E SUA MÃE TAMBÉM : NOTAS SOBRE RECORRÊNCIA DE ABUSO SEXUAL ENTRE DIFERENTES GERAÇÕES DA MESMA FAMÍLIA



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Transcrição:

E SUA MÃE TAMBÉM : NOTAS SOBRE RECORRÊNCIA DE ABUSO SEXUAL ENTRE DIFERENTES GERAÇÕES DA MESMA FAMÍLIA Raquel Wiggers 1 Isabelle Brambilla Honorato 2 Natã Souza Lima 3 Resumo: Um fenômeno tem sido observado nos órgãos de atendimento às crianças e adolescentes que sofreram abuso sexual em Manaus: a recorrência de abuso também em gerações anteriores da criança para quem se procura atendimento. Os profissionais são unanimes em afirmar que é um fato comum a mãe ou pai da criança que sofreu abuso sexual também ter sido abusada(o) na infância. Vozes silenciadas há muitos anos compõem discursos que constroem o trágico evento do passado, a partir do evento presente do abuso sexual. O abuso sofrido pela filha(o) abre lugar para mãe revelar e construir seu discurso de vítima. A partir da percepção desta recorrência os profissionais de atendimento constroem uma explicação de herança maldita, certa fragilidade que é passada à criança favorecendo situações de abuso sexual. Essa explicação torna a vítima responsável pelo abuso sofrido. Coloca sobre o/a responsável pelo cuidado com a criança peso triplo: foi abusada(o) na infância, não foi cuidadoso(a) o suficiente com a criança, e passou para esta criança uma fragilidade psicológica que atrai o autor(a) do abuso sexual. Nossa análise questiona essa explicação da herança maldita, provocando a discussão a partir de gênero, poder e masculinidade. Palavras-chave: Abuso Sexual. Família. Gênero. Gerações. Introdução Vimos trabalhando no Centro de Referencia Especializado em Assistência Social de Manaus - CREAS 4, desde 2010, quando iniciamos nossas atividades com um projeto de extensão universitária que visava propor contribuições antropológicas ao atendimento dos casos de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. Desde então nossas relações têm se estreitado e rendido bons frutos acadêmicos e profissionais. O contato com o Creas nos possibilitou também, o acesso a outros órgãos da rede de proteção à criança e ao adolescente, como a Delegacia Especializada de Proteção a Criança e ao Adolescente (DEPCA), Serviço de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual (Savvis), entre outros. E é no acompanhamento destes que apresentamos os dados e formulamos nossos argumentos aqui apresentados. 1 Professora Dra. do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Amazonas. 2 Discente do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas. 3 Discente do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas. 4 Até o ano de 2012 o CREAS do Bairro Nossa Senhora das Graças era o único de Manaus, tendo sido criado o segundo CREAS do Município em novembro de 2012 na Cidade Nova, bairro da Zona Leste de Manaus. Assim, quando nos referimos ao CREAS que trabalhamos é este do bairro Nossa Senhora das Graças. 1

