PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO DE CURITIBA COMO ITINERÁRIO CULTURAL: Uma proposta metodológica



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PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO DE CURITIBA COMO ITINERÁRIO CULTURAL: Uma proposta metodológica OLIVEIRA, GABRIEL RUIZ DE. (1) (1) Universidade de São Paulo. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Rua Maranhão, 88 Higienópolis - CEP 01240-000 São Paulo - SP gruiz@usp.br RESUMO Neste trabalho discute-se a preservação do patrimônio ferroviário em Curitiba, não a partir da restauração de bens edificados isolados, mas sob a abordagem sistêmica do conceito de itinerário cultural. Tem como objetivo interpretar o patrimônio ferroviário curitibano como um itinerário cultural, compreendendo as ferramentas metodológicas de análise deste tipo de paisagem cultural para possibilitar sua preservação. A partir de revisão bibliográfica sobre a preservação do patrimônio e da análise do estado da arte de intervenções em áreas ferroviárias, foram propostos princípios para nortear a elaboração do itinerário cultural. Em seguida, o patrimônio ferroviário curitibano foi analisado de forma unitária e setorizada dentro de seu contexto de desenvolvimento histórico. Na análise setorizada, foram propostas vinte unidades de paisagem, elaboradas a partir de parâmetros de permanência do uso ferroviário, localização e interação com a malha urbana do entorno, percepção simbólica, sobreposição de processos históricos de ocupação da área, cruzamentos significativos, hidrografia e relevo. Posteriormente, foram identificados seis aspectos imateriais, ou valores, para se preservar no patrimônio ferroviário a partir de intervenções sobre seus substratos materiais. Por fim, com base nas particularidades dos desdobramentos dos valores de preservação nas diferentes unidades de paisagem, foram estabelecidas diretrizes para as futuras intervenções nas áreas ferroviárias, considerando questões ambientais, urbanísticas, paisagísticas, sociais, de preservação da memória e de desenvolvimento integrado. Estas diretrizes aplicam-se a diferentes escalas espaciais de modo a fundamentar intervenções consistentes e coerentes com as dimensões urbana e local, promovendo a requalificação do conjunto de espaços que compõem o itinerário ferroviário. Palavras-chave: Itinerário cultural; Patrimônio ferroviário; Diretrizes de preservação; Curitiba.

Patrimônio ferroviário de Curitiba como Itinerário Cultural: Uma proposta metodológica O transporte ferroviário foi um dos principais símbolos de progresso e desenvolvimento de Curitiba durante o final do século XIX e a primeira metade do século XX. Em determinado momento, a política nacional de investimentos deixou de favorecer o modal ferroviário e o trem passou a representar o atraso diante da modernidade do transporte rodoviário. Durante o período em que foi hegemônico, o transporte ferroviário foi o responsável pelo surgimento de uma cultura própria que pode ser observada em edifícios lindeiros à estrada de ferro e também no som do apito dos trens (CÓRDOVA et al, 2010, p.137). Esta valorização da cultura ferroviária como patrimônio, porém, é recente e durante as últimas décadas os trens permaneceram à margem do planejamento de Curitiba. De fato, as linhas férreas em Curitiba têm sido consideradas pelos órgãos de planejamento municipais e metropolitanos como obstáculos e elementos segregadores do território. A diversidade de estudos sobre a retirada destas estruturas do tecido urbano, porém, não costumam apresentar propostas consistentes para a requalificação das áreas desocupadas. Esta postura, que já permitiu perdas irreparáveis à memória ferroviária, necessita ser revista para garantir a efetiva preservação deste rico conjunto patrimonial. Mais do que obstáculos, as infraestruturas ferroviárias precisam ser entendidas como potencialidades no planejamento das regiões por elas atravessadas, tanto pelo testemunho da história e memória da cidade que oferecem quanto pela solução alternativa eficiente que podem representar para a mobilidade urbana. Paralelamente, em nível nacional, o IPHAN tem buscado se alinhar às preocupações mundiais de ampliação do conceito de patrimônio, abrangendo aspectos mais amplos como paisagem, itinerários e territórios culturais. O lançamento da chancela de Paisagem Cultural Brasileira em 2009 é um exemplo dessa iniciativa. O patrimônio cultural ferroviário, dentro do âmbito do patrimônio industrial, tem sido estudado e pesquisado pelo IPHAN há pouco mais de uma década. De acordo com a Lei 11.483/2007, é de responsabilidade do IPHAN "receber e administrar os bens móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural, oriundos da extinta RFFSA, bem como zelar pela sua guarda e manutenção" (IPHAN, 2011, p. 8). Assim, a definição dos critérios de valoração para os bens do Patrimônio Cultural Ferroviário é de responsabilidade legal deste Instituto. Embora esta vigente legislação de preservação dos bens ferroviários preveja a atribuição de valor a bens isolados, a ferrovia e seus bens associados por definição constituem-se em um sistema de redes, no qual a interação entre os diferentes elementos componentes é o que

