PARECER Nº 13.091 Cremação de cadáveres. Previsão na Lei dos Registros Públicos. Pressupostos: manifestação de vontade ou interesse da saúde pública, bem como atestado de óbito firmado por dois médicos ou por um médico legista e, no caso de morte violenta, autorização da autoridade judiciária. Senhor Procurador-Geral: A Secretaria da Justiça e da Segurança remeteu a esta Procuradoria-Geral consulta acerca da possibilidade legal de cremação e seus requisitos. A questão foi suscitada pela Empresa CORTEL S/A, mantenedora do cemitério Parque Ecumênico Cristo Rei, localizado no município de São Leopoldo, a qual instalou e operará, nas dependências de referido cemitério, um forno crematório, observando o disposto na Lei nº 4.411, de 24 de setembro de 1997, do Município antes citado. Em correspondência dirigida ao Sr. Secretário da Justiça e Segurança a empresa expõe que operará o forno crematório de acordo com os requisitos da lei municipal, perquirindo se há outras normas a serem observadas. É o breve relatório.
2 GALBIATTI: A cremação é assim definida por ELINÁ DARCI Cremar vem do latim cremare (v. Santos Saraiva, Novíssimo dicionário) que quer dizer incinerar, queimar, referindo-se a cadáver. Ao seu turno, cadáver, segundo os léxicos nacionais, significa corpo sem vida de homem ou animal, o mesmo que defunto, i.e., aquele que já se desobrigou do encargo da vida. A cremação de cadáver entre nós só se efetuará se houver manifestação expressa de vontade, em vida, daquele que assim o desejar, ou no interesse da saúde pública. Implica, portanto, a cremação, o direito personalíssimo de dispor do próprio corpo. (In Enciclopédia Saraiva do Direito, São Paulo, Saraiva, v. 21, 1978, pp. 206-207). Discorrendo sobre o tema, manifesta-se o Dr. JUSTINO ADRIANO FARIAS DA SILVA, Procurador do Estado do Rio Grande do Sul, especialista em direito funerário: No Brasil, em respeito aos princípios da Igreja Católica Apostólica Romana, por todos professada (oficial), que a proibia pelo Direito Canônico, nem se proibiu e nem se permitiu. Alguns doutrinadores de estirpe (v.g., Bento de Faria, Carvalho Santos, etc.), entenderam estar a cremação proibida em nosso ordenamento jurídico, mas a idéia não prevaleceu. Hoje, face o que estipula o artigo 77 da Lei dos Registros Públicos, é permitida a sua realização, desde que tenha o falecido expressado seu desejo de ser cremado ou quando questões sanitárias o exigirem. (...). Nunca houve proibição dessa prática, de tal sorte que sempre as municipalidades puderam, dentro da sua autonomia administrativa, implantar fornos crematórios, colocando-os à
3 disposição de quem os quisesse usar (Informação prolatada em 20/12/97, no processo administrativo nº 017040-10.00/97-1, cuja consulta versava sobre a possibilidade de o mestre tibetano Chagdud Tulku Rinpoche ser cremado pelo ritual budista, no município de Três Coroas, pp. 33-34). Mais adiante, assevera o mencionado Procurador: Entretanto, - escrevia Pontes de Miranda -, no regime da Constituição de 1946: Nem a Câmara dos Vereadores do Distrito Federal, nem as Assembléias Legislativas, nem as Câmaras Municipais podem edictar regras jurídicas sobre permissão ou vedação da cremação de cadáveres. O que as Câmaras Municipais e a Câmara do Distrito Federal podem fazer é estabelecer normas, de natureza municipal, sobre lugar e aparelhos de cremação. Qualquer lei que, partindo de Câmara Municipal, ou da Câmara dos Vereadores do Distrito Federal, ou das Assembléias Legislativas, crie pressupostos necessários ou suficientes à cremação, ou cerceie a liberdade dos cemitérios particulares, a que se refere o art. 141, 10, da Constituição de 1946, infringe a Constituição -, pode ser vetado o projeto, ou decretada a inconstitucionalidade da lei. É matéria estranha à competência da legislação municipal a adoção ou vedação da cremação de cadáveres. À autoridade municipal somente se atribui a administração de cemitérios. (O art. 212 do Código Penal fala de vilipendiar cadáveres ou suas cinzas. Cinzas está, aí, em sentido amplíssimo, de modo que no conceito entra o próprio resíduo do corpo humano, após algum tempo de enterramento. Porém o Código Penal nada tem com o direito ou o não-direito à cremação.) O que importa saber-se é que a Constituição permite a cremação de cadáveres, uma vez que não na veda. Para que a cremação de cadáveres, no estado atual do nosso direito constitucional, fosse proibida, seria preciso que se considerasse a cremação, como exercício de culto religioso, contrária à ordem pública ou aos bons costumes. Não no é; seria ridículo considerar-se contrária à ordem pública e aos bons costumes a prática religiosa da maioria da Cristandade do mundo.