Um fenômeno tem sido observado nos órgãos de atendimento às crianças e adolescentes que sofreram abuso sexual em Manaus: a recorrência de abuso também em gerações anteriores da criança para quem se procura atendimento. Os casos de recorrência do abuso sexual em diferentes gerações da mesma família, mais especialmente de mãe e filha, chama atenção de profissionais que atuam na rede de proteção à criança e ao adolescente. Geralmente se diz que quando acontece o abuso sexual com uma criança cuja a mãe também sofreu abuso sexual, a filha é herdeira de uma herança maldita. O que querem dizer com isso é que a mãe abusada passa para a criança certas fragilidades, das quais as crianças ficam mais suscetíveis ao abuso sexual do que outras que não tem mães abusadas. É sobre esta questão que vamos nos debruçar neste texto. Abuso em gerações anteriores Ainda que soubéssemos, a partir de alguns casos acompanhados, acerca da recorrência de abuso sexual entre gerações, algumas vezes fomos abordados por profissionais que, livremente, contaram-nos sobre esses casos, buscando explicações para o fenômeno. A coordenadora do Creas estava muito agitada por causa de um atendimento ocorrido pela manhã quando um pai chegou desesperado porque seu filho sofreu abuso sexual. Ela contou que o homem estava transtornado porque com o abuso do filho ele reviveu o ato de violência sexual que sofreu na infância e que foi silenciado por anos. Todos os profissionais do órgão se mobilizaram para atender o homem e encaminhar para atendimento médico, uma vez que ele estava transtornado e precisou de medicamentos para acalmar-se. Demonstrando certa angústia, a psicóloga procurava uma explicação para tal recorrência indagando-nos mas o que será isso meu Deus! Parece, assim, uma herança maldita. Assim, a psicóloga apresentou-nos o conceito utilizado pelas profissionais do Creas. É comum ouvirmos falas de assistentes sociais, psicólogas e advogadas defendendo a ideia de uma herança maldita nos casos em que a mãe sofreu violência sexual na infância ou adolescência, e agora procura atendimento para o filho ou filha que passaram pela mesma violência. Este é um fato para o qual não há dados estatísticos. No entanto, é muito comum ouvir das profissionais dos órgãos da rede de proteção de crianças e adolescentes, sobre a recorrência de casos de crianças ou adolescentes vítimas de abuso sexual, onde pelo menos um de seus pais, também sofreu abuso sexual na infância. Alguns casos são revelados às profissionais, e comovem os psicólogos logo no primeiro atendimento. Outros apenas são descobertos no decorrer do atendimento familiar às vítimas de abuso sexual. A mãe ou pai mantém a criança no atendimento psicossocial, e no decorrer dos atendimentos, revela-se o abuso sofrido também pelo pai, e mais recorrentemente pela mãe. Não há 2

nas fichas de atendimento espaço para duas pessoas. Assim, quando o pai ou mãe revelam ao psicólogo (a) que foram vítimas de abuso sexual quando crianças ou adolescentes, as informações sobre seu acompanhamento psicossocial são colocadas na mesma ficha de seu filho (a), da criança ou adolescente atendido. É feita uma anotação na ficha de atendimento da criança, em forma de observação: Mãe contou que também foi abusada quando tinha a mesma idade da filha. Isso indica que o tipo de tratamento 5 daquela criança abrange o pai ou mãe que também sofreu abuso. Não há um procedimento específico para os pais de crianças ou adolescentes vítimas de abuso sexual serem atendidos nos casos em que são detectadas recorrências. Assim, o atendimento prestado à mãe ou pai, não é registrado como um atendimento à vítima de abuso sexual, mas aparece como atendimento prestado à família da criança. Este dado é para compor o atendimento da criança. Esses casos, frequentemente, ficam apenas no conhecimento das profissionais que os atendem, não existindo um procedimento padrão indicado. Muitas vezes só podemos conhecê-los se conversarmos com essas psicólogas ou assistentes sociais. O conhecimento da recorrência de abuso sexual na geração anterior é encarado apenas como um dado para dar subsídios para o atendimento da criança. Este é um movimento institucionalizado de silenciamento de abuso sexual, dentre tantos outros pelos quais passam as vítimas. Quando se sabe desta recorrência no atendimento psicossocial percebe-se uma maior fragilidade, não apenas da criança, mas de toda família. Quando se sabe da herança maldita o tratamento passa a ser voltado para capacidade protetiva, não apenas da criança, mas também da mãe ou responsável por ela. E sua mãe também Durante o ano de 2012 acompanhamos 6 dois casos exemplares que apresentamos a seguir: Léia tem 13 anos e sofreu recorrentes abusos sexuais de seu padrasto. A mãe levou-a ao Creas para receber atendimento psicossocial. Durante os atendimentos a mãe de Léia 5 O tratamento oferecido no Creas é um atendimento psicossocial (atendimento intermediário, que visa o acompanhamento multidisciplinar, são feitos acompanhamentos dos familiares até que se possa envia-los a tratamento clinico, se for o caso, ou a programas sócio-assistenciais), não sendo, deste modo um tratamento clínico. Caso a psicóloga considere necessário tratamento clínico, ela encaminhará para parceiros, como clínicas particulares que atendem gratuitamente pacientes encaminhados pelo Creas, clínicas de universidades e ONGs. Esses tipos de encaminhamento são feitos na amizade, pois não há por parte do governo um suporte para atendimentos continuados. Com isso as profissionais precisam usar das amizades que fazem nos diversos órgãos em que já trabalharam ou conhecem colegas de profissão que podem receber as pessoas que necessitam de atendimento continuado. 6 Conhecemos esses casos a partir da pesquisa de iniciação científica de Isabelle Brambilla Honorato, acerca das relações de conflito e poder na família a partir dos casos atendidos no Creas-Manaus, 2012. 3