efetivamente dá significado cultural ao bem. Por conta dessa dinâmica, muito mais do que pensar na preservação isolada de monumentos, a preservação da memória ferroviária precisa ser pensada e proposta do ponto de vista de Itinerários Culturais. A adoção deste conceito visa possibilitar a superação de alguns limites existentes nas abordagens tradicionais das políticas de preservação. O caráter integrador e o estabelecimento de relações entre as dimensões material e imaterial, cultural e natural, entre outras, são aspectos que valorizam e enriquecem a abordagem do patrimônio a partir de itinerários culturais. Em função disso, Córdova (2010, p.17) afirma que os ramais ferroviários, os armazéns, as casas simples e os núcleos urbanos que se desenvolveram a partir das estações ferroviárias adéquam-se bem a estes novos conceitos de proteção do patrimônio. As ferrovias, como objeto de interesse de preservação, são caracterizadas por complexos conjuntos de elementos que envolvem, não apenas o patrimônio material arquitetônico a elas diretamente vinculado, mas também o próprio leito dessa ferrovia, bem como seu entorno imediato. A qualidade das construções, testemunhos do uso adequado de técnicas construtivas muitas vezes inovadoras para seu tempo, a composição e a implantação dos conjuntos (que conformou o desenvolvimento urbano de diversas localidades ao longo de seu traçado) denotam a relevância histórica, memorial e simbólica das estradas de ferro. Apesar do valor cultural, histórico, artístico, paisagístico e ambiental dos conjuntos ferroviários, este patrimônio ainda carece de ações de reconhecimento e proteção mais abrangentes e que superem a visão pontual corrente, concentrada no tombamento de edifícios e estações singulares. Esta prática frequentemente separa o objeto de preservação de seu contexto, sugerindo configurações e características extremamente opostas àquelas presentes nos edifícios e conjuntos que se deseja preservar. (KÜHL, 2012, p.15). Diante deste contexto, este trabalho tem como objetivo interpretar o patrimônio ferroviário de Curitiba como um Itinerário Cultural, compreendendo as ferramentas metodológicas de análise deste tipo de paisagem cultural para favorecer seu reconhecimento e preservação. Itinerário Cultural é uma via de comunicação terrestre, aquática ou mista, determinada materialmente, que possui uma dinâmica e funções históricas próprias para atender a um objetivo determinado e concreto. Para que se caracterize como tal, é necessário que o caminho seja resultado e reflexo da movimentação interativa de pessoas e de bens, gerando trocas culturais no espaço e no tempo, manifestadas no patrimônio material e imaterial. (CIIC - ICOMOS, 2008, p.3) Os Itinerários Culturais não são apenas vias históricas de comunicação que ligam um conjunto bens patrimoniais, mas materializações de fenômenos históricos integrados a um

contexto natural e cultural constituídos por elementos materiais e imateriais no qual o valor do conjunto é superior à soma dos elementos que lhe constituem. Por definição, precedem de um caráter dinâmico que propicia trocas culturais de forma integrada ao meio em que se insere. Um Itinerário Cultural conecta e inter-relaciona a geografia e os bens patrimoniais mais diversos, para formar um todo unitário (CIIC - ICOMOS, 2008, p.5) Os itinerários culturais podem ser classificados de acordo com sua dimensão territorial; segundo sua dimensão cultural; pela sua função, seja ela social, econômica, política, cultural ou uma mistura dessas opções; pela sua duração temporal; pela sua configuração estrutural e pelo seu enquadramento natural, terrestre, aquático, misto ou de outra natureza física. Os itinerários culturais incluem paisagens naturais e culturais, porém estas não devem ser confundidas com elementos ou componentes dos itinerários. As diferentes paisagens que apresentam características específicas e distintas conforme suas diferentes regiões favorecem a caracterização de diferentes trechos do conjunto do itinerário, contribuindo com a sua diversidade. Panorama de intervenções em áreas ferroviárias Foram analisadas uma série de iniciativas contemporâneas de preservação e transformação de áreas ferroviárias e industriais no Brasil e no Mundo de forma a compreender os objetivos, as estratégias e os instrumentos que são mobilizados para a abordagem desses desafios. Estes projetos foram categorizados de acordo com três abordagens do ordenamento territorial, a saber, soluções urbanísticas, paisagísticas e de preservação. Deste modo, a construção deste panorama possibilitou a identificação de diversos conceitos e exemplos que se complementaram como subsídios para as etapas posteriores da pesquisa. Duas soluções de requalificação urbanística de antigas áreas industriais marcadas por grandes estruturas ferroviárias foram analisados para compreender a adoção dos instrumentos urbanísticos de regulação e transformação do território; o projeto de transformação de um setor pós-industrial em bairros com usos diversificados à margem esquerda do rio Sena, em Paris e a Operação Eixo Tamanduateí, em Santo André. No primeiro caso, o projeto baseou-se na criação de novos equipamentos públicos de transporte, cultura e educação. Embora procure tirar partido de alguns rastros históricos da área, a preocupação com a preservação patrimonial é bastante restrita e limitada à restauração de alguns edifícios (LECROART, 2006, p.30). Os usos originais se perderam e os próprios trilhos foram escondidos, sobrepostos pela construção da Avenue de France como novo elemento de estruturação viária entre os bairros. No segundo caso, a Operação Eixo Tamanduateí contribuiu para a instalação de grandes empreendimentos comerciais na antiga área industrial, diversificando os usos e estimulando a economia municipal. Todavia, a falta de

