CAMINHO DAS PEDRAS Renata Neves Estado de Minas Março de 2001 O método criado pelo professor Fernando Dolabela ensina empreendedorismo a 40 mil alunos por ano. Fernando Dolabela da aula de como abrir um negócio. Introduziu o ensino de empreendedorismo na Universidade Federal de Minas Gerais e acabou se tornando referência no ramo. Ele levou para dentro da sala de aula o princípio de que o empreendedorismo é um processo essencialmente humano e não somente técnico, com cálculos de custos e projeção de ganhos. É algo que envolve sonho e muita felicidade. Em nove anos dedicados à atividade, Dolabela conseguiu convencer muita gente com seus argumentos. Cerca de 200 escolas de ensino médio e superior em todo o Brasil aderiram à metodologia criada por ele. Mais de 1,5 mil professores já foram treinados por Dolabela, que, segundo seus próprios cálculos, repassam todo ano seus conhecimentos a pelo menos 40 mil alunos. Isso é resultado do trabalho desenvolvido pela Rede de Ensino Universitário de Empreendedorismo, o Programa Reúne Brasil, realizado pelo Sebrae em parceria com o Instituto Euvaldo Lodi (HEL). Também idéia de Dolabela. Em entrevista a Economia, esse professor e empreendedor de 55 anos de idade fala da importância das pequenas empresas para o crescimento da economia do País e diz que falta ao brasileiro coragem para assumir riscos e criar um negócio próprio. Ele também dá dicas de como montar um empreendimento. De sucesso, claro. ECONOMIA - O empreendedorismo faz parte do perfil do brasileiro? DOLABELA - Existe no Brasil uma cultura da dependência. As pessoas ainda não estão preparadas para assumir riscos. E há também a cultura da estabilidade. Para os brasileiros, o que importa é ser estável, ter a garantia de uma renda estável para toda a vida. ECONOMIA - Ser estável é ser empregado? DOLABELA - Exatamente, porque não oferece muito risco. Isso vem da nossa tradição. Há ate pouco tempo, as pessoas bem-sucedidas eram aquelas que conseguiam um emprego num cargo público, nos Correios, nos tribunais, nas teles da vida. Depois, o que virou alvo de cobiça foram os trabalhos nas multinacionais, que significavam estabilidade, possibilidade de se fazer carreira. Ate 20 anos atrás essas coisas funcionavam muito bem. Mas os governos e as grandes empresas deixaram de ser os maiores empregadores. Os governos não agüentam mais pagar a conta de tantos salários e as grandes companhias atualmente são as menos estáveis em oferta de emprego. ECONOMIA - Se a situação mudou, como ainda podemos viver sob a cultura do emprego? DOLABELA - De fato, essa situação deixa as pessoas incomodadas. A estabilidade hoje não é representada mais pelo emprego para toda a vida, e sim pela capacidade
que a pessoa tem de oferecer seu trabalho e de mudar. A estabilidade está hoje não mais no emprego, mas na autonomia. Eu sou estável na medida em que crio uma capacidade de oferecer serviços, de ser sempre demandado, de estar sempre trabalhando mesmo mudando de emprego. Tudo porque o grau de avanço tecnológico no mundo se acelerou de mais. A pessoa que permanece no mesmo trabalho a vida toda fica obsoleta e envelhece com rapidez violenta. Quem, por outro lado, busca sempre aprimorar conhecimentos e mudar está sempre no topo. Existe no Brasil uma cultura da dependência, de emprego fixo. O problema é que os governos não agüentam mais pagar a conta de tantos salários e as grandes e as grandes companhias atualmente não menos estáveis em oferta de emprego" ECONOMIA - Os profissionais estão atentos a essa nova realidade? DOLABELA - Poucas pessoas notaram isso. O que ha hoje é um estado de perplexidade. Ainda vivemos sob a cultura do currículo, uma negação da modernidade. Para chegar a formular um perfil de candidato, provavelmente o conhecimento que determinada empresa esta exigindo é obsoleto, mas precisa dele porque já foi dominado. Ora, significa que as pessoas que se pautam pelo currículo exigido por uma empresa estão em um grau de obsolescência avançado. O profissional de alto nível deveria ser aquele que dita o que as empresas precisam e não o que