O uso de BIP e demais formas de vinculação ao trabalho: a jurisprudência e o direito à desconexão do trabalho.



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Transcrição:

O uso de BIP e demais formas de vinculação ao trabalho: a jurisprudência e o direito à desconexão do trabalho. Jorge Luiz Souto Maior (*) A respeito da utilização de BIP assentou-se na jurisprudência o entendimento de que tal circunstância fática não confere qualquer direito adicional ao empregado. Assim decidem os Tribunais: Horas Extras - Uso do BIP - Não Caracterizado o "Sobreaviso". (Orientação Jurisprudencial 49 da SDI do TST) Horas Extras - Regime de Sobreaviso - BIP - O regime de remuneração de horas de "sobreaviso" previsto para os ferroviários na CLT (art. 244, 2º) só pode ser estendido a outras categorias, por analogia, se o empregado "permanecer em sua própria casa, aguardando a qualquer momento o chamado para o serviço", como exigido na norma específica. A utilização do "BIP" pelo empregado, por si só, não permite seja considerado em regime de sobreaviso. (TST - E-RR 106.196/94.1 - Ac. SBDI1 144/96 - Rel. Min. Manoel Mendes de Freitas - DJU 23.08.1996) Horas Extras - Uso do BIP - Não Caracterizado Sobreaviso - A jurisprudência desta Corte vem entendendo no sentido de que o uso do BIP não é suficiente para caracterizar o regime de sobreaviso, uma vez que o empregado não permanece em sua residência aguardando ser chamado para o serviço. O uso do aparelho BIP não caracteriza necessariamente tempo de serviço a disposição do empregador, já que o empregado que o porta pode deslocar-se para qualquer parte dentro do raio de alcance do aparelho e até mesmo trabalhar para outra empresa (hipótese dos autos) quando não esteja atendendo chamado pelo BIP. O regime de sobreaviso contemplado na CLT destina-se ao empregado que permanecer em sua própria casa, aguardando a qualquer momento a chamada para o serviço. (*) Juiz do Trabalho, titular da 3 a. Vara de Jundiaí/SP. Professor de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da USP.

(TST - RR 257.401/1996.9-3ª T. - Rel. Min. Francisco Fausto - DJU 12.06.1998) Horas Extras - Uso do BIP - O entendimento jurisprudencial é no sentido de que não cabe o pagamento, como extras, das horas em que o empregado porta bip, uma vez que não está tolhido em sua liberdade de locomoção. (TST - RR 194.782/95.5 -Ac. 4ª T. 5.487/96 - Rel. Min. Valdir Righetto - DJU 20.09.1996) SOBREAVISO - USO DE BIP - Na esteira da Orientação Jurisprudencial nº 49, da SDI-1 do C. TST, o uso de BIP não caracteriza o sobreaviso previsto no 2º, do art. 244, da CLT, pois o empregado que utiliza tal aparelho não precisa permanecer em sua residência aguardando o chamado para o serviço, por se tratar o mesmo de aparelho móvel de comunicação. (TRT 2ª R - 19990633358 RO - Ac. 20010069776-4ªT. - Rel. Odette Silveira Moraes - DOESP 09.03.2001) Sobreaviso - Não Configuração - Ausência De Exigência De Disponibilidade Do Empregado - As horas de sobreaviso somente são devidas às pessoas que se privam de sua liberdade de locomoção para estarem à disposição do empregador. Não havendo exigência de que o empregado permanecesse sempre a espera de uma eventual chamada para o serviço, não há que se falar em sobreaviso. (TRT 9ª R. - RO 12074/1998 - Ac. 10436/99-1ª T. Rel. Juiz Tobias de Macedo Filho - DJPR 14.05.1999) Horas Extras - Uso do BIP - A jurisprudência já se consolidou no sentido de que o uso do BIP não caracteriza tempo de sobreaviso à disposição do empregador. Nesse sentido é a seguinte orientação jurisprudencial da SDI do Col. Tribunal Superior do Trabalho: Horas Extras - Uso do Bip. Não Caracterizado o 'Sobreaviso. (TRT 10ª R. - RO 5.330/96-1ª T. - Rel. Juiz João Mathias de Souza Filho - DJU 17.10.1997) Como se vê, o ponto central das decisões mencionadas, que traduzem o entendimento praticamente unânime a respeito da matéria, tomam por base o aspecto da limitação da liberdade sob a ótica da possibilidade livre de locomoção do empregado, mas deixam de lado o aspecto psíquico da vinculação incessante ao trabalho. A avaliação da presente

