Satisfação autística, isolamento e autismo: da constituição psíquica à psicopatologia



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Transcrição:

Latin-American Journal of Fundamental Psychopathology on Line, VI, 2, 69-83 Satisfação autística, isolamento e autismo: da constituição psíquica à psicopatologia Maria Izabel Tafuri Considerando-se a tendência atual dos sistemas de classificação em descrever o estado de isolamento de um bebê como sinal de Transtorno Autista torna-se necessário discutir essa categoria de classificação para vislumbrar os desafios a serem superados. Uma grande maioria dos profissionais tende a descrever o estado de isolamento em bebês como um déficit primário a ser alocado na categoria dos Transtornos Invasivos do Desenvolvimento. A descrição do estado de isolamento do bebê como um déficit permanente conduz a uma implementação de intervenções terapêuticas fechadas que não levam em conta as capacidades psíquicas do recém-nascido. Neste texto, procura-se definir, a partir da teoria freudiana, o isolamento como uma capacidade psíquica a ser fundada pelo ser, desde a saída do útero e, não apenas, como um estado psicopatológico relacionado ao Autismo. Palavras-chave: Autismo, isolamento, capacidade psíquica, psicopatologia 69 Nada aparece nas distorções patológicas que não repita um estado psíquico, anterior e necessário, à constituição do psíquico. Freud

LATIN-AMERICAN J O U R N A L O F F U N D A M E N T A L PSYCHOPATHOLOGY O N L I N E 70 A metáfora do ovo de pássaro foi criada por Freud, em 1911, em um artigo de fundamental importância, denominado Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. À época, Freud estava interessado em compreender o desinvestimento do mundo externo pelo doente, acompanhado de um fechamento em si mesmo, pensamentos fantasiosos, delírios e alucinações. Baseado em casos clínicos, Freud formulou um questionamento de fundamental importância: qual seria o destino da libido retirada dos objetos nos casos dos pacientes ensimesmados? Os delírios de grandeza do paciente ensimesmado deram a Freud a chave para responder à questão proposta. Para o autor, os delírios de grandeza são uma conseqüência do desinvestimento do mundo e uma manifestação do retorno da libido para o Eu, ameaçado por um afluxo demasiadamente grande de energia. Para compreender o retorno da libido para o Eu, Freud passa a refletir a constituição do psíquico em suas origens e formula um princípio de funcionamento psíquico de base: um sistema psíquico isolado dos estímulos do mundo externo, capaz de obter satisfação autística. Nas palavras de Freud (1911, p. 279). Um exemplo nítido de sistema psíquico isolado dos estímulos do mundo externo e capaz de satisfazer autisticamente, para empregar a expressão de Bleuler (1911), mesmo nas suas exigências nutricionais, é fornecido por um ovo de pássaro com sua provisão de alimento encerrada na casca. Para ele, o cuidado proporcionado pela mãe limita-se ao fornecimento do calor ao ovo (...) um sistema que vive de acordo com o princípio do prazer deve possuir dispositivos que o capacitem a afastar-se dos estímulos da realidade. Tais dispositivos são simplesmente o correlativo da repressão, que trata os estímulos desagradáveis internos como se fossem externos ou seja, empurra-os para o mundo externo. A metáfora do ovo de pássaro permite sublinhar o emprego que Freud faz do termo autístico para que se possa estabelecer relações com as noções de isolamento, autismo patológico (Kanner, 1943) e

autismo normal (Mahler, 1951). É importante ressaltar que o pai da psicanálise empregou, pela primeira vez, o termo autístico para caracterizar a satisfação de um sistema psíquico fechado que capacita o recém-nascido criar dispositivos que empurram os estímulos desagradáveis para fora. Nesse sentido, a principal contribuição freudiana veiculada pela metáfora do ovo de pássaro refere-se à constituição de uma capacidade psíquica a ser fundada pelo bebê nas primeiras relações com o seu cuidador. Neste texto, procura-se enfatizar a contribuição original de Freud no tocante à capacidade do bebê de criar mecanismos psíquicos que possibilitem o afastamento de estímulos desagradáveis em contraponto à noção comumente estabelecida, ao longo dos anos, de que a metáfora do ovo de pássaro diz respeito ao bebê isolado, incapaz de