionários, e digna dessa alcunha de língua portuguesa. Segundo Bagno (1999, p. 40), qualquer manifestação que escape desse triângulo escolagramática-dicionário é considerada, sob a ótica do preconceito linguístico, errada, feia, estropiada, rudimentar, deficiente, e não é raro a gente ouvir que isso não é português. O texto que segue (Português ou Caipirês?), de autoria de Dad Squarisi, publicado no Correio Brasiliense em 22/06/96 e republicado no Diário de Pernambuco em 15/11/98 (Apud Bagno, 1999, p. 95-96) sintetiza os preconceitos e chavões expostos por outros autores: Fiat lux. E a luz se fez. Clareou este mundão cheinho de jecas-tatus. À direita, à esquerda, à frente, atrás, só se vê uma paisagem. Caipiras, caipiras e mais caipiras. Alguns deslumbrados, outros desconfiados. Um só um iluminado. Pobre peixinho fora d água! Tão longe da Europa, mas tão perto de paulistas, cariocas, baianos e maranhenses. Antes tarde do que nunca. A definição do caráter tupiniquim lançou luz sobre um quebra-cabeça que atormenta este país capiau desde o século passado. Que língua falamos? A resposta veio das terras lusitanas. Falamos o caipirês. Sem nenhum compromisso com a gramática portuguesa. Vale tudo: eu era, tu era, nós era, eles era. Por isso não fazemos concordância em frases como Não se ataca as causas ou vende-se carros. Na língua de Camões, o verbo está enquadrado na lei da concordância. Sujeito no plural? O verbo vai atrás. Sem choro nem vela. Os sujeitos causas e carros estão no plural. O verbo, vaquinha de presépio, deveria acompanhá-los. Mas se faz de morto. O matuto, ingênuo, passa batido. Sabe por quê? O sujeito pode ser ativo ou passivo. Ativo, pratica a ação expressa pelo verbo: Os caipiras (sujeito) desconhecem (ação) o outro lado. Passivo, sofre a ação: O outro lado (sujeito) é desconhecido (ação) pelos caipiras. Reparou? O sujeito o outro lado não pratica a ação. 46 SOLETRAS, Ano IX, Nº 17. São Gonçalo: UERJ, jan./jun.2009

FACULDADE DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES O texto surgiu em uma época que o então presidente Fernando Henrique Cardoso, em visita a Portugal, fez declarações a respeito do falar dos brasileiros, diga-se de passagem, que foram declarações infelizes e altamente preconceituosas. Segundo o ex-presidente, o ú- nico ser iluminado no Brasil como define a jornalista Dad Squarisi, todos os brasileiros são caipiras, pois, segundo nossa representante legal dele (O único ser iluminado no Brasil), em sua coluna Dicas de Português, nós, os brasileiros não sabemos falar o português. Analisando essa síntese do preconceito linguístico, lembramos de um personagem da mitologia grega chamado de Procusto, o qual mandou construir uma cama com as medidas do seu próprio corpo (que aqui chamaremos de gramática, ou língua do iluminado), segundo a lenda, Procusto era um malfeitor que morava numa floresta, e que caçava pessoas. Quando as capturava, o que ele fazia? Amarrava-as na cama que tinha suas medidas. Se a pessoa fosse maior do que a cama o que nosso iluminado fazia? Cortava fora o que sobrava, e se a pessoa fosse menor? Ele esticava até a pessoa caber na medida dele (Bagno, 2003, p. 54). Viu-se nas palavras proferidas pelo ex-presidente, com as quais a colunista concorda plenamente, a representação da intolerância diante do outro, do diferente, daquilo que eles desconhecem. Segundo Bagno (2003, p. 54), Fernando Henrique e Dad Squarisi, representa[m] a visão de mundo totalitária daquele sujeito que quer moldar todos os demais seres humanos à sua própria imagem e semelhança, recusando, logo assim, a multiplicidade, a diversidade, pois para eles quem não possui as suas medidas não pode ficar por aí solta, a não ser que sai jogando fora o que eles (gramática, iluminado, Procusto) não o têm, ou então se esticando até ter o mesmo que eles o têm, e caber nas medidas estabelecidas por eles. Enfim, do ponto vista antropológico, a linguagem é um dos meios de socialização (criação/transformação) do individuo, porém não podemos desprezar que sua própria origem se dá em processo análogo ao que desempenha. Em outras palavras, a língua é criação e fruto da intervenção humana, portanto mutável. Ademais, devemos considerar a diversidade linguística, como elemento das diferentes socializações pela qual cada indivíduo é inserido no decorrer de sua vida. SOLETRAS, Ano IX, Nº 17. São Gonçalo: UERJ, jan./jun.2009 47

DEPARTAMENTO DE LETRAS Para percebermos como a socialização interfere na ação e exposição dos indivíduos sobre a realidade, vamos citar um caso apresentado por Roger Keesing (Apud Laraia, 2004, p. 72): Uma jovem da Bulgária ofereceu um jantar para os estudantes americanos, colegas de seu marido, e entre eles foi convidado um jovem a- siático. Após os convidados terem terminado os pratos, a anfitriã perguntou quem gostaria de repetir, pois uma anfitriã búlgara que deixasse seus convidados se retirarem famintos estaria desgraçada. O estudante asiático aceitou um segundo prato, um terceiro enquanto a anfitriã ansiosamente preparava mais comida na cozinha. Finalmente, no meio de seu quarto prato o estudante caiu ao solo, convencido de que agiu melhor do que insultar a anfitriã pela recusa da comida que lhe era oferecida, conforme o costume de seu país. No exemplo citado, os envolvidos foram, em algum momento da vida, socializados para compreender valores linguísticos próximos. Porém as diferenças culturais, elemento de percepção da realidade, inviabilizaram a comunicação. Cada um dos envolvidos interpretou a situação a partir de seus elementos de percepção. No Brasil, país da diversidade, com suas diversas matizes linguísticas e culturais, somos socializados de forma diferenciada, contudo os elementos linguísticos e culturais, necessários à comunicação, são compreendidos por todos, sejam eles julgados cultos ou incultos. REFERÊNCIAS BAGNO, Marcos. A norma oculta: língua & poder na sociedade brasileira. São Paulo: Parábola, 2003.. Dramática da língua portuguesa: tradição gramatical, mídia & exclusão social. 2ª ed. São Paulo, 2001.. Pesquisa na escola: o que é como se faz. 13ª ed. São Paulo: Loyola, 2003.. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 16ª ed. São Paulo: Loyola, 1999. FERNANDES, Francisco; LUFT, Celso Pedro; GUIMARÃES, F. Marques. Dicionário brasileiro Globo. 12ª ed. São Paulo: Globo, 1989. 48 SOLETRAS, Ano IX, Nº 17. São Gonçalo: UERJ, jan./jun.2009

FACULDADE DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 17ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. OPPO, Anna. Socialização política. In: BOBBIO, Norberto; MAT- TEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Tradução de Carmen C. Varriale et alii. 5ª ed. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000, p. 1202-1206. SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Cultura. In:. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2005, p. 85-88. SOLETRAS, Ano IX, Nº 17. São Gonçalo: UERJ, jan./jun.2009 49