4 O direito federal era omisso sobre o assunto, até que a Lei nº 6.216, de 30 de junho de 1975, ao alterar disposições e renumerar o texto básico, acrescentou o parágrafo segundo ao artigo 77 da Lei dos Registros Públicos, vazado nos seguintes termos: A cremação de cadáver somente será feita daquele que houver manifestado a vontade de ser incinerado ou no interesse da saúde pública e se o atestado de óbito houver sido firmado por 2 (dois) médicos ou por 1 (um) médico-legista e, no caso de morte violenta, depois de autorizada pela autoridade judiciária. (Informação antes citada, pp. 35-36). A definição de cremação antes dada encontra-se em consonância com a norma legal que a prevê. Trata-se da Lei dos Registros Públicos, Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, cujo artigo 77, parágrafo 2º, dispõe: Art. 77 (...) 2º - A cremação de cadáver somente será feita daquele que houver manifestado a vontade de ser incinerado ou no interesse da saúde pública e se o atestado de óbito houver sido firmado por dois médicos ou por um médico legista e, no caso de morte violenta, depois de autorizada pela autoridade judiciária. CAMPOS BATALHA: Comentando o citado dispositivo legal, assim elucida Para que se proceda à cremação do cadáver, deverá necessariamente haver atestado de óbito firmado por dois médicos, ou por um médico-legista. Deverá, por outro lado, ter havido manifestação inequívoca de vontade do morto ou ocorrer interesse da saúde pública. Ademais, tratando-se de morte violenta, a incineração do cadáver só é possível depois de autorizada pela autoridade judiciária competente. (Wilson de Souza Campos Batalha, in Comentários à Lei de Registros Públicos, Rio de Janeiro, Forense, 3ª ed., 1984, p. 232).
5 E WALTER CENEVIVA assim assevera a respeito do 2º do art. 77 da Lei de Registros Públicos: É norma de direito material, a ser observada pelo responsável pelo forno crematório, ao qual incumbe verificar a manifestação do falecido. A lei silenciou quanto à exigência de declaração escrita, mas a imposição desta resulta da natureza das coisas: prova diversa teria de ser aferida pelo juiz, em processo de justificação, o que é incompatível com a necessidade do sepultamento. (In Lei dos Registros Públicos Comentada, São Paulo, Saraiva, 1979, p. 177). Portanto, os requisitos básicos à admissão da cremação de cadáveres estão postos no citado artigo 77 da Lei de Registros Públicos: necessário que haja manifestação expressa do de cujus ou razões de saúde pública, sendo exigido, ainda, atestado de óbito firmado por dois médicos ou por um médico legista e, em caso de morte violenta, autorização da autoridade judiciária. Voltando-se para a consulta que ora se responde, vêse que os requisitos postos na Lei do Município de São Leopoldo (Lei nº 4.411/97) desbordam, em alguns aspectos, do comando do parágrafo 2º do art. 77 da Lei 6.015//73. Configurada a incompatibilidade, flagra-se a sua ineficácia. Assim ocorre, por exemplo, com a previsão de admissão de cremação quando a família do morto o desejar, desde que não haja declaração do de cujus em sentido contrário (art. 2º, b ), pois, como dito antes, a lei federal somente admite haja cremação se o de cujus, em vida, houver declarado expressamente esse desejo. Ainda, e mais relevante para a consulta em tela, ressalta-se a incompatibilidade do 2º do art. 2º da Lei Municipal com o 2º do art. 77 da Lei 6015/73. Trata-se da permissão de cremação em caso de morte violenta, na qual o Estado tem interesse na elucidação das
6 circunstâncias do evento, o que pode ser obstaculizado pelo desaparecimento do corpo. Assim que, de acordo com a citada lei municipal, em caso de morte violenta, a cremação, atendidas as condições estabelecidas neste artigo, só poderá ser levada a efeito mediante prévio e expresso consentimento da autoridade policial competente. A previsão de autorização da autoridade policial conflita com a determinação da Lei de Registros Públicos, segundo a qual deverá haver, em caso de morte violenta, autorização da autoridade judiciária. Portanto, em caso de morte violenta, é mister haja autorização da autoridade judiciária para que seja procedida a cremação do cadáver, não a suprindo a autorização da autoridade policial, pena de ofensa à divisão de competências dos Poderes de Estado. Em conclusão, entende-se que é possível a cremação de cadáveres desde que atendidos os requisitos estabelecidos no parágrafo 2º do artigo 77 da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73), ou seja: manifestação expressa de vontade do de cujus ou razões de saúde pública, sendo exigido, ainda, atestado de óbito firmado por dois médicos ou por um médico legista e, em caso de morte violenta, autorização da autoridade judiciária. É o Parecer. Porto Alegre, 31 de julho de 2001. Helena Beatriz Cesarino Mendes Coelho Procuradora do Estado Ref. Expediente nº 007067-12.00/SJS/97-7
7 Processo nº 007067-12.00/97.7 Acolho as conclusões do PARECER nº 13091, do Conselho Superior da Procuradoria-Geral do Estado, de autoria da Procuradora do Estado Doutora HELENA BEATRIZ CESARINO MENDES COELHO, aprovado pelo Colegiado na sessão realizada no dia 09 de agosto de 2001. Restitua-se o expediente ao Excelentíssimo Senhor Secretário de Estado da Justiça e da Segurança. Em 23 de agosto de 2001. Paulo Peretti Torelly, Procurador-Geral do Estado.