O lugar da corrupção no mapa de referências dos brasileiros. Aspectos da relação entre corrupção e democracia.



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O lugar da corrupção no mapa de referências dos brasileiros. Aspectos da relação entre corrupção e democracia. I. Rachel Meneguello Departamento de Ciência Política/IFCH Centro de Estudos de Opinião Pública Unicamp Este texto apresenta algumas informações sobre a relação entre a percepção da corrupção e a democracia no Brasil, em especifico, sobre seu impacto sobre as orientações dos cidadãos em relação ao sistema político, bem como o apoio ao próprio regime democrático. Um conjunto significativo de dados tem sido produzido a respeito da vitimização pela corrupção em vários países. No contexto latino-americano, as pesquisas do Barômetro das Américas têm confirmado a equação mais do que conhecida segundo a qual os países mais ricos são os que apresentam menores chances de seus indivíduos serem vítimas de corrupção, e de que fatores contextuais seriam diretamente associados à presença de práticas corruptas, condicionando a consolidação democrática. A partir dessa equação, a tendência global em direção à democracia política, por aumentar a transparência na dinâmica da vida pública reduziria o espaço político disponível para práticas corruptas. Assim, na América Latina, por exemplo, países como Haiti, México e Bolívia são os que se destacam pela freqüência de indivíduos vitimizados por corrupção; Brasil, Chile, Uruguai e Colômbia, por sua vez, são os que se destacam pela menor incidência de vitimização em situações de corrupção política (Seligson, 2008). Esse cenário se estende quando observamos os vários índices produzidos pelos organismos internacionais, como o CPI(Corruption Perceptions Index) e CCI(Corruption Control Indicator), desenvolvidos respectivamente pela ONG Transparência Internacional e pelo Banco Mundial, que apontam evidências de que formas de corrupção política têm igualmente crescido em nações consideradas mais avançadas. Apesar de todo o conhecimento produzido, permanecem muitas questões sobre a relação entre corrupção e democracia sem explicações aprofundadas, mas uma, em específico, interessa destacar, e diz respeito ao impacto que a percepção da corrupção tem sobre a vida política a ponto de afetar o apoio à democracia. 1

Os estudos que abordam a corrupção com enfoque realista e crítico, como um fenômeno universal que atinge todos os países, apontam o seu impacto sobre aspectos que afetam a legitimidade do sistema democrático, como o apoio ao regime e a confiança nas instituições (SELIGSON, 2001 e 2002; POWER e GONZÁLES, 2003). A corrupção seria a causa e conseqüência do baixo desempenho do sistema, levando à redução da confiança dos cidadãos nas instituições, no governo e na sua capacidade para a solução de problemas, e afetando, portanto, o apoio ou a adesão ao regime democrático, entendida a partir das referências de que a política democrática e as formas sobre as quais ela se estabelece são a forma mais apropriada para a estruturação do sistema político (GUNTHER e MONTERO, 2003; MENEGUELLO, 2006). Nessa direção, Warren (2004) aponta que a corrupção tem efeitos significativos sobre a democracia, ela rompe com os pressupostos fundamentais do regime, como a igualdade política e a participação; reduz a influência da população no processo de tomada de decisões, seja por fraudes nos processos decisórios, como nas eleições, seja pela desconfiança e suspeita que ela gera entre os próprios cidadãos e com relação ao governo e as instituições democráticas, e reduz a transparência das ações dos governantes. Power e Gonzalez (2003) mostram, a partir dos dados do Índice de Percepção de Corrupção da Transparência Internacional, que os altos índices de corrupção estão associados a baixos graus de desenvolvimento econômico, baixa qualidade do regime democrático, além de variáveis culturais como, religião e confiança interpessoal. Para Seligson (2001 e 2002), as limitações dos índices internacionais para caracterizar o fenômeno da corrupção e avaliar seu impacto, podem ser suplantadas pelos estudos empíricos baseados em surveys, pois esse instrumento permite identificar a percepção e a experiência dos cidadãos com o fenômeno. Nas pesquisas realizadas em países da região latino-americana (Colômbia, Nicarágua, Bolívia,Guatemala e El Salvador), o autor aponta que a experiência da corrupção interfere na legitimidade do regime político e na confiança interpessoal, e de que há uma diferença entre a percepção da corrupção e a experiência concreta com as suas possibilidades. No caso brasileiro, vários estudos recentes têm contribuído com um conjunto de explicações sobre o fenômeno da corrupção no país utilizando dados de surveys, ou pesquisas com dados de nível individual. Pautados, sobretudo, por dados coletados após a conjuntura das denúncias e do escândalo de corrupção que envolveu parcelas da elite políticoadministrativa nacional_o mensalão _, ocorrido em 2005, esses estudos procuram analisar as consequências da percepção da corrupção política para a relação entre cidadãos e o regime; especificamente Moisés (2009), que avalia os efeitos do fenômeno sobre a qualidade da 2