questão sob este outro prisma sugere a investigação a respeito da idéia que se vem desenvolvendo na Europa, sobretudo na França, sobre o direito do trabalhador de se desconectar, efetivamente, do trabalho. O direito à desconexão, aparentemente surrealista, apresenta grande pertinência com o nosso tempo e também é revelador de várias contradições que circundam o chamado mundo do trabalho. A pertinência situa-se no próprio fato de que ao se falar em desconexão faz-se um paralelo entre a tecnologia, que é fator determinante da vida moderna, e o trabalho humano, com o objetivo de vislumbrar um direito do homem de não trabalhar, ou, como dito, metaforicamente, o direito a se desconectar do trabalho. Mas, esta preocupação é em sim mesma um paradoxo, revelando, como dito, as contradições que marcam o nosso mundo do trabalho. A primeira contradição está, exatamente, na preocupação com o não-trabalho em um mundo que tem como traço marcante a inquietação com o desemprego. A segunda, diz-se respeito ao fato de que, como se tem dito por aí à boca pequena, é o avanço tecnológico que está roubando o trabalho do homem, mas, por outro lado, como se verá, é a tecnologia que tem escravizado o homem ao trabalho. Em terceiro plano, em termos das contradições, releva notar que se a tecnologia proporciona ao homem uma possibilidade quase infinita de se informar e de estar atualizado com seu tempo, de outro lado, é esta mesma tecnologia que, também, escraviza o homem aos meios de informação, vez que o prazer da informação transforma-se em uma necessidade de se manter informado, para não perder espaço no mercado de trabalho. E, por fim, ainda no que tange às contradições que o tema sugere, importante recordar que o trabalho, no prisma da filosofia moderna, e conforme reconhecem vários ordenamentos jurídicos, dignifica o homem, mas

sob outro ângulo, é o trabalho que retira esta dignidade do homem, impondolhe limites enquanto pessoa na medida em que avança sobre a sua intimidade e a sua vida privada. Devo esclarecer que quando se fala em direito a se desconectar do trabalho, que pode ser traduzido como direito de não trabalhar, não se está tratando de uma questão meramente filosófica ou ligada à futurologia, como a que nos propõe Domenico de Masi. Não se fala, igualmente, em direito em seu sentido leigo, mas sim numa perspectiva técnico-jurídica, para fins de identificar a existência de um bem da vida, o não-trabalho, cuja preservação possa se dar, em concreto, por uma pretensão que se deduza em juízo. Um direito, aliás, cujo titular não é só quem trabalha, mas, igualmente: a própria sociedade, aquele que não consegue trabalho, porque outro trabalha excessivamente, e os que dependem da presença humana do que lhes abandonam na fuga ao trabalho... Não é simples essa tarefa, na medida que remexe com conceitos jurídicos e culturais que estão há muito arraigados à nossa tradição. Fruto de uma concepção formada na sociedade dita industrial, embora, filosoficamente já se diga que estamos na era pós-industrial, o trabalho aparece como identificador da própria condição humana. Como diria o cantor Fagner:...e sem o seu trabalho, o homem não tem honra... Durante muito tempo, portar a Carteira de Trabalho era a demonstração cívica de não ser um vagabundo, o que embora não fosse um crime, já era suficiente para marginalizar a pessoa. Mesmo nos dias atuais, que se notabilzam pelo desmantelamento da ordem produtiva capitalista, ou pela desordem provocada pela nova ideologia econômica mundial, que se convencionou chamar de neoliberalismo, que se funda na idéia do desmanche do Welfare State e no abandono da rede de segurança proporcionada pelo mundo do trabalho, gerando, como resultado, o desemprego em massa (ou estrutural, como preferem alguns), situação esta que se potencializa pela reforma da concepção produtiva, isto é, abandono do modelo fordista de produção, que tinha como linha de conduta a noção da inclusão social, passando-se ao modelo que se baseia na pulverização das fábricas, gerando, por conseqüência, o quase abandono do contrato de trabalho com plenos direitos e do contrato à vida,