revelou que também sofria de abusos recorrentes por parte de seus tios, quando tinha 14 anos. A explicação, comumente dada a casos como o de Léia é o de uma herança maldita. A partir da percepção desta recorrência os profissionais de atendimento constroem uma explicação de certa fragilidade que é passada à criança favorecendo situações de abuso sexual. Essa explicação torna a vítima e sua cuidadora responsável pelo abuso sofrido. Coloca-se sobre o/a responsável pelo cuidado com a criança peso triplo: foi abusada(o) na infância, não foi cuidadoso(a) o suficiente com a criança, e passou para esta criança uma fragilidade psicológica que atrai o autor(a) do abuso sexual. No segundo caso estudado, Sheila tem seis anos, foi abusada sexualmente pelo professor da escolinha de reforço em que estudava. A mãe de Sheila levou-a ao Creas para atendimento psicossocial. Entre um atendimento e outro a mãe de Sheila revela que também sofreu abuso sexual por parte do padrasto de seu pai, quando tinha a mesma idade que Sheila. O caso de Sheila é exemplar de muitos outros casos que seguem, mais ou menos, o mesmo roteiro ou ritual de revelação da violência sofrida e silenciada durante anos. A mãe ou pai de uma criança abusada busca atendimento no Creas, e durante as diversas idas e vindas revela que também sofreu abuso. O ato de elaboração da narrativa nestes casos é algo que só foi possível construir a partir da violência sofrida pelos seus filhos. O não-falar ou falar de outros dramas pode evidenciar que a narrativa, não é algo que se revele num movimento linear e preciso. É, antes, um texto rabiscado, reescrito diversas vezes (Das, 1999). A mãe que sofreu abuso na infância, e a própria criança, compõem o conjunto de vozes que são silenciadas nesses debates. Um conceito logicamente inconsistente Nossa análise questiona e coloca em xeque as explicações do abuso sexual como uma herança maldita. De acordo com esse argumento, elaborado pelas profissionais, um cuidador que foi vítima de abuso sexual tem sua capacidade protetiva fragilizada. Assim, a capacidade protetiva da criança abusada é construída com falhas, há uma incapacidade de proteção, um cuidado fragilizador, transmitido entre as gerações. Santos (2007:43) afirma que a experiência de conviver com a violência faz dela algo percebido como natural e esperado nas relações familiares, mantendo o ciclo de violência na família, como resultado de processos de socialização e subjetivação. 4