responder aos estímulos da realidade. É curioso observar a forma como o texto freudiano sobre a metáfora do ovo de pássaro passou a ser criticada, tanto no terreno psicanalítico quanto no médico, principalmente, com a descrição do autismo infantil precoce, realizada por Léo Kanner em 1943. As origens da noção de autismo 71 O termo autístico foi criado originalmente por Eugène Bleuler, em 1911, para descrever o mundo interno do esquizofrênico. Segundo Bleuler, o doente ao ser acometido pela afecção, a dissociação mental (Spaltung), cria um mundo fantasioso próprio que passa a ser a realidade na qual ele vive. O autor denominou por pensamento autístico o mundo interno do esquizofrênico preenchido por fantasias, alucinações e delírios. Interessante observar a utilização feita por Freud do termo autístico. Ao criar a metáfora do ovo de pássaro, Freud estabelece uma relação intrínseca entre o estado de ensimesmamento do esquizofrênico e as primeiras vivências do bebê fora do útero materno. Freud (1911) postula os princípios do funcionamento psíquico de origem: um sistema psíquico capaz de isolar os estímulos do mundo externo e obter satisfação autística, mesmo nas suas exigências nutricionais. Com a criação da metáfora do ovo de pássaro Freud insere, pela primeira vez, o termo autístico no terreno da normalidade, diferentemente de Bleuler e Jung que descrevem o pensamento autístico apenas no terreno da patologia. E o mais importante, o termo autístico é usado por Freud para caracterizar uma forma de obtenção de prazer de um sistema psíquico fechado, a ser fundado desde o nascimento. Freud deixa clara, mais uma vez, a sua meta: pensar os quadros psicopatológicos a partir da constituição e do funcionamento do psíquico. Seguindo

LATIN-AMERICAN J O U R N A L O F F U N D A M E N T A L PSYCHOPATHOLOGY O N L I N E o caminho metodológico freudiano do fazer psicanálise, o objetivo deste trabalho é refletir o denominado Espectro Autista em bebês a partir de uma questão básica: qual seria o destino da libido não investida nos objetos? As vivências de satisfação do recém-nascido 72 As primeiras formulações de Freud de inspiração psico-biológica sobre as vivências de satisfação do recém-nascido datam de 1895 no Projeto para uma psicologia científica. Freud se mostra interessado em compreender a independência da aspiração a um estado de total inexcitabilidade dos sistemas não investidos. Segundo Freud, a tendência original do sistema neuronal à inércia é o abaixamento da tensão a zero, o princípio da Nirvana. É importante acentuar a posição de Freud sobre a existência de um princípio, uma função primária ou uma tendência originária cuja finalidade é manter o sistema em estado de nãoexcitação. E mais, um princípio independente de uma manifestação puramente psíquica. Um estado que não poderia ser pensado como uma conseqüência de seu funcionamento, uma de suas finalidades, mas como se ele mesmo devesse obedecer a uma exigência: manter o sistema em estado de não-excitação, nível zero. Nota-se que Freud fala de uma propriedade do sistema neuronal de suprimir totalmente a excitação pela fuga, o que, em contrapartida, é uma operação impossível para os estímulos internos. Ainda no trabalho de 1895, Freud observa que, mesmo nesse período inaugural da vida, onde predominam os processos fisiológicos, não se pode afirmar existirem apenas os reflexos inatos, como os da sucção, da preensão e outros. Segundo ele, o bebê, quando colocado no colo da mãe, vira sua cabeça em direção ao seio para atingir o prazer desejado, já experimentado em encontros prévios com o mesmo seio. Nesse sentido, pode-se dizer que o bebê adquire uma motivação para buscar o prazer. Freud salienta que nesse período o seio não é percebido como objeto externo, em toda a sua totalidade, entretanto a motivação humana para buscar o prazer e evitar o desprazer é uma capacidade psíquica a ser constituída, desde a saída do útero materno. Para Freud, o desprazer significa um aumento de tensão que nasce no corpo do bebê, uma necessidade física como a fome, por exemplo. O bebê só consegue alívio mediante os gritos e o choro que atraem a atenção da mãe ou do seu substituto, único capaz de aplacar as necessidades do bebê. Segundo Freud, essa via de descarga adquire a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais (Freud, 1895, p. 422).