participação popular nas etapas de elaboração e execução do plano tornou-o frágil às exigências do mercado imobiliário (TEIXEIRA, 2007, p.96). Constatou-se a desarticulação do projeto com outras demandas sociais da cidade, principalmente em relação à política habitacional e à preservação ambiental, e a ausência da preocupação com a preservação do patrimônio industrial. A segunda categoria apresenta algumas soluções paisagísticas de transformação de antigos trechos de ferrovias em Paris, Nova York e Cingapura. No estudo da Promenade Plantée, em Paris, observou-se a importância da participação popular no reconhecimento e valorização do patrimônio edificado. A preocupação de integrar o parque linear aos equipamentos (praças, jardins e edifícios) preexistentes qualificou tanto o projeto quanto as estruturas ferroviárias preservadas. No projeto do High Line Park em Nova York destaca-se, além da criação de áreas arborizadas e de espaços de lazer e recreação em um bairro carente destas amenidades, a preocupação com a preservação da memória ferroviária através da renovação do uso: o corredor ferroviário industrial deu lugar a um corredor de lazer pós-industrial. Em ambas as propostas, a inserção de atividades artísticas, de lazer, gastronômicas e esportivas ao longo do parque dinamiza e integra o espaço público às diferentes funções da cidade. Uma área de 173,7 ha ao longo de 40 km da antiga ferrovia de Cingapura foi repassada à administração local pela autoridade ferroviária malaia, despertando interesses de diversos agentes devido a suas inúmeras possibilidades de aproveitamento e utilização. Destaca-se a intensa participação social em todas as etapas do processo. Um concurso de ideias para o uso do Green Line Corridor foi realizado em 2011. Por entender a área como estratégica e bastante importante para o desenvolvimento da cidade, as propostas e ações públicas no espaço da antiga ferrovia estão sendo referendadas por diversas audiências e consultas públicas (PENG, 2010, p.23). Excedendo a preocupação de criar um novo espaço de lazer para a cidade, como os projetos de referência realizados em Paris e Nova York, o Green Corridor também incorpora preocupações com mobilidade urbana, preservação ambiental e desenvolvimento social. A proposta de melhoria da paisagem ao longo do itinerário ferroviário do Mediterrâneo, na Espanha, é a principal solução de preservação analisada neste panorama. Após uma etapa inicial de levantamento de dados, na qual foram analisadas a história da ferrovia, seu traçado e a relação com outros caminhos históricos da região, a evolução urbana dos povoados próximos às estações de trem, bem como a cultura e as tradições destes locais, foi desenvolvida uma proposta paisagística que buscou valorizar o uso do patrimônio ferroviário na província de Alicante (MARTI, 2008, p.7).

Foi proposta uma análise do itinerário em conjuntos de paisagem, elaborada com base nas informações do levantamento e pautou-se por parâmetros de localização geográfica, infraestrutura de transporte, acidentes marcantes de relevo, hidrografia e presença de estruturas ambientais destacadas. A identificação de elementos de valor cultural, paisagístico e patrimonial levou à classificação das unidades de paisagem em paisagens urbanas, paisagens ecológicas, paisagens panorâmicas, e paisagens ferroviárias (MARTI, 2011, p.18). Apesar de o projeto para este itinerário priorizar a proteção e preservação das paisagens naturais cortadas pela estrada de ferro, a relação da ferrovia com o espaço urbano dos povoados locais tornou-se insipiente. A inserção de novos espaços com usos diversificados que excedessem as propostas recorrentes de museus ou centros de cultura permitiriam a dinamização tanto do itinerário quanto das próprias cidades. Neste sentido, a incorporação de preocupações urbanísticas que estimulem o desenvolvimento urbano pode contribuir significativamente para a valorização e o reconhecimento do patrimônio como elemento benéfico à cidade. A análise do estado da arte das intervenções em áreas ferroviárias demonstra a variedade de opções de metodologias e objetivos no desenvolvimento destas intervenções. No caso das soluções urbanísticas, reforça-se a importância da diversidade de usos como fator estimulante para a requalificação do espaço urbano. A inserção destes novos usos, porém, não pode isentar-se da preocupação com a preservação do patrimônio. As soluções paisagísticas demonstram como a preservação do passado associada a projetos de modernização podem contribuir para tornar as cidades mais interessantes. Com base nos aspectos positivos e negativos observados nas intervenções analisadas, propôs-se uma série de onze princípios para o desenvolvimento do itinerário Cultural de ferroviário de Curitiba: Permanência dos usos originais: embora a inserção de novos usos para dinamizar o espaço urbano seja favorável, prioriza-se a permanência dos usos originais do edifício ou do espaço livre para favorecer a preservação de aspectos imateriais do itinerário ferroviário; Compatibilizar propostas com projetos dos órgãos públicos: as grandes áreas e estruturas ferroviárias despertam o interesse de diversos agentes que propõem projetos de reciclagem e reutilização para as mesmas atendendo a seus interesses. O desenvolvimento do itinerário ferroviário precisa considerar esses projetos anteriores, avaliando criticamente sua inserção ou rejeição na composição da proposta para o conjunto. Propor melhorias para acessibilidade e mobilidade: a recuperação da estrada de ferro como opção alternativa de transporte e mobilidade que contribua para a melhoria da acessibilidade urbana é uma tentativa de valorizar o valor de uso deste espaço.