No entanto, se é verdade que crianças que crescem em ambiente violento e hostil necessariamente tornam-se adultos violentos, nos casos de abuso sexual em gerações subsequentes essa explicação é logicamente inconsistente. As mães entrevistadas por Santos (2007), que sofreram violência sexual na infância ou adolescência, e que agora tiveram seus filhos abusados, são unânimes em afirmar que tiveram muito cuidado com suas crianças, e estavam atentas a qualquer situação que denotasse possibilidade de abuso sexual. Tanto isso é verdade que temos observado que as mães que procuram a rede de proteção de crianças em Manaus, e que continuam levando seus filhos aos atendimentos psicossociais são principalmente aquelas mães que sofreram abuso sexual. A explicação da herança maldita é logicamente inconsistente porque a vítima nunca é culpada do abuso sofrido, não há nada no comportamento da menina ou do menino que favoreça ou atraia a violência sexual. Quem estupra é o estuprador, a vítima não é culpada do abuso que sofreu. Apesar da certeza de que a vítima não é culpada, há um discurso social de culpabilização da vítima de abuso sexual. As crianças em nossos estudos revelam que sofrem quando a mãe joga na cara que provocaram o abuso. Do mesmo modo o autor do abuso recorre a uma noção compartilhada na sociedade de que há direitos tidos como masculinos que justificam a violência cometida. Tais discursos são tão fortes que até mesmo as profissionais que lidam com casos de abuso sexual, buscam nessa matriz de pensamento, explicações e formulações conceituais para elaborar o atendimento. Em nossa sociedade partilhamos concepções de honra (PITT-RIVERS, 1979) que servem de orientação para ações sociais de homens e mulheres no campo da sexualidade. A masculinidade violenta e impositiva é valorizada no padrão da masculinidade hegemônica de nossa sociedade ocidental (CONNEL, 1995). Enfatizar a agência do abusador significa necessariamente problematizar este padrão de masculinidade, que oprime e agride. Existem diversos não ditos em meio a essas discussões políticas ruidosas. Debater masculinidades violentas e abuso sexual a partir do autor do abuso é uma questão construída como "tabu", e procura-se na vítima o que facilitou a violência sexual. Fica implícito o papel abusador na história, e se busca um culpado na relação entre criança e cuidador(a), onde não há culpados, encontraremos apenas vítimas. Temos que ser explícitos neste quesito: nos casos de violência sexual a agência é do abusador. 5

As relações intergeracionais são marcadas por relações de poder, em que poder consiste em impor a vontade dentro de uma relação social, mesmo que contra resistência dos outros (Arendt, 2004) Quais são as controvérsias que precisam ser apagadas? E quais desigualdades são (re)produzidas nesse processo? Vozes silenciadas há muitos anos compõem discursos que constroem o trágico evento do passado, a partir do evento presente do abuso sexual. O abuso sofrido pela filha(o) abre lugar para mãe revelar e construir seu discurso de vítima. As mães que continuam levando seus filhos aos atendimentos psicossociais são principalmente aquelas mães que sabem as consequências de um abuso sexual calado durante anos. Mães e pais que sofreram abuso sexual sabem o peso que é calar, e os efeitos dos não ditos até a vida adulta. Referências ARENDT, H. Da Violência. (1969/1970), 2004. CONNELL, Robert W. Políticas Da Masculinidade. Revista Educação e Realidade, Porto Alegre, UFRGS, v. 20, n. 2, p. 185-206, 1995. DAS, V. Fronteiras, violência e o trabalho do tempo: alguns temas wittgensteinianos. Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS), Vol. 14, n o 40, Junho de 1999. PITT-RIVERS, J. A Antropología Del Honor o Política de los Sexos. Ensayos de Antropología Mediterránea. Barcelona: Editorial Crítica: 1979. SANTOS, S. S. Mães de meninas que sofreram abuso sexual intrafamiliar: relações maternas e multigeracionalidade. Dissertação Mestrado, Psicologia do Desenvolvimento, UFRGS, 2007. WIGGERS, R.; HONORATO, I.B.; SOUZA LIMA, N. Abuso sexual e conflitos familiares em Manaus. Anais do III Encontro da Região Norte da Sociedade Brasileira de Sociologia, GT06: Democracia Violência e conflitos sociais, Manaus, 2012. And your mother too : notes on recurrence of sexual abuse among different generations of the same family Abstract: A phenomenon has been observed in the institutions that care for the rights of children and adolescents who have suffered sexual abuse in Manaus: the recurrence of abuse in the children previous generations. The professionals are unanimous in asserting that it is a common fact the mother or father of a child who has suffered sexual abuse also have been abused in childhood. Voices silenced many years ago compose discourses that construct the tragic event of the past from the present event of sexual abuse. The abuse suffered by her child result as an opportunity for the mother to reveal and build her speech as "victim." From the perception of recurrence care professionals construct an explanation of "cursed legacy," some "fragility" that is "passed to" favoring child sexual abuse. This explanation makes the victim responsible for the abuse. Put on the person responsible for the abused child triple guilt: was abused in childhood; was not careful 6

enough with the child, and passed to the child a psychological "weakness" that attracts the author of sexual abuse. Our analysis questions the explanation of the "cursed legacy," provoking discussion from gender, power and masculinity. Keywords: Sexual Abuse. Family. Gender. Generations. 7