Em 1905, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade infantil, Freud descreve a capacidade do bebê em alucinar a satisfação de suas necessidades internas, chupando os seus próprios lábios, a língua e os dedos. Esta capacidade de alucinar concretiza a afirmação segundo a qual o corpo toma o lugar do objeto. O bebê abandona as alucinações quando percebe a ausência da satisfação esperada. Ou seja, chupando os dedos o bebê prolonga o estado de prazer, obtido durante a amamentação, mas não aplaca a necessidade física da fome. O que leva o bebê a fazer a ligação libidinal com o mundo externo é a percepção de que a alucinação não aplaca, por completo, a sua necessidade de sobrevivência. O lactente passa a distinguir entre o seio alucinado e o seio real, este, o único capaz de fazer cessar a sua necessidade. A introdução do princípio de realidade é decisiva para a vida posterior do indivíduo e está na origem das funções psíquicas essenciais, como a consciência, a atenção, a memória e o discernimento, a partir dos quais se formará o pensamento. Para Freud, o bebê pode tomar por objeto inicial as partes do próprio corpo (zonas erógenas) e ignorar, por um certo tempo, as determinações do real. Em particular, a fantasia regida essencialmente pelo princípio do prazer conserva um enlace especial com as pulsões sexuais, enquanto as pulsões do ego se encontram associadas à consciência e, portanto, ao princípio da realidade. Segundo Freud, nos bebês, os lábios, a língua, a mucosa interna da boca e a pele do dedo são tomadas como objeto sobre o qual se executa a ação de sugar com fruição. A ação de sugar com fruição toma a atenção do bebê, que fica totalmente voltado para si mesmo e o leva ao adormecimento. É importante ressaltar que o termo alemão utilizado por Freud para descrever o auto-erotismo nas crianças foi Lust, traduzido por prazer, desejo e vontade. Entretanto, Hanns (1996) observa que a tradução mais correta do termo no contexto da sexualidade infantil seria sensação prazerosa, termo que enfatiza a sensação extraída da atividade e não o objeto. Nas palavras do autor, Lust designa aquilo que há de mais imediato e irredutível na sensação, quando esta brota no corpo, antes ainda da fruição plena do prazer e do gozo (p. 147). Ao usar a palavra Lust, ao invés de outros termos relacionados à sexualidade adulta, como Wunsch (desejo), Begierde (prazer intenso), Genub (deleite, fruição prazer), Freud quis diferenciar a sensação prazerosa da criança do prazer sentido na vida adulta. Com a tradução de Lust focada na noção de prazer perde-se a idéia originária em Freud de que a sensação prazerosa do bebê na casca do ovo refere-se às sensações que brotam no corpo, o prazer antecipatório e a disposição (vontade). Segundo Hanns, o verbete Lust situa-se entre a pulsão e o anseio psíquico que é da ordem do desejo, é usado na acepção de uma vontade que brota, o brotar súbito de humor. Na fase adulta, pode também ser equivalente à palavra tesão, na medida em que descreve o brotar das sensações. O prazer descrito como Lust 73

LATIN-AMERICAN J O U R N A L O F F U N D A M E N T A L PSYCHOPATHOLOGY O N L I N E refere-se ao brotar contínuo das sensações, rente ao corpo, e o conseqüente aumento de disposição. Na formulação da metáfora do ovo de pássaro, Freud evidencia o termo Lust para introduzir os dois princípios do funcionamento mental, o princípio do prazer e o princípio da realidade. O pai da psicanálise deixa claro a característica da autoreferência nas significações de Lust. Esse termo é entendido como o imediatismo das sensações corpóreas, que configuram, segundo Hanns (1996, p. 147), uma espécie de verdade do corpo. Freud (1905) utiliza o termo Lust para desenvolver o conceito de narcisismo primitivo que supõe a retirada da libido do objeto perdido e o retorno para o próprio corpo, em um tempo anterior a qualquer tipo de representação. O narcisismo primitivo ocorre diretamente no corpo, sem intermediação psíquica e constitui a primeira fase de desenvolvimento do aparelho psíquico. Esta questão abre uma importante fonte de investigação sobre o estado de isolamento e o Autismo. 