Integrar espaços e equipamentos: é essencial reconhecer o potencial de integração entre os diversos espaços livres e equipamentos públicos localizados próximos ao itinerário ferroviário. No caso de Curitiba, equipamentos e espaços públicos próximos à ferrovia podem ser melhor interligados através de um projeto adequado para o itinerário ferroviário Preservar as áreas ferroviárias como espaço livre na cidade: fragmentar o espaço ferroviário em loteamentos ou inserir demasiados equipamentos prejudica a percepção da continuidade deste espaço e desperdiça o potencial que este espaço livre remanescente tem dentro do contexto urbano. O espaço da ferrovia precisa ser valorizado como eixo de ligação e não como barreira de fragmentação da malha urbana. Valorizar potenciais naturais e paisagísticos: as áreas ferroviárias possuem estruturas ambientais que precisam ser reconhecidas, preservadas e incorporadas à proposta de intervenção. Além das potencialidades da flora preservada, a hidrografia e o relevo contribuem para a diversificação dos espaços. Estas características físicas do território propiciam, por exemplo, a apreciação de visuais panorâmicas. Estimular a apropriação comunitária: estimular as sensações de bem estar e pertencimento nos espaços projetados. O envolvimento e a participação social nas diversas etapas de elaboração e implantação do itinerário, bem como a proposição de um calendário de eventos diversificados devem contribuir neste sentido. Consolidar rastros históricos da ferrovia: Muito do patrimônio ferroviário já se perdeu com a desativação e retirada dos trilhos. Os rastros históricos remanescentes desse processo precisam ser identificados e consolidados como registro da memória. Propor equipamentos que favoreçam a requalificação urbana: a inserção de novos equipamentos públicos pode contribuir para estimular a diversificação dos usos em áreas lindeiras à ferrovia, fator importante para a requalificação urbana. Estimular parcerias com a iniciativa privada: propor sistemas de parceria que estimulem o envolvimento da iniciativa privada na preservação do itinerário cultural, particularmente em áreas de grande interesse comercial, nos quais a participação de particulares pode auxiliar na consolidação das diretrizes propostas para a área. Estabelecer um padrão de intervenção: estabelecer um padrão visual de intervenções que favoreça o reconhecimento e a leitura dos diversos espaços que compõem o itinerário cultural como pertencentes a uma unidade. Patrimônio ferroviário em Curitiba

Para garantir a preservação apropriada de um edifício pertencente ao conjunto do patrimônio ferroviário curitibano, é necessária a compreensão da inserção deste elemento dentro do complexo conjunto de pátios, edifícios, estações e caminhos que a passagem dos trens deixou na paisagem da cidade. O primeiro ramal ferroviário a passar por Curitiba tinha origem no porto de Paranaguá e foi concluído em 1885. Em 1891, a linha férrea prolongou-se na direção de Araucária, até a cidade de Ponta Grossa, com diversas derivações no interior do Paraná. O terceiro ramal a atravessar Curitiba foi construído em 1909 ligando a capital ao município de Rio Branco do Sul. Com a expansão urbana e o aumento da demanda, em 1977 foi construído o ramal Pinhais - Engenheiro Bley, um desvio ferroviário que passava mais ao sul da cidade e que visava minimizar os conflitos entre os trens de carga e a cidade no ramal Curitiba - Araucária (Figura 1). (CÓRDOVA et al, 2010, p. 25, p.116). Com este novo ramal, o transporte de cargas deixou de circular pelo ramal Curitiba - Araucária. O trem de subúrbio, que funcionava neste mesmo ramal desde 1950, foi extinto durante a década de 1980, juntamente com a linha turística para a cidade histórica da Lapa. No início da década de 1990, esta linha foi definitivamente desativada e os trilhos foram removidos. Embora houvesse projetos de requalificação urbana propostos pelo IPPUC, boa parte da área do antigo leito ferroviário foi invadida e ocupada irregularmente por 1.200 famílias em 1991. Esta ocupação, parcialmente relocada pela prefeitura municipal e substituída por conjuntos habitacionais em 1995, contribuiu significativamente para a perda da percepção da imagem e da memória da ferrovia na região (DITTMAR, 2006, p. 135). Na análise das áreas atendidas pelos ramais ferroviários que passam por Curitiba, identificou-se que, em função de suas implantações no território, das relações com o tecido urbano e das iminentes ameaças de descaracterização, os ramais Curitiba - Paranaguá, Curitiba - Rio Branco do Sul e Curitiba - Araucária (desativado) possuíam prioridade para o desenvolvimento de diretrizes de preservação do patrimônio cultural ferroviário a eles associado.