democracia, Rennó (2006) que analisa seu impacto sobre o comportamento políticoeleitoral, e Vásquez (2010) que analisa seus efeitos sobre a confiança institucional. Neste presente texto, as duas pesquisas analisadas foram realizadas em 2006, a primeira logo antes do início da campanha para as eleições gerais daquele ano, e a segunda logo após a eleição, com várias preocupações com relação ao apoio à democracia e ao funcionamento do sistema político. Realizadas um ano após as denúncias do escândalo do mensalão, as pesquisas tiveram objetivos originais distintos, mas ambas apontam para o papel singular que a dimensão da corrupção parece ter na avaliação da população e no apoio ao sistema político. Assim, na pesquisa realizada em junho de 2006 1, nosso interesse esteve voltado para a avaliação da confiança nas instituições e na percepção de seu papel como intermediários do funcionamento do sistema político. O suposto de nossa preocupação era de que, em alguma medida, o apoio à democracia e ao funcionamento do sistema dependia de como os intermediários do sistema as instituições _ são avaliados e produzem confiança sobre seu funcionamento. Assim, a desconfiança institucional, retratada parcialmente na pequena identidade partidária, nas baixas avaliações dos políticos e do congresso, sofreria o impacto de fatores específicos, desde a avaliação do desempenho do governo, a insatisfação com o respeito aos direitos, até a percepção da corrupção. Na pesquisa de dezembro de 2006, o ESEB- Estudo Eleitoral Brasileiro 2, um estudo pós-eleitoral voltado para a compreensão do sistema representativo e dos fatores envolvidos no seu funcionamento e resultados, uma das preocupações centrais foi avaliar em que medida a accountability vertical entendida como a possibilidade de punição ou premiação dos políticos pelos eleitores poderia ser resultado da percepção dos problemas do país. Sabemos que a campanha para a eleição presidencial de 2006 foi orientada em boa parte pelos escândalos de corrupção, e sabemos também que as denúncias de envolvimento do governo não foram capazes de produzir a sua derrota naquele pleito, levando à reeleição o então presidente Lula. Este texto traz uma análise tímida, mas instigante sobre os dados. Apresenta inicialmente alguns dados simples sobre a percepção da corrupção pelos entrevistados e seu julgamento sobre aspectos da corrupção política e, em seguida, apresenta dados que permitem conhecer o 'lugar' ocupado pela percepção da corrupção no mapa de referências 1 Pesquisa nacional A Desconfiança nas instituições democráticas pelos cidadãos, coordenada por José Alvaro Moises e Rachel Meneguello, NUPPES/USP e CESOP/UNICAMP. 2 O ESEB2006 foi a segunda onda nacional do projeto Comparative Study of Electoral Systems (Univ.Michigan), coordenada pelo CESOP/UNICAMP. 3

dos indivíduos sobre o regime democrático, tal como foram delimitadas essas referências na pesquisa. A preocupação que orientou a seleção dos dados apresentados e analisados é com o possível efeito da percepção da corrupção sobre as bases da adesão democrática. II A análise aqui apresentada é parte de um estudo mais amplo sobre as bases da adesão democrática no país. Em estudo anterior, ficou demonstrada a existência de uma distância importante entre a dimensão normativa e a dimensão prática de apoio ao regime democrático (MENEGUELLO, 2006 e 2007a). Os achados baseados no estudo da adesão dos indivíduos às âncoras institucionais do sistema representativo e seu funcionamento mostraram, em linhas gerais, que é dominante a preferência normativa pelas instituições representativas, como os partidos políticos, as eleições e o Congresso Nacional. A Tabela 1, abaixo, mostra que à exceção das opiniões sobre o voto obrigatório, a importância da escolha política (percebida pela importância do voto no sistema), partidos, políticos, o regime democrático acolhem uma adesão significativa dos indivíduos. Os estudos também confirmaram que a adesão normativa à democracia é um fenômeno majoritário que ao mesmo tempo convive com um julgamento severo sobre o funcionamento do regime. 4