74 O isolamento, o autismo e a capacidade de estar só Winnicott (1958a) aborda dois fenômenos de fundamental importância para a compreensão da metáfora freudiana do ovo de pássaro e o autismo: a capacidade de estar só e o isolamento. Para o autor, a capacidade de estar só tem suas raízes nas primeiras relações do lactente com sua mãe. Winnicott propõe uma fórmula ousada e determinante para a pesquisa da relação materno-infantil: não existe um bebê sem os cuidados maternos. Nas palavras do autor: Objetar-se-á com razão que uma organização que era escrava do princípio do prazer e negligenciava a realidade do mundo externo não poderia se manter viva pelo mais curto espaço de tempo, de modo que não poderia chegar a existir de modo algum. O emprego de uma ficção como essa é, contudo, justificado, quando se considera que o lactente uma vez que se inclua nele o cuidado que recebe da mãe quase que concretiza um sistema psíquico deste tipo (Freud, 1911; apud Winnicott, 1958a, p. 40). A escolha de Freud do termo autístico para descrever o modo como o bebê vive na casca do ovo, evidencia a dependência absoluta do bebê, pois, se o lactente fosse regido apenas pelo princípio do prazer e pela negligência da realidade do mundo externo, ele não sobreviveria. Quando a mãe oferece o seio para o recém-nascido e ele passa a sugá-lo, estão aí envolvidas reações relativas a padrões de sensação que asseguram tanto a sobrevivência como também o senso de ser do bebê.

Segundo Winnicott (1958a), as sensações relativas aos órgãos sensoriais (cheiro, paladar, olfato, audição, visão), os padrões de ritmo e sensações associados ao ato de sugar e as vibrações experimentadas em contato com o corpo da mãe parecem ao lactente ser o seio e a mãe, ambos reais. O autor considera que o bebê é capaz de criar uma área de ilusão, essencial à constituição do self e que conduz ao sentimento de onipotência. Nessa primeira fase da vida, segundo Winnicott, o lactente cria o seio, mas não poderia fazê-lo se a mãe não estivesse ali e no momento exato. É, portanto, desde o nascimento que o ser humano lida com o problema da percepção objetiva da realidade e daquilo que é subjetivamente concebido. Por meio da noção de satisfação autística do bebê, Freud e Winnicott enfatizam a capacidade do recém-nascido de manter uma certa independência em relação aos estímulos externos, a satisfação autística das necessidades. Com a utilização do termo autístico no terreno da normalidade Freud reafirma nada aparecer nas distorções psicopatológicas (o pensamento autístico dos esquizofrênicos) que não repita um estado psíquico anterior, necessário à constituição do psíquico (a satisfação autística do bebê). As considerações de Winnicott permitem pensar na existência de duas condições na metáfora freudiana do ovo de pássaro: a primeira, desde que se incluam no bebê os cuidados da mãe e a segunda, o lactente quase concretiza um sistema fechado, o de estar hermeticamente fechado na casca do ovo. Pode-se compreender a partir de Freud e Winnicott que o recém-nascido, ao ser cuidado pela mãe, tem a possibilidade de criar uma casca protetora que quase concretiza um modelo psíquico fechado à estimulação externa. Para Freud a satisfação prazerosa (Lust) do lactente é o brotar contínuo de sensações rente ao corpo que permitem a constituição de uma casca protetora, ou seja, a fundação de um sistema psíquico fechado. No caso do desenvolvimento normal seria constituída uma casca porosa e permeável ao teste da realidade, entretanto, no caso de sofrimento psíquico, uma casca mais dura e impermeável. Em síntese, levando-se em consideração os ensinamentos de Freud e Winnicott, cabe ressaltar que o estado de isolamento do bebê diz respeito a uma capacidade psíquica a ser fundada desde a saída do útero. O bebê é capaz de abandonar a satisfação autística encontrada em si mesmo ao surgir a emergência de uma necessidade maior, como a fome, por exemplo. Trata-se, portanto, da fundação de um sistema psíquico fechado capaz de quase concretizar um modelo de isolamento hermeticamente fechado. Como se pode ver a seguir, com a descrição do autismo infantil precoce de Kanner, a metáfora freudiana do ovo de pássaro ganhou novas versões, em especial, a invenção do autismo normal com Margareth Mahler e Frances Tustin. 75