Figura 1 - Ramais Ferroviários e Pontos de destaque na rede ferroviária de Curitiba, PR A região atravessada por esses três ramais ferroviários possui grande variedade de paisagens e ocupações. Embora o trabalho busque propor diretrizes para intervenções futuras a partir de uma compreensão do conjunto de elementos que compõe o patrimônio

ferroviário como uma unidade coesa, a diversidade da área de intervenção tornou necessária uma metodologia de interpretação do espaço que abarcasse essa diversidade. A partir da metodologia de interpretação das áreas de intervenção utilizados em trabalhos anteriores (CÓRDOVA et al, 2010; DITTMAR, 2006) e nos referenciais analisados no panorama apresentado, foram identificadas vinte unidades de paisagem que compõem o itinerário cultural ferroviário de Curitiba Esta proposta de análise foi elaborada a partir de parâmetros de permanência do uso ferroviário, localização e interação com a malha urbana do entorno, percepção simbólica, sobreposição de processos históricos de ocupação da área, cruzamentos significativos, hidrografia e relevo. Para categorização das informações do levantamento e das diretrizes, as vinte unidades de paisagem foram agrupadas conforme o ramal ferroviário a que pertenciam, sendo que as unidades que correspondiam simultaneamente a mais de um ramal foram agrupadas em um quarto grupo, identificado como Conjunto Central. O conjunto de paisagem "Vila Oficinas" é um desvio do ramal Curitiba - Paranaguá em direção ao conjunto de oficinas de locomotivas, atualmente administradas pela ALL. O Conjunto Central é composto por cinco unidades de paisagem, Conjunto Central, Desvios Particulares, Pátio de manobras Km 108, Praça Eufrásio Correia e Sociedade Ferroviária, estas duas últimas não estão ligadas fisicamente ao traçado da ferrovia, mas mantêm até hoje rastros da forte relação destas áreas com a cultura e o dia-a-dia das estradas de ferro. Três unidades de paisagem compõem o Ramal Curitiba Paranaguá: Capanema, Parada Cajuru Parada Stresser e a Vila Oficinas. O Ramal Curitiba Araucária, mais extenso e palco de disputas mais complexas, foi analisado e interpretado em nove unidades de paisagem distintas: Parque Linear Teatro Paiol, Vazio da Linha 1 e 2, Autolândia, Ferrovila 1 e 2, Portão e Ocupações irregulares 1 e 2. O Ramal Curitiba Rio Branco do Sul foi dividido em outras três unidades: Cristo Rei Alto da XV, Vila Argelina e Anita Garibaldi, completando o grupo de vinte unidades de paisagem. Valores de preservação Com base nas diretrizes estabelecidas pela fundamentação teórica e no levantamento global e das unidades de paisagem do Itinerário Cultural foram propostos seis aspectos imateriais para se preservar no patrimônio ferroviário curitibano. Durante a etapa de levantamentos, alguns trechos do itinerário destacaram-se pela notável concentração de alguns dos valores de interesse de preservação do patrimônio. Estes trechos foram identificados como Nós e são

recomendados como prioritários para receber projetos de requalificação do espaço ferroviário dado seu potencial multiplicador resultante destes valores. Dentro do escopo de um exercício acadêmico, estes valores de preservação foram escolhidos seguindo critérios técnicos e teóricos. Para a implementação efetiva desta metodologia de Itinerário Cultural é fundamental a participação comunitária nas diversas etapas do processo, porém, é na seleção dos valores do patrimônio ferroviário a serem preservados pelo Itinerário Cultural que o envolvimento comunitário torna-se essencial. Neste trabalho, os valores de preservação propostos são: Lugar dos trilhos: Os ramais ferroviários de Curitiba foram implantados anteriormente à expansão da malha urbana da cidade. Por conta disso, o traçado das ferrovias seguiu a mesma lógica de implantação dos caminhos históricos de colonização da cidade, se relacionando de forma bastante harmônica com o relevo da região. Estas vias utilizavam-se dos pontos mais altos do terreno, geralmente espigões divisores de bacias hidrográficas, de modo a ficarem em áreas mais secas e evitarem os cruzamentos com corpos d água. Porém, com o adensamento e verticalização da ocupação urbana da cidade, a percepção das curvas do relevo original de Curitiba ficou bastante prejudicada. Fruto dessa implantação particular, visuais panorâmicas simbolizam a paisagem ferroviária, com pontos de visibilidade aberta para locais significativos da cidade. Cruzamento com os trilhos: Os cruzamentos de pessoas e veículos com a linha do trem são a sobreposição de usos do espaço físico e criam pontos de tensão e interação. Os conflitos viários resultantes destes cruzamentos são constantes e decorrentes de deficiências de sinalização e infra estruturas de acessibilidade. A aproximação do trem se nota pelo apito, que aponta a fragilidade da relação da cidade com o trem e a necessidade de planejamento para o deslocamento intermodal. Além dos conflitos viários, o excesso de cruzamentos gera a descaracterização do traçado linear da ferrovia pela sua sucessiva fragmentação. A interação das composições com outros elementos da cidade, porém, fortalece sua lembrança como componente ativa na construção da cidade e na definição do desenho da malha urbana. Memória dos trilhos: Reconhecer e resgatar a importância das ferrovias para o desenvolvimento urbano de Curitiba durante o final do século XIX e início do século XX é primordial para garantir a preservação desse patrimônio. A memória dos trilhos, porém, não está apenas nas edificações de uso ferroviário, embora a continuidade do uso original destas seja elemento chave da preservação. Além dos elementos imateriais como os sons do apito e das locomotivas ou o cheiro de graxa, outros elementos carregam a imagem e a memória dos trens. Antigas indústrias e os embriões de povoamento adjacentes à ferrovia também ajudam a compor as peças dessa memória, bem como as infra estruturas operacionais de transporte,