Tabela 1 Opiniões sobre a democracia e aspectos da representação política (junho, 2006) O voto tem influência sobre o que acontece A maneira como as pessoas votam pode fazer com que as coisas mudem Não importa como as pessoas votam, não fará com que as coisas mudem 62,3% 36,2 Votaria caso o voto não fosse obrigatório Opinião sobre a democracia Opinião geral sobre os partidos Sim 48,7 Não 49,1 Talvez/Depende 2,1 A democracia é sempre melhor que qualquer 64,8 outra forma de governo Em certas circunstâncias é melhor uma ditadura 13,5 Tanto faz se o governo é uma democracia ou 16,9 uma ditadura São indispensáveis à democracia 36,3 Só servem para dividir as pessoas 59,4 Opinião sobre os partidos e a Sem partidos não pode haver democracia 63,0 democracia A democracia pode funcionar sem partidos 31,5 Opinião sobre o Congresso e a democracia Sem Congresso Nacional não pode haver democracia A democracia pode funcionar sem Congresso Nacional 66,1 28,7 Opinião sobre a Câmara de O país precisa da Câmara e do Senado 66,2 Deputados e o Senado para o país Poderíamos passar bem sem a Câmara e o 30,4 Senado Fonte: Pesquisa A Desconfiança dos Cidadãos nas Instituições Democráticas, 2006 (para todas as questões, a diferença para 100% referem-se a respostas não sei e não respondeu ) N 2004 Sabemos que contextos democráticos marcados, ao mesmo tempo, pela sobrevivência de traços autoritários da cultura política e por distorções do funcionamento das instituições, com repercussões sobre a qualidade do próprio regime, afetam de diferentes modos a experiência dos indivíduos, a percepção sobre o sistema e o impacto sobre suas orientações políticas. Parece correto considerar que a combinação entre a percepção negativa da corrupção, e seu limitado efeito sobre as orientações políticas individuais expresse uma cultura própria das transições políticas, marcada por dimensões híbridas quanto à 5

percepção sobre o funcionamento do sistema e o que pesa para esse funcionamento. O que temos até agora é a evidencia de que os brasileiros percebem que o fenômeno da corrupção é nocivo ao funcionamento do sistema, fazem juízo sobre esse fenômeno, mas essa percepção tem limites de influencia. Nos gráficos a seguir, os dados mostram que a maioria dos brasileiros percebe o aumento da corrupção no tempo, identificam o lugar da corrupção como tema da agenda pública, considera a seriedade do fenômeno, e manifestam um homogêneo juízo negativo sobre as formas da corrupção política associada à administração pública (gráficos 1,2 e 3, Tabela 2). Gráfico 1 Percepção do aumento da corrupção Brasil, junho de 2006 % igual aumentou pouco aumentou muito aumento da corrupção no último ano 8,1 20,8 59,4 aumento da corrupção nos últimos 5 anos 8,5 23,8 59,4 Gráfico 2 Opiniões se a corrupção é um problema sério Brasil, junho de 2006 % muito sério 79,5 sério 18,2 um pouco sério 1,4 não é problema sério ns 0,5 0,4 6

Gráfico 3 Opiniões sobre as práticas de corrupção política Brasil, junho/2006 % discorda muito concorda muito o melhor político é o que faz muitas obras mesmo que roube um pouco 72,3 4,5 um político que faz im bom governo deve poder desviar dinheiro público para financiar sua campanha eleitoral 79,4 2,4 um político que faz muito e rouba um pouco não merece ser condenado pela justiça 74,3 4,5 um político que faz muito e rouba um pouco merece o voto da população 72,7 5,3 não faz diferença se um político rouba, o importante é que faça as coisas que a população precisa 72,7 6,2 ( o complemento a 100% refere-se às respostas intermediárias) Tabela 2.Percepção da população sobre a a agenda política e a agenda de campanha eleitoral em 2006 Pesquisa ESEB2006, dez/2006 Principal problema Corrupção 39,7% político do país Desemprego 10,0 Alto salário dos deputados 2,6 N 1000 Problema mais Escândalos envolvendo o governo/ 21,2 importante debatido mensalão /corrupção na eleição de 2006 Desemprego 5,5 Combate à fome/bolsa Família 5,3 (apenas itens com maior número de menções) N 1000 7