LATIN-AMERICAN J O U R N A L O F F U N D A M E N T A L PSYCHOPATHOLOGY O N L I N E Autismo normal: um conceito a ser desprezado? 76 O termo autismo normal surge no contexto psicanalítico na década de 1940, com Margaret Mahler, psicanalista de origem húngara, filiada à Sociedade Psicanalítica de Nova York e pediatra do serviço de crianças do Instituto de Psiquiatria do Estado de Nova York. Em 1940, Mahler passa a ser consultora chefe do serviço de crianças do Instituto de Psiquiatria do Estado de Nova York. À época, Léo Kanner, psiquiatra de origem austríaca, também residente nos Estados Unidos, desenvolvia pesquisas sobre as psicoses de crianças e estava em vias de apresentar à comunidade científica a descrição psiquiátrica de uma nova síndrome, o autismo infantil precoce. Em consagrado artigo de 1942-1943, Distúrbios autísticos de contato afetivo (Autistic disturbances of affective contact), Léo Kanner, motivado por uma observação clínica excepcional e fascinante, introduz a síndrome do autismo infantil precoce no contexto da psiquiatria infantil. De 1938 a 1943, Kanner observa, de forma sistemática, um grupo de onze crianças oito meninos e três meninas que tinham sido encaminhadas ao serviço psiquiátrico do Hospital John Hopkins com diferentes diagnósticos: esquizofrenia, fraqueza de espírito (feebleminded), surdez, deficiência mental e demência precoce. Kanner considera esses diagnósticos inadequados, pois o quadro clínico apresentado pelas crianças não cabia, por completo, nas classificações então estabelecidas. Segundo o psiquiatra, as onze crianças apresentavam uma característica excepcional, um distúrbio fundamental, patognomônico: estas crianças vieram ao mundo com uma incapacidade inata de estabelecer contato afetivo habitual com as pessoas, biologicamente previsto, exatamente como outras crianças vêm ao mundo com deficiências físicas ou intelectuais (Kanner, 1942-1943, p. 42-3). Kanner pondera que, no caso desse grupo de crianças, não se poderia pensar no diagnóstico de uma esquizofrenia infantil (Potter, 1933), pois nenhuma delas demonstrara um retraimento (withdrawal) sucedendo um contato afetivo normal no início da vida. Nas palavras conclusivas do autor: Existe, desde o princípio, um fechamento autístico extremo (extreme autistic aloneness) que, sempre que possível, faz com que a criança negligencie, ignore ou recuse tudo o que lhe vem do exterior (ibid., p. 33). A partir dos estudos de Kanner, Mahler mostrara-se interessada em pesquisar as psicoses infantis do ponto de vista do desenvolvimento normal da criança. Em 1951, Mahler apresenta em um importante Congresso Internacional de Psicanálise, na Europa, suas primeiras formulações sobre a psicose e a esquizofrenia da criança. A psicanalista define síndromes autísticas e simbióticas, observadas por

ela, Furer e Settlage. Fortalecida pela comunidade científica e apoiada por Kanner, sobre a conclusão de que as raízes das psicoses infantis deveriam ser buscadas na segunda metade do primeiro ano e segundo ano de vida, Mahler apresenta em 1955 a hipótese da universalidade da origem simbiótica da condição humana, considerando necessário o processo de separação-individuação no desenvolvimento normal da criança. Dessa pesquisa surge o conceito de autismo normal elaborado por Mahler (1951). O conceito de autismo normal foi formulado Mahler e Gosliner por uma comparação entre a predominância dos estados de sonolência do recém-nascido e a metáfora freudiana do ovo de pássaro. Segundo Mahler, na primeira fase da vida em que o bebê passa a maior parte do tempo no estado de sonolência e semivigília, os processos fisiológicos dominam os psicológicos. O recém-nascido só acorda quando as tensões de necessidades vitais o fazem chorar. Ao