como as pontes, viadutos e até os próprios trilhos. Com o tempo, o trem perdeu seu protagonismo no desenvolvimento da cidade. Em alguns lugares onde o trem não passa mais, ainda podem ser encontradas marcas da paisagem que foi sendo deixada para trás Linearidade dos trilhos: Uma característica de distribuição espacial fundamental do patrimônio ferroviário que o diferencia de outros conjuntos de interesse de preservação é o papel dos trilhos como elemento linear de aglutinação e unidade do itinerário. A linearidade dos trilhos está presente, por exemplo, na sequência de dormentes, as filas de vagões nas composições e nas vias marginais aos ramais. As intervenções realizadas sobre esta área ou suas adjacências precisam considerar esta particularidade, evitando a fragmentação e a descaracterização da linha. O parcelamento do solo através de loteamentos do trecho ou da abertura de muitos vias que interrompam o traçado da linha são exemplos de intervenções já realizadas nos ramais curitibanos. Alguns dos trechos onde a faixa de domínio da ferrovia foi loteada sofrem com a fragmentação e a dificuldade de leitura da memória do espaço urbano, sendo necessário controlar esta fragmentação. Os novos programas funcionais a serem inseridos nos espaços livres disponíveis devem considerar a linearidade dos trilhos. O modal cicloviário é especialmente interessante pois o traçado da ferrovia evita grandes aclives e declives do terreno, tornando o uso da via ideal para os ciclistas. Espaço dos trilhos: Lotear o espaço ferroviário ou inserir demasiados equipamentos prejudica a continuidade e desperdiça o potencial deste espaço livre remanescente dentro da cidade. As numerosas áreas verdes, sejam ruas arborizadas de baixo tráfego, jardinetes ou gramados, são espaços de conforto ao longo do itinerário que propiciam bem estar. Além do patrimônio edificado, as estruturas ambientais precisam ser valorizadas, preservadas e incorporadas às propostas de intervenção. Em bairros residenciais como Alto da XV, Cristo Rei e Capão da Imbuia, o espaço da ferrovia precisa ser valorizado como eixo de amenização e lazer ao invés de ser visto como barreira de fragmentação da malha urbana. Conexão pelos trilhos: Os melhores exemplos de inserção urbana são daqueles edifícios ou espaços livres que estabelecem relações adequadas com seu entorno imediato e próximo. Uma boa integração urbana pode propicia qualidade ao projeto. Historicamente, a ferrovia funcionou para ligar de forma rápida e eficiente localidades distantes e isoladas fisicamente umas das outras. O caso das vilas Nossa Senhora da Luz e Oficinas é bastante ilustrativo neste sentido. Deve-se reconhecer o potencial de integração entre os diversos espaços livres e equipamentos localizados próximos à área de intervenção. Dentre estes equipamentos, destacam-se parques, bosques e praças, espaços culturais, hospitais, escolas e universidades, quartéis e terminais de ônibus. Diretrizes para intervenções no Itinerário Cultural