III. Mas será que as percepções e juízos sobre a corrupção compõem o construto de apoio ao regime democrático? Para aprofundar essa questão elaboramos um modelo explicativo, baseado em análise fatorial, no qual as âncoras institucionais representativas (Tabela 1), a avaliação do atual governo e a avaliação do desempenho dos governos passados e do atual com relação a aspectos específicos do funcionamento do regime conformam o construto para testar a associação (Tabela 3). Um de nossos supostos foi de que a memória e a experiência políticas em regimes distintos, a democracia e o período final da ditadura terminada em 1985, ou até em governos democráticos distintos, como o governo FHC (1995-2002) e o primeiro governo Lula (2003-2006), poderiam mapear associações relacionadas ao apoio normativo ao regime democrático, identificar as variáveis principais para definir o apoio ao sistema, e identificar a importância no conjunto de orientações dos indivíduos de questões ou temas considerados fundamentais para traçar as diferenças entre situações políticas como, por exemplo, o fenômeno da corrupção. Para isso definimos como temas os direitos humanos, a economia e a corrupção e tráfico de influência. As questões adicionadas às variáveis sobre democracia e representação (Tabela 1) estão na Tabela 3 a seguir. Nela, os dados que se destacam são a percepção da melhora generalizada nos três temas para os três períodos selecionados de governo, mas com destaque para a percepção da melhora da situação atual dos direitos humanos e da economia, comparada às situações dos dois períodos anteriores, e a piora da situação da corrupção no primeiro governo Lula, quando aproximadamente 30% de indivíduos consideravam que a situação em 2006 estava pior do que no período final da ditadura militar. 8

Tabela 3. Avaliação do desempenho de governos anteriores Brasil, junho 2006 Avaliação da situação da corrupção e tráfico de influência Avaliação da situação dos direitos humanos Avaliação da situação da economia do país No governo Lula (2003-2006), comparada ao que era antes No governo FHC, comparada ao que era antes A situação atual, comparada aos anos dos governos Geisel e Figueiredo No governo Lula (2003-2006), comparada ao que era antes No governo FHC, comparada ao que era antes A situação atual, comparada aos anos dos governos Geisel e Figueiredo No governo Lula (2003-2006), comparada ao que era antes No governo FHC, comparada ao que era antes A situação atual, comparada aos anos dos governos Geisel e Figueiredo melhor igual pior ns/nr 25,3% 25% 47,4% 2,3% 20 38,2 34,4 7,4 25,7 22,4 29,4 22,5 49,6 33,9 13,2 3,2 33,2 39,8 19,2 7,8 47,5 17,9 13,2 26,4 50,7 28,6 20 5 31 34,8 29,3 4,8 43,8 17,1 16,9 22,3 Avaliação do governo Lula Muito bom 4,6 Bom 44,7 Ruim 22,3 Muito ruim 11,0 Regular 17 Fonte: Pesquisa A Desconfiança dos Cidadãos nas Instituições Democráticas, 2006 O modelo resultante permite apreender como esses fatores e contextos se organizam no mapa de referências do eleitor brasileiro. O conjunto de dimensões encontradas mostra que a principal dimensão, ou aquela que define a referência mais imediata para o eleitor se posicionar frente ao sistema, é aquela que acolhe a percepção sobre o governo do momento e o seu desempenho frente à economia e aos direitos humanos. A memória relacionada às situações da economia e dos direitos humanos nos governos anteriores constitui a segunda mais importante dimensão para avaliar o desempenho do sistema. Apenas em seguida é que residem os temas que conferem apoio 9

normativo ao sistema o apoio à democracia, a importância das eleições, a necessidade das instituições representativas. É importante sublinhar que a forte referencia positiva que o presidente Lula constituiu frente à população, traduzidos nos altos índices de aprovação observados nas pesquisas de opinião durante todo seu primeiro governo (MENEGUELLO, 2007b), explicam parte significativa da movimentação dos dados, pesando sobre a formação da memória política imediata construída pelos indivíduos. Mesmo assim, o que queremos destacar é que dentro desse construto mais amplo sobre a percepção das bases do funcionamento da democracia no país, o problema da corrupção, inclusive entendido de forma comparada no tempo, está posto à margem, em uma dimensão independente (artificialmente pelo procedimento estatístico, é bom lembrar), mas a uma distância que revela sua importância menor para construir o mapa de referências da adesão democrática. Vejamos com mais detalhes o modelo apresentado abaixo (ver Matriz em Anexo). A solução de nosso modelo produziu cinco fatores, com uma importante variância explicativa de α=56,6%. O Fator 1 é o fator do governo Lula. Ali, encontram-se as variáveis de avaliação do governo e da economia com as maiores cargas da matriz (maiores que 0.8), além da avaliação dos direitos humanos neste governo (0,741) e da corrupção, com uma carga menor (0,594). O Fator 2 está denominado como o fator da memória do desempenho, pois compõe-se exclusivamente da avaliação da situação econômica e dos direitos humanos nos governos Fernando Henrique e nos governos militares entre 1975 e 1985. O que está substantiva e subjetivamente embutido na disposição dos fatores 1 e 2 é o papel do Plano Real como referência de avaliação às situações econômicas de períodos políticos anteriores. Contudo, não parece aleatório o fato da avaliação da situação da economia no governo Lula estar em fator separado às avaliações da economia em governos anteriores. O Fator 1 já mencionado indica a proeminência da avaliação do governo do momento, nos seus vários aspectos, sobre as demais referências político-temporais. Este modelo aponta que as questões associadas ao governo Lula movem-se em conjunto, de forma quase separada dos demais fatores. O Fator 3 está denominado as âncoras instituições representativas, pois nele constam apenas as questões que afirmam a necessidade dos partidos políticos e do Congresso para a democracia, bem como a necessidade do Congresso para o Brasil, em específico. É apenas no Fator 4, denominado preferência democrática, que emergem as questões sobre a preferência e avaliação da democracia no país, associadas às duas 10