se pauta pelo que as empresas dizem que ele deve conhecer. O emprego está condenado pela incapacidade que as pessoas têm de serem felizes. O empregado está sempre realizando o sonho de alguém e não o seu próprio. ECONOMIA - Mesmo se estiver satisfeito com o que faz? DOLABELA - Ele nunca está. O maior sonho do empregado é sair do emprego. Ou ele quer ficar rico com um prêmio na Mega-sena ou abrir a própria empresa para ganhar muito mais. Quando quero provocar as pessoas, digo em platéia que procuro um empregado feliz. Peço que se alguém souber de um que me indique para que eu escreva o livro best-seller do século passado, deste e do próximo. Nunca ninguém conseguiu encontrar um empregado feliz. Sempre há uma coisa para incomodar o salário, o chefe, o colega, o escritório. O profissional diz "eu sou muito motivado, adoro o lugar onde trabalho, mas...". E tem outra coisa: existe um fenômeno estudado na administração chamado de inserção parcial. As organizações qualquer uma - igreja, escola, empresa -, vivem por um objetivo, que é uma especialização uma habilidade. Elas não querem as pessoas totalmente. Desejam a parte que interessa à companhia. Exemplo: um time do futebol quer o Garrincha no campo, mas não quer ter problemas com o Garrincha na hora que ele bebe, na hora que tem uma porção de filhos, na hora que ele vai para a imprensa dizer um monte de bobagens. As companhias querem parte de seus empregados. Quando você tem uma empresa, muitas vezes, a coisa é até pior em termos de carga de trabalho, mas ha muito mais integração do seu ser com sua atividade. ECONOMIA - Abrir um negócio é a forma de o profissional ser feliz? "O maior sonho do empregado é sair do emprego. Ou ele quer ficar rico com um prêmio na Mega-sena ou abrir a própria empresa para ganhar muito mais. Quando quero provocar as pessoas procuro na platéia um empregado feliz DOLABELA - Mais feliz não existe nenhuma pesquisa dizendo que os empreendedores são mais felizes do que os empregados. Mas existem levantamentos mostrando que os empreendedores raramente param de trabalhar. Eles não tem o sonho da aposentadoria, o sonho da saída. ECONOMIA - Quando o senhor fala em empreendedor está se referindo necessariamente a um empresário? DOLABELA - Não, simplesmente a alguém que gera o próprio trabalho, a própria atividade de obtenção de recursos. Alguém que se sustenta.
ECONOMIA - Pode ser um autônomo, um camelô? DOLABELA - O camelô é um empreendedor por definição. No Brasil, a gente vincula a idéia de empreendedor a alguém que fez fortuna, o que é um grande erro. O empreendedor é mesmo aquele pequeno que gera o próprio sustento, Ele independe de alguém para ganhar a vida. ECONOMIA - Um país que estimula o empreendedorismo têm mais chance de crescer? DOLABELA - Recentemente, a GEM (Global Entrepreneurship Monitor), uma pesquisa realizada pelo Babson College, que é o templo do empreendedorismo nos Estados Unidos, e pela London Business School, do Reino Unido, levantou dados a respeito disso em vários cantos do mundo. As perguntas eram do tipo "existe alguma relação entre empreendedorismo e desenvolvimento econômico?". Concluiu que qualquer país que queira se desenvolver tem que privilegiar nas suas políticas educativas empreendedora em todos os níveis. ECONOMIA - O senhor deve concordar com isso. DOLABELA - Concordo inteiramente. O mundo dos negócios o formado pela geração e morte de empresas. A inovação hoje é fundamental e se processa dentro de um paradigma de destruição criadora, seguindo a teoria do economista Schumpeter. Toda vez que eu inovo, estou substituindo o velho. Essa capacidade de um país gerar novos negócios é o principal elemento para a dinâmica de desenvolvimento econômico. ECONOMIA - No caso do Brasil, que avaliação senhor faz a respeito da nossa microeconomia? DOLABELA - O Brasil hoje é um lugar inóspito para a pequena empresa. Apesar de o governo estar muito aberto para essa questão, ainda temos condições adversas aos negócios. Abrir uma empresa é complicado, fechar uma empresa o complicado, tudo muito burocrático. A carga tributária é