ser satisfeito em suas necessidades, o bebê, aliviado da sobrecarga da tensão, volta ao estado de sonolência. A autora conceitua este estado sensório de autismo normal, pois, nessa fase, o bebê parece estar num estado de termo empregado por Ferenczi, em 1913 (apud Mahler, 1979, p. 59). Mahler considera a existência de duas fases durante as primeiras semanas de vida extra-uterina: o narcisismo primário absoluto, marcado pela falta de consciência do agente materno, onde predomina o autismo normal, e o narcisismo primário, caracterizado pela consciência turva de que a satisfação de necessidade não provém da própria pessoa, mas de algum lugar externo ao eu (o estágio de onipotência alucinatória absoluta ou incondicional, proposto por Ferenczi). No autismo normal, o sistema enteroceptivo opera desde o nascimento, e o sistema consciente perceptivo? o sensório ainda não está catexizado. O periférico apenas gradualmente cede lugar à percepção, especialmente à percepção espacial do mundo externo (Mahler, 1979, p. 60-1). Frances Tustin (1972), a exemplo de Mahler, considera o conceito freudiano de narcisismo primitivo inadequado para descrever o mecanismo mental primitivo associado ao autismo normal. Segundo Tustin (1981, p. 32), o autismo normal é um estado anterior ao pensamento, enquanto o autismo patológico é um estado que se opõe ao pensamento, um sistema de manobras pelo qual a realidade nãoeu é evitada, resultando assim no quadro clínico a que chamamos psicose. Tustin propõe a fase do autismo primário normal, um período inicial da vida do recémnascido, um estado de não diferenciação. A autora define um distúrbio psicopatológico denominado de autismo primário anormal, uma fixação no estado do autismo normal devido aos distúrbios na relação do bebê com o meio ambiente, por dificuldades do bebê e/ou do seu cuidador. As considerações de Tustin sobre o autismo normal vieram a sofrer mudanças radicais na década de 1990. Em um artigo polêmico intitulado A 77

LATIN-AMERICAN J O U R N A L O F F U N D A M E N T A L PSYCHOPATHOLOGY O N L I N E 78 perpetuação de um erro, Tustin (1991) passou a desconsiderar a existência da fase do autismo normal como pode ser visto nas palavras da autora: Não há um estágio infantil normal no autismo primitivo para o qual o autismo patológico poderia ser uma regressão. Essa tem sido a hipótese da tendência principal, no que concerne à etiologia do autismo infantil, a qual muitos terapeutas psicanalíticos se subscreveram, especialmente nos Estados Unidos e na Europa. Essa hipótese defeituosa, baseada em premissas incompletas e inacabadas, tem sido como um vírus que penetrou e distorceu formulações clínicas e teóricas. Ela perpetuou essas distorções e obstruiu comunicações entre pesquisadores... (ibid., p. 63) Ao fazer esses comentários, Tustin sugere a restrição do uso do termo autismo apenas aos estados patológicos, contrariando a sua visão anterior, dos anos 1970 a 1985, quando enfatizara os malefícios dessa visão. A autora se baseia em trabalhos que apontam para um consenso geral entre os teóricos da psicanálise, de que o bebê, ao nascer, já é uma entidade psicológica envolvida num complexo conjunto de interações interpessoais com a mãe. Tustin compara o bebê na casca do ovo com o bebê em um casulo, fechado à estimulação externa. Segundo ela, a noção de que o bebê existe inicialmente dentro de uma casca de ovo, em um casulo, em uma fase anterior à relação primitiva com a mãe, seria insustentável por causa de trabalhos, como os de Bower (1977), Stern (1977), Fraiberg (1980), Kreisler (1981), Brazelton (1981) e muitos outros. A grande maioria dos autores evidencia que, desde o nascimento, o bebê está constitucionalmente equipado para perceber e entrar num diálogo recíproco com a mãe ou um substituto. Tustin conclui, a partir dessas pesquisas, não haver a fase de autismo normal. Daí a proposta da psicanalista em passar a utilizar o termo autismo apenas no contexto da psicopatologia. Ogden (1994, p. 167), diferentemente de Tustin, não concorda com a proposta de conceber o