Os valores de preservação são desenvolvidos em diretrizes gerais que deve orientar as intervenções sobre o substrato material em todo o Itinerário. Estas diretrizes gerais ramificam-se em diretrizes específicas mais detalhadas para cada ramal e, posteriormente, para cada Unidade de Paisagem, buscando coerência nas intervenções nas diferentes escalas. A proposição de diretrizes gerais é essencial para garantir a coerência e unidade do itinerário cultural ferroviário, fornecendo parâmetros que permitam que as propostas para as áreas ferroviárias favoreçam a consolidação dos objetivos propostos para o itinerário. As diretrizes específicas buscam reconhecer e valorizar as particularidades dos diferentes trechos do itinerário, integrando o conjunto aos contextos locais. De modo geral para o Itinerário, procura-se garantir a preservação do lugar dos trilhos através da manutenção dos cones de visibilidade em locais com vistas panorâmicas e da permanência e o resgate dos trilhos em seus traçados originais. Mantém-se a linearidade dos trilhos evitando o parcelamento das áreas ferroviárias e consolidando e reintegrando, quando possível, áreas já fragmentadas. Por outro lado, nos pontos de cruzamento dos trilhos propõe-se a criação de nós, com a implantação de infra estrutura de acessibilidade, sinalização visual e a valorização de pedestres e ciclistas. Para a preservação dos trilhos como espaço livre, propõe-se a promoção de atividades de participação comunitária e sociabilização por meio da criação de praças e parques nos espaços remanescentes. A consolidação de rastros históricos de diferentes períodos de ocupação das áreas ferroviárias e manutenção dos usos originais busca a valorização da memória dos trilhos enquanto que a integração de usos entre as áreas ferroviárias e equipamentos públicos adjacentes prevê a materialização do valor de conexão pelos trilhos de trem. Com base nas particularidades dos desdobramentos das diretrizes gerais nas diferentes unidades de paisagem, foram estabelecidas diretrizes específicas para as futuras intervenções nas áreas ferroviárias que buscam relacionar questões ambientais, urbanísticas, paisagísticas, sociais, de preservação da memória e de desenvolvimento integrado para fundamentar intervenções consistentes e coerentes com as dimensões urbana e local. Por limitação prática, neste artigo são apresentadas apenas as diretrizes propostas para o Ramal Curitiba Paranaguá. As diretrizes referentes ao Conjunto Central ou aos ramais Curitiba Araucária e Curitiba Rio Branco do Sul encontram-se disponíveis em bibliografia de apoio (OLIVEIRA, 2013).

O Ramal Curitiba Paranaguá foi o primeiro trecho da rede ferroviária paranaense, inaugurado em fevereiro de 1885, permitindo a transposição da Serra do Mar e a ligação da cidade de Curitiba com o porto de Paranaguá. Em Curitiba, o ramal inicia-se no cruzamento com o rio Atuba e segue paralelo à Avenida Affonso Camargo até a Rodoferroviária, atravessando bairros predominantemente residenciais de baixa densidade com poucas passagens de nível e diversos cruzamentos de pedestres ao longo do trajeto (Figura 2). Único trecho da ferrovia no estado em que ainda existe um transporte regular de passageiros para o litoral, mesmo que com fins turísticos. Figura 2 Levantamento do Ramal Curitiba Paranaguá com demarcação das unidades de paisagem Os terminais de transporte coletivo Capão da Imbuia, Vila Oficinas e Pinhais estão localizados ao lado da linha férrea, o que facilita a possibilidade de uma integração multimodal. Outros grandes equipamentos próximos ao ramal são o complexo esportivo do Tarumã (que engloba o estádio Pinheirão, o Ginásio do Tarumã e o Jockey Clube), o Velódromo municipal e o Jardim Botânico, além dos campi Botânico e Politécnico da UFPR. É composto por três unidades de paisagem: Capanema: Paisagem heterogênea, paralela à Av. Affonso Camargo com grandes empreendimentos ao norte da ferrovia e antigas casas térreas de madeira no lado sul da linha. Durante parte do trecho, um muro de arrimo estabelece um desnível que isola visualmente a avenida da linha férrea. Parada Cajuru - Parada Stresser: Trecho predominantemente residencial, com destaque para os dois conjuntos de casas de turma (Cajuru e Theodoro Stresser) e os desvios ferroviários para os galpões do Instituto Brasileiro do Café e para as garagens e oficinas da ALL.

Vila Oficinas: Conjuntos habitacionais populares construídos nas proximidades das oficinas de locomotivas ao longo de diferentes etapas, inicialmente pela RVPSC para seus funcionários, depois pelo IAPF e posteriormente ampliado pela COHAB. As diretrizes propostas para o Ramal (Tabela 1) priorizam a valorização da faixa de domínio da ferrovia como espaço livre e arborizado, bom como a criação de centralidades nos bairros para a apropriação comunitária através da preservação de pequenos conjuntos de edificações ferroviárias. Considerações Neste trabalho buscou-se discutir o uso da ferramenta de Itinerário Cultural como metodologia para preservação da memória de caminhos históricos, particularmente do patrimônio ferroviário de Curitiba. Com base na avaliação crítica de casos correlatos foram propostos princípios, valores e diretrizes para fundamentar projetos posteriores. O trabalho limita-se à elaboração das diretrizes, embora não se proponha a esgotar o tema. Para o aprofundamento da pesquisa, sugere-se o desenvolvimento das próximas etapas de para a implantação de um itinerário cultural ferroviário em Curitiba: Elaboração de um Plano de gestão do itinerário que relacione ações cuja implantação é prioritária, identifique responsáveis pela execução e estabeleça indicadores de avaliação; Detalhamento dos projetos de urbanismo, paisagismo e arquitetura para cada trecho do itinerário; Implantação dos projetos, avaliação da apropriação simbólica do itinerário e revisão do plano.