forçando o advento de contratos de trabalho precários e o aumento da prestação de serviços por trabalhadores autônomos ou independentes, mesmo nesses dias, em que o fato de não possuir uma Carteira de Trabalho assinada passa a ser até normal, não ter uma ocupação, um trabalho, seja lá qual for, ainda agride os membros da sociedade, sociedade esta que, queira-se ou não, tem como fundamento o contrato social, que, por sua vez, apóia-se na idéia da divisão do trabalho. O trabalho, mesmo com todo o quadro que se desenha no mundo do trabalho e que nega por si só o seu valor (e a prova disso é a constante diminuição dos níveis salariais), ainda é extremamente significativo para as pessoas, a ponto de se manter uma postura social discriminatória com relação a quem não trabalha, mesmo sabendo-se, como se sabe, das extremas dificuldades para encontrar uma ocupação. Por isto, nos vemos forçados ao trabalho até mesmo para não sermos discriminados pela sociedade. Uma sociedade que ao mesmo tempo, sob este aspecto, é extremamente, hipócrita, pois que no fundo o que todo mundo quer mesmo é ficar rico sem trabalhar ou mesmo ficar rico trabalhando, mas almejando parar de trabalhar o quanto antes. Como diria o Barão de Itararé 1, "O trabalho enobrece o homem, mas depois que o homem se sente nobre não quer mais trabalhar". De todo modo, impera, culturalmente, a idéia do trabalho como fator dignificante da pessoa humana e como elemento de socialização do indivíduo, tornando-se um grande desafio falar em direito ao não-trabalho, ainda mais sob o prisma da efetiva proteção jurídica deste bem. Esclareça-se que o não-trabalho aqui referido não é visto no sentido de não trabalhar completamente e sim no sentido de trabalhar menos, até o nível necessário à preservação da vida privada e da saúde, considerando-se essencial esta preocupação (de se desligar, concretamente, do trabalho) exatamente por conta das características deste mundo do trabalho marcado pela evolução tecnologia, pela deificação do Mercado e pelo atendimento, em primeiro plano, das exigências do consumo. É bom que se diga, também, que não é o caso de se amaldiçoar o avanço tecnológico. Este é inevitável e, em certa medida, tem 1. Aparício Torelly, jornalista; cf. José Roberto Torero, Folha de São Paulo, ed. de 15/09/98.

sido benéfico à humanidade (em muitos aspectos). O desafio, sob este prisma, é buscar com que a tecnologia esteja ao serviço do homem e não contra o homem. Neste sentido, vale reproduzir o relato de um especialista em automação, a respeito de uma experiência que teve com a implantação de robôs em uma fábrica de queijos na França: Um cliente, fabricante de queijos, pediu-me um robô que virasse os queijos, na fase de maturação do produto. Em princípio, nenhum problema: sabemos conceber um dispositivo capaz de virar todos os queijos com precisão e delicadeza. Então, instalei um robô queijeiro. Mas, três meses depois, a empresa chamou-me novamente: sua clientela tradicional queixava-se da degradação na qualidade e a empresa começava a perder mercado. No entanto, o dispositivo funcionava muito bem. Fui visitar uma outra fábrica de queijos e constatei que as operárias tocavam nos queijos e até os cheiravam, mas não os viravam sistematicamente. Agora estou entendendo a complexidade real do trabalho delas. Confesso que, na ocasião, não me ocorreu que a relação entre o modo de fazer e a qualidade do produto fosse suficientemente importante para explicar efeitos dos quais se queixava meu cliente. Meu robô, assim que vê um queijo não resiste e plaf vira-o 2. A tecnologia fornece à sociedade meios mais confortáveis de viver, e elimina, em certos aspectos, a penosidade do trabalho, mas, fora de padrões responsáveis, pode provocar desajustes na ordem social, cuja correção requer uma tomada de posição a respeito de qual bem deve ser sacrificado, trazendo-se ao problema, a responsabilidade social. Claro que a tecnologia, a despeito de diminuir a penosidade do trabalho, pode acabar reduzindo postos de trabalho e até eliminando alguns tipo de serviços manuais, mas isto não será, para a sociedade, um mal se o efeito benéfico que a automação possa trazer para a produção, para os consumidores e para a economia, possa refletir também no acréscimo da rede de proteção social (seguro-desemprego e benefícios previdenciários). Recorde-se, ademais, que a própria tecnologia pode gerar novas exigências em termos de trabalho e neste sentido a proteção social adequada consiste em fornecer à mão-de-obra possibilidades em termos 2. Apud Jacques Duraffourg, Um robô, o trabalho e os queijos: algumas reflexões sobre o ponto de vista do trabalho, in Emprego e Desenvolvimento Tecnológico: Brasil e Contexto Internacional, organização DIEESE, São Paulo, 1998, pp. 127-128.