questões que valorizam o exercício do voto. Estes dados repetem a associação entre democracia e eleições que encontramos em estudos anteriores, mas neste modelo essa relação tem força especial, pois esta noção de democracia não se altera quando ponderamos em conjunto as percepções sobre a economia do país nos governos Lula, FHC e os anos finais do regime militar, tampouco as percepções sobre os direitos humanos e a corrupção nesses três períodos. Finalmente, o Fator 5, denominado avaliação da corrupção, agrega todas as questões de avaliação da corrupção em todos os períodos políticos, inclusive no governo Lula, o com coeficientes significativos, maiores que 0.6. Neste texto nos interessa destacar a localização do problema da corrupção na percepção dos indivíduos sobre o funcionamento do regime democrático no país, e o que nos intriga é a independência das percepções sobre o problema em todo o período político abordado, estabelecendo uma distância entre a idéia de democracia e as noções de transparência e controle do tráfico de influência. Por um lado, esse quadro nos ajuda a entender o cenário da crise política de 2005, em que os escândalos de corrupção não abalaram a avaliação do governo e do presidente, bem como a preferência pela democracia. Mas aponta, por outro lado, para um problema mais complexo, que é compreender as causas das dimensões independentes encontradas no modelo, em especifico, as motivações para que as percepções sobre as situações da corrupção de governos distintos sejam estabelecidas de forma relativamente isolada. Esses dados merecem maior desdobramento futuro, indicam haver uma zona nublada na qual reside um juízo normativo sobre a corrupção que não afeta de forma significativa nem o comportamento político mais imediato do eleitor, nem a avaliação e o apoio ao sistema político. Esse parece ser o nó das questões que pairam na relação entre o impacto da corrupção sobre as bases da adesão democrática e da legitimidade do sistema como diminuir a distância entre a percepção, o juízo moral e a prática política. 11

Matriz Fatorial. Apoio à democracia e a percepção da situação da corrupção Fatores 1 2 3 4 5 avaliação governo Lula,838 avaliação da situação econômica do 1º governo Lula,843 avaliação da situação econômica atual comparada ao governo FHC (1994-,693 2002) avaliação da situação econômica atual comparada aos governos militares,637 avaliação dos direitos humanos do governo FHC em comparação ao período,740 anterior avaliação dos direitos humanos do governo Lula em comparação ao,741 período anterior avaliação da situação atual dos direitos humanos Lula em comparação ao,643 período militar avaliação da situação da corrupção durante o governo FHC em comparação,636 com o período anterior avaliação da situação da corrupção durante o governo Lula em comparação,594,601 com o período anterior avaliação da situação da corrupção atual em comparação com o período do,673 regime militar grau de preferência pela democracia,618 preferência por regime político (democracia ou ditadura),601 necessidade dos partidos para a democracia,806 necessidade do Congresso para a democracia,811 importância do voto para mudar as coisas,669 necessidade do Congresso Nacional para o Brasil,676 votaria para presidente se o voto não fosse obrigatório,600 Porcentagem de variância explicada 14,2 11,8 11,7 10,2 8,7 Método de extração: análise de componentes principais. Rotação Varimax/Kaiser normalization Total de variância explicada: 56.6% Fonte: Pesquisa A Desconfiança dos Cidadãos nas Instituições Democráticas, 2006 12

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