elevada, obter financiamento é muito difícil. ECONOMLA - Está nas mãos do governo mudar esta situação? DOLABELA - O governo tem um papel fundamental nisso. Para competir no mercado, as empresas precisam de capital humano, conhecimento. Isso é vinculado ao nível educacional do Pais. A escolaridade média do brasileiro é 5,8 anos. Você imagina competir com a Coréia, que tem 12 anos de escolaridade media. É um problema estrutural. Outra questão 0 que 0 Brasil tem muita dificuldade de exportação, a marca Brasil é muito fraca. Isso também depende do governo. É preciso ainda resolver os entraves da legislação tributaria para a pequena empresa. Sou contra incentivos, mas é preciso que haja uma política de apoio ao desenvolvimento tecnológico. O Vale do Silício, que reúne as empresas de alta tecnologia dos Estados Unidos, não nasceu de graça. ECONOMIA - A sociedade também poderia dar sua contribuição? DOLABELA - A maior de mudança é a conscientização da necessidade da pequena empresa por parte das forças sociais. Não há ainda no Brasil uma percepção nessa direção. Pelo contrário, no País, o empreendedor é o vilão da história, tanto o pequeno quanto o grande. Quanto maior, mais vilão. Como nós vivemos num sistema de desigualdade social muito forte, o empresário no Brasil é alguém que paga salário mínimo o isso é visto como uma apropriação injusta do trabalho de terceiros. O Brasil vai crescer na hora que nos entendermos que a pequena empresa é fundamental para o desenvolvimento econômico. Poucas organizações se manifestam publicamente neste sentido, a não ser aquelas que existem para isso, como Sebrae e Confederação Nacional da Indústria. Não vejo instituições de ensino com essa visão política, nem a grande mídia. Trabalho muito com universidade e sinto essa relação na escola. Não estou criticando a universidade, até porque o programa de cursos de empreendedorismo surgiu dentro da escola. Mas, ao mesmo tempo que o meio acadêmico é vanguarda, também oferece forças de reação.
O camelô é um empreendedor por definição. No Brasil, a gente vincula a idéia de empreendedor a alguém que fez fortuna, e que é um erro. O empreendedor é quem gera o próprio sustento e independe de alguém para ganhar a vida ECONOMIA - É certo que há muita burocracia para abrir uma empresa. Mas mesmo quem consegue vencer todas as dificuldades ainda corre grande risco de fechar o negocio rapidamente. De acordo com o Sebrae, cerca de 40% das micro e pequenas empresas abertas em Minas Gerais não funcionam mais do que um ano. Por que isso acontece? DOLABELA - Primeiro por falta de capacitação do dono. O ponto crucial para lançar uma empresa é fazer um plano de negócio, com uma analise completa do mercado. É importante responder perguntas como "existem pessoas interessadas no produto ou serviço que estou oferecendo?" e "essas pessoas estão dispostas a pagar um valor necessário para que eu tenha o retorno esperado'?". Abrir uma empresa sem plano de negócio é um amadorismo franciscano. Outro problema grave é o baixo nível de compreensão da atividade empreendedora. Para montar uma empresa é preciso haver uma adequação muito grande entre a pessoa, seu sonho e a atividade que ela vai criar. Ela tem que saber o que quer. ECONOMIA - A formula para o sucesso é, então, capacitação, plano de negócio e total afinidade com o que será lançado no mercado? DOLABELA - Não. Isso diminui a possibilidade de fracassar. O resultado do plano de negócio pode dizer, por exemplo, que a empresa não é viável, e que não é ruim. Significa que a pessoa gastou papel e inteligência, mas não desperdiçou dinheiro, não investiu nada além do seu tempo. Por outro lado, se o plano de negócio indica que a atividade tem alto potencial de sucesso não quer dizer que o empreendedor seguramente vai se dar bem. Trata-se de um instrumento puramente tecnológico. Um bom plano de negócio na mão de uma pessoa que é empreendedora significa insucesso. Já um bom plano de negócio com quem tem perfil empreendedor é bem diferente. ECONOMIA - E qual é esse perfil? DOLABELA - Não existe nenhuma receita, mas