Valores Ramal - Geral Capanema Parada Cajuru Vila Oficinas Lugar dos trilhos Valorizar horizontalidade dos bairros residenciais, preservando vista para a Serra do Mar e edifícios de destaque. Criar espaços de permanência nos pontos com vistas panorâmicas para elementos ao sul da ferrovia. Ex.: Jardim Botânico. Recuperar e sinalizar a posição do desvio ferroviário para os galpões do Instituto Brasileiro do Café. Limitar gabarito das edificações para preservar vistas para a Serra do Mar e visibilidade dos galpões das Oficinas. Linearidade dos trilhos Implantar modal cicloviário marginal à ferrovia, locando pontos de apoio e assistência nos nós. Requalificar ciclovia e pista de caminhada paralelas à canaleta do ônibus e à ferrovia Implantar ciclovia paralela aos trilhos, com estações ciclísticas junto às casas de turma e nós. Projeto de paisagismo para as ruas comerciais Luiz França e Roraima. Cruzamento com os trilhos Melhorar acessibilidade nas transposições da ferrovia por pedestres e ciclistas. Melhorar acessibilidade nas transposições do talude entre a Av. Affonso Camargo e a ferrovia. Criar núcleo de convivência (nó) no cruzamento da rua Prof. Nivaldo Braga com a linha férrea. Melhorar acessibilidade no cruzamento de pedestres na rua Raymundo Nina Rodrigues com o desvio ferroviário para as Oficinas. Espaço livre dos trilhos Melhorar arborização e paisagismo ao longo da faixa de domínio da ferrovia. Propor arborização e paisagismo na faixa de domínio da ferrovia integrado aos largos adjacentes. Pavimentar cruzamentos de pedestres para adequar acessibilidade e propor paisagismo na faixa de domínio. Conter construção de equipamentos públicos nas poucas praças do bairro. Memória dos trilhos Valorizar a identidade cultural dos bairros a partir da preservação de conjuntos de pequenas casas. Identificar casas de madeira próximas à ferrovia e orientar moradores sobre o potencial e a importância da preservação. Consolidar usos habitacionais nas casas da RVPSC. Sinalizar edificações e desvios ferroviários. Preservar uso original das Oficinas. Preservar casas da RVPSC. Preservar relação de cheios e vazios do loteamento da COHAB. Conexão pelos trilhos Sinalizar e facilitar acesso a partir da ferrovia e propor atividades de integração entre os equipamentos públicos. Criar fácil acesso cicloviario ao Jardim Botânico, Velódromo e Campus Botânico da UFPR. Integrar Museu de História Natural e galpões do IBC à nova Rua da Cidadania do Cajuru e Terminal Capão da Imbuia. Tabela 1 Diretrizes para Unidades de Paisagem do Ramal Curitiba Paranaguá

Referências Bibliográficas CIIC - ICOMOS - Comité Científico Internacional dos Itinerários Culturais do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios. AMENDOEIRA, Ana P. (trad.) Carta dos Itinerários Culturais. Assembleia Geral do ICOMOS, 16, 2008, Québec, Canadá. CORDOVA, Dayane Z.; IUBEL, Aline; STOIEV, Fabiano; SOUZA, Leco de. Pelos trilhos: Paisagens Ferroviárias de Curitiba. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 2010. DITTMAR, Adriana Cristina Corsico. Paisagem e morfologia de vazios urbanos: análise da transformação dos espaços residuais e remanescentes urbanos ferroviários em Curitiba. 2006. 230 p. Dissertação (Mestrado em Gestão urbana). Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2006. IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Reflexões sobre a chancela da Paisagem Cultural Brasileira. Brasília: IPHAN, 2011. Disponível em < http://pib.socioambiental.org/anexos/19930_20110518_093241.pdf> Acesso em 15 fev 2013. KÜHL, Beatriz M. O Legado da Expansão Ferroviária no Interior de São Paulo e Questões de Preservação. In: CORREIA, Telma de B.; BORTOLUCCI, Maria Ângela P. C. S. (Org.). Lugares de Produção: arquitetura, paisagens e patrimônio. 1 ed. São Paulo: Annablume, 2012, p. 21-42. LECROART, Paul. Paris Rive Gauche: Learning from a mega project. Paris: IAURIF - Institut d Aménanagement et d Urbanisme de la Region d Ile-de-France, 2006. MARTI, Maria M. Alicante - Madrid, la primera línea férrea al Mediterráneo: Un recorrido paisajístico por la provincia de Alicante. UVEG-FGV: Valencia, 2008.. La memoria del territorio: La recuperación paisagística de la ruta del ferrocarril al Mediterráneo. In: Apuntes, vol. 24, n. 1, Bogotá, jan-jul 2011. OLIVEIRA, Gabriel R. Diretrizes para preservação do itinerário cultural ferroviário de Curitiba. 2013. 108 p. Monografia (Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2013. PENG, Leong K. (dir.). The Green Corridor: A proposal to keep the Railway Lands as a Continuous Green Corridor. Cingapura: Nature Society, 2010. TEIXEIRA, Aparecida N. Espaço Público e Projeto Urbano: O Eixo Tamanduatehy em Santo André/SP. In: PÓS - Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP, n. 21, São Paulo, FAUUSP, junho, 2007, p. 84-97.