autismo apenas no terreno do patológico. Nas palavras do autor,... o debate em torno da questão de se, no princípio, o bebê está-em-um (at one) com a mãe (e, portanto, inconsciente da existência separada dela e da de si próprio), ou se o bebê é capaz de reconhecer a diferença entre ele mesmo e o outro, é um assunto mais complexo. Parece-me que não é mais necessário ou recomendável construir nossas questões sobre a experiência infantil de uma forma que nos force a escolher entre a noção do bebê estando-em-um com a mãe ou separado dela. Se ao invés disso, considerarmos a experiência infantil (cada uma coexistindo com as outras), não é mais necessário formular nossas questões em termos de oposições mutuamente excludentes. Ogden considera o autismo como um modo universal de gerar experiência e não uma forma severa de psicopatologia infantil ou suas seqüelas. Ou seja,

diferentemente de Tustin, ele continua usando o termo autismo para pensar a constituição psíquica do bebê. Nesse sentido, Ogden dá continuidade ao pensamento de Freud sobre a constituição de um tipo de funcionamento psíquico, a satisfação autística do bebê. Vale lembrar que Freud parte da descrição de um estado psicopatológico, o pensamento autístico do esquizofrênico, para descrever os dois princípios do funcionamento psíquico. Diferentemente de Mahler e Tustin, pode-se observar em Ogden a tendência em trilhar o caminho aberto por Freud: partir da psicopatologia para refletir a constituição do psíquico. Para Tustin, a noção do bebê isolado dentro da casca do ovo, incapaz de responder à estimulação externa, deve ser abandonada segundo os dados científicos sobre as capacidades perceptivas do recém-nascido. Contudo, como mencionado anteriormente, o que a metáfora freudiana revela é a capacidade do bebê de afastar os estímulos externos e criar a possibilidade de estar absorto consigo mesmo, preenchido por sensações prazerosas. Ou seja, Freud não se ateve ao estudo das capacidades neurológicas do bebê para referir-se ao recémnascido incapaz de estabelecer contato com o mundo externo, por ser neurologicamente imaturo. Freud trata, em especial, do destino da libido desde o nascimento. A metáfora do ovo de pássaro diz respeito à capacidade psíquica do recém-nascido de criar a sua casca protetora, na qual ele pode isolar estímulos dolorosos e vivenciar sensações prazerosas. Importante constatar que Winnicott considera a capacidade do bebê de criar a área de ilusão, em um estado de isolamento e dependência absoluta da mãe. Nesse sentido, a casca do ovo pode ser compreendida, à luz dos dois princípios do funcionamento mental, como uma capacidade psíquica de criar uma realidade interna, a área de ilusão, que mantém certa independência dos estímulos externos. Dessa forma, com essa capacidade psíquica, o bebê adquire a possibilidade de se isolar em um estado de dependência absoluta do outro. 79 Conclusões Ao se levar em conta a noção dos dois princípios do funcionamento psíquico a partir da metáfora freudiana do ovo de pássaro encerrado em sua casca é possível repensar a noção de satisfação autística como uma capacidade psíquica a ser fundada pelo bebê, desde a saída do útero e relacioná-la com o Transtorno Autista. Como se viu, na mesma época em que Bleuler revolucionou o saber médico designando de esquizofrenia os quadros conhecidos como demência precoce, Freud descreveu a fundação de dois princípios de funcionamento psíquico, a

LATIN-AMERICAN J O U R N A L O F F U N D A M E N T A L PSYCHOPATHOLOGY O N L I N E 80 capacidade do bebê de reviver sensações prazerosas e a capacidade de evitar o desprazer. Importante sublinhar que o pai da psicanálise retratou a capacidade psíquica do bebê em fundar um sistema psíquico fechado preenchido por sensações que brotam no corpo, segundo dois princípios de funcionamento psíquico, o princípio do prazer e o princípio da realidade. Ou seja, Freud relacionou o isolamento do bebê preenchido por satisfações autísticas ao estado de ensimesmamento do esquizofrênico preenchido por pensamentos autísticos. O termo