características que podem fazer de uma pessoa um bom empreendedor, como coragem para assumir riscos, perseverança, inovação, capacidade de identificar oportunidade e buscar recursos. Esses recursos são dinheiro, pessoas, poder de negociação. Muita gente acha que ter uma idéia brilhante é suficiente para ficar rico, isso não quer dizer nada. Pode ser uma grande oportunidade para você e não ser para mim, talvez seja para a Coca-Cola e não para a IBM. ECONOMIA - Necessariamente é preciso ter dinheiro para montar um negocio? DOLABELA - Não, a regra é não ter dinheiro. Claro que trata-se de um ingrediente necessário. O capital de risco se tornou fundamental na economia moderna. É o capital disponível para pessoas que vão montar uma empresa, não um empréstimo, nem financiamento, é uma participação. Nos Estados Unidos, esse capital de risco esta crescendo violentamente - em 98 era coisa de US$ 14 bilhões, hoje esta acima de US$ 50 bilhões. O Brasil está começando agora com isso, via governo. A receita disponível ainda é muito baixa, não tenho o valor exato, mas certamente não chega a RS 100 milhões. O governo brasileiro esta iniciando com isso para dar o exemplo, para estimular, mas é uma atividade para empresa. O capitalista de risco é um empresário como outro qualquer. Ao invés de colocar seu dinheiro debaixo do colchão ou na poupança, investe na empresa e vira sócio. Ele compra a ação, espera um crescimento violento da empresa e realiza seu lucro vendendo a mesma ação. ECONOMIA - Na ultima pesquisa GEM, o Brasil desponta como o país de maior índice de empreendedorismo do mundo, desbancando o até então líder Estados Unidos. Como o senhor avalia esse resultado?
O Brasil hoje é um lugar inóspito para a pequena empresa. Abrir uma empresa é complicado, fechar uma empresa é complicado, tudo muito burocrático. A carga tributária é elevada, obter financiamento é muito difícil" DOLABELA - O levantamento observou que, no Brasil, de cada grupo de oito pessoas uma esta abrindo negócio. Nos Estados Unidos, a relação é de uma para cada dez. Como eu não tenho nenhuma outra estatística para contestar, tenho que aceitá-la. Mas a interpretação que clou para isso é que o grau de empreendedorismo no Brasil é alto por causa do grande número de pessoas que não têm acesso a emprego. Se o sujeito não abre a sua atividade, morre de fome. Não digo que os dados não sejam confiáveis, mas acho que o nível de empreendedorismo brasileiro é muito baixo. Nossa cultura é de dependência, de subordinação a um poder centralizado, o brasileiro acha que alguém deve prover o bem-estar do cidadão e a contra partida da que ele da o ser honesto e trabalhar. ECONOMIA - O senhor se considera um empreendedor'? DOLABELA - Sim. Primeiro, eu tenho uma empresa, tenho produto, trabalho sozinho. Criei toda uma metodologia, uma inovação de ensino. O emprego não se opõe ao empreendedorismo, mas existe uma expressão que se opõe ao empreendedor que é síndrome do empregado". Para ser sindrômico, basta nascer no Brasil. Todo bebezinho nasce com a síndrome de que sempre vai depender de terceiros para trabalhar. Do contrário, morrera de fome. ECONOMIA - Como o senhor se livrou desta síndrome? DOLABELA - Fui percebendo que eu era um sujeito extremamente infeliz na minha relação de emprego. Já fiz de tudo: trabalhei em industria muito tempo, atuei como administrador de empresa em universidade, dei aula, fui diretor de hospital, mas as relações sempre foram muito difíceis. Só consegui uma alegria no trabalho quando comecei a construir minha própria atividade. Hoje, sou extremamente apaixonado pelo que faço e isso representa uma diferença de produtividade astronômica. Me sinto mais útil á sociedade. E ai que entra o que eu acho mais relevante: o empreendedorismo não deve interessar apenas para formação de riquezas individuais. O único sentido que tem é a geração da riqueza da sociedade. Não se pode criar um modelo empreendedor para perpetuar injustiças sociais. Só tem sentido através de cada pessoa sendo capaz de gerar o seu próprio empreendimento, a sua própria inserção profissional.