de inovação, deslocamento, reabsorção, e de requalificação profissional. Sem os limites de uma verdadeira responsabilidade, cujos limites devem ser determinados pelo Estado e não pelo livre-mercado, evidentemente, a evolução tecnológica a despeito de gerar conforto estará produzindo o caos. É equivocado imaginar que o direito do trabalho, transcrito na CLT, não se amoldando às novas formas de organização do trabalho, porque criado com base no modelo fordista de produção, não forneça base jurídica para a preservação do aspecto humano e social das relações de trabalho. Os fundamentos e as funções do direito do trabalho (especialmente: o de impedir a exploração do trabalho humano como fonte de riqueza dos detentores do capital; o de manter a ética e a dignidade nas relações de trabalho; o de melhorar as condições de vida do trabalhador; e o de distribuir riqueza) têm razão de ser em qualquer modo de produção ( fordista, taylorista, toyotista etc). Assim, o obstáculo para a aplicação do direito do trabalho nestas novas formas de exploração do trabalho humano somente subsiste quando se abandonam os postulados essenciais do direito do trabalho. Uma vez configurada a relação de emprego, um dos efeitos primordiais a se produzir, sob o prisma do direito ao não-trabalho, é o da declaração do direito à limitação da jornada de trabalho, que se trata, vale lembrar, de um direito humano, reconhecido mundialmente pelos diversos instrumentos internacionais que as Nações civilizadas, em busca da paz mundial, produziram: Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948): Art. 12. Ninguém será sujeito a interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência... Art. 24. Todo homem tem direito a repouso e lazer, inclusive com limitação razoável das horas de trabalho... Constituição da OIT (1919):

...é urgente melhorar estas condições condições de trabalho: por exemplo, no que se refere à regulamentação das horas de trabalho, a fixação de uma duração máxima diária e semanal de trabalho. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, 1969) Art. 11 o. Proteção da honra e da dignidade. (...) 2. Ninguém pode ser objeto de ingerência arbitrárias ou abusivas em sua vida privada... (1948): Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem XV- Toda pessoa tem direito ao descanso, ao recreio honesto e à oportunidade de aproveitar utilmente o seu tempo livre em benefício de seu melhoramento espiritual, cultural e físico. (grifou-se) Ora, a utilização do BIP (e de outras formas mais modernas de conexão), mesmo que não represente, em concreto, efetiva prestação de serviços, trata-se, inegavelmente, de uma vinculação ao trabalho, ainda que meramente psíquica. Sob o fundamento do que acima se disse, assiste ao trabalhador o direito a uma indenização (por dano pessoal, fixada por arbitramento ou por aplicação analógica do art. art. 244, 2º, da CLT) pelo fato de lhe ter sido tolhido o legítimo e humano direito ao descanso, ou nos termos em que se preconiza neste estudo, o direito a se desconectar do trabalho. São Paulo, 13 de agosto de 2003.