autístico foi usado para descrever sensações que brotam no corpo do bebê, que podem ser revividas a partir dos princípios, o do prazer e o da realidade. Winnicott contribuiu de forma significativa para a compreensão da satisfação autística a partir de uma noção paradoxal: a capacidade do bebê de estar só na presença da mãe. Para ele, a capacidade de estar só na presença do outro tem suas raízes nas primeiras relações mãe-bebê e não pode ser confundida com o estado de retraimento. Nesse mesmo sentido, a noção de satisfação autística não deveria ser confundida com os estados de isolamento, tanto no autismo de Kanner quanto nas esquizofrenias. E o mais paradigmático, o isolamento do bebê na casca do ovo não pode ser tomado como uma fase do desenvolvimento, designada por Mahler como autismo normal. Mahler utilizou o termo autismo da psiquiatria de Kanner (1944) para descrever o estado sensório de isolamento e ensimesmamento do bebê. Assim procedendo, a autora desprezou o adjetivo autístico, usado por Freud para descrever um modelo de atividade psíquica originária do ser humano. Ocorreu assim a repetição da problemática causada anteriormente por Bleuler e Jung, quando Eros foi suprimido do conceito de auto-erotismo de Freud, para dar nascimento ao termo autístico de Bleuler. No momento, cabe refletir sobre o diálogo de surdos entre aqueles que tratam o estado de isolamento do bebê como uma incapacidade um sinal patognomônico referente ao Espectro do Autismo e aqueles que vêm o isolamento do bebê como uma capacidade psíquica a ser fundada desde o nascimento. O bebê tem a possibilidade ou não de criar a casca do ovo, uma proteção em relação ao desprazer. Em outras palavras, os estados de isolamento, de retraimento e de ensimesmamento são compreendidos, à luz da metáfora freudiana do ovo de pássaro, como capacidades psíquicas a serem constituídas desde o nascimento e que aparecem, de forma distorcida, em quadros psicopatológicos. Parafraseando Freud, nada aparece nas distorções patológicas que não repita um estado psíquico, anterior e necessário, à constituição do psíquico.

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Considérant la tendance actuelle des systèmes de classification à décrire l état d isolement du bébé comme signal de perturbation autiste, il devient nécessaire de discuter cette catégorie de classification pour entrevoir les défis à vaincre. La grande majorité des professionnels tend à décrire l état d isolement des bébés comme un déficit primaire à placer dans la catégories des perturbations agressives du développement. La description de l état d isolement du bébé comme déficit permanent conduit à l emploi d interventions thérapeutiques fermées qui ne prennent pas en compte les cacacipés psychiques du nouveau-né. Dans le présent texte on cherche, à partir de la théorie freudienne, à définir l isolement comme une capacité psychique qui est à établir par le sujet depuis la sortie de l utérus, et pas seulement comme un état psychopathologique lié à l autisme. Mots clés: Autisme, isolement, capacité psychique, psychopathologie Considering the catalog systems current inclination to describe the baby aloneness state as a sign of Autistic Disturbance, it becomes necessary to discuss that type of classification to achieve a better discerning of the challenges to overcome. A large majority of the professionals tend to conceive the baby aloneness state as a primary deficit which is to be allocated at the Development Invasive Disturbances category, as shown in the DSM-IV compendium. The representation of the baby aloneness state as a permanent deficit favors an implementation of excludent therapeutic interventions which don t take into account the new-born psychic capabilities. This paper strives to define, using Freudian theory as a reference, the baby aloneness state a psychic competence to be established by the human being since his exit from the womb, more than simply a psychopathological condition related to Autism. Key words: Autism, aloneness, psychic competence, psychopathology 83