O PALCO URBANO COLONIAL: A ORGANIZAÇÃO SOCIAL DO REI DO CONGO NAS VILAS AÇUCAREIRAS DO SÉCULO XVII



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Transcrição:

O PALCO URBANO COLONIAL: A ORGANIZAÇÃO SOCIAL DO REI DO CONGO NAS VILAS AÇUCAREIRAS DO SÉCULO XVII Marco Tomé Costa Monte Graduando em História pela FFPNM UPE; integrante do Grupo de Estudos História Sócio-cultural da América Latina/UPE e bolsista do CNPq. Prof a. Dr a. Kalina Vanderlei Paiva Silva orientadora costamonte@hotmail.com No século XVII, após a expulsão dos holandeses de Pernambuco, a dita capitania passaria a viver um novo momento de sua história: o segundo período português. O corpo burocrático do império português viria para o Novo Mundo, e isso culminaria num conflito entre os senhores de engenho, a elite canavieira pernambucana, e os burocratas do governo português. Em meio a estes acontecimentos, temos o crescimento do fluxo do tráfico negreiro para as Américas e, por conseguinte, o aumento da população africana dentro do corrente continente. Por fim, observamos a transformação do espaço urbano colonial, as vilas açucareiras portuguesas, e o surgimento de uma população que interagia diretamente com este núcleo citadino, através das práticas de comércio, realização de festas e outras cerimônias barrocas, e o estabelecimento de instituições e irmandades leigas. Uma destas festas foi a coroação do Rei do Congo. Esta foi um dos maiores festejos do Brasil colônia e império. Surgida em meados do século XVII, por volta de 1674, nas vilas açucareiras, ela representava, sobretudo, a inserção social dos escravos africanos, e seus descendentes, dentro da sociedade escravista açucareira, e era, ainda, o pano de fundo para a existência de um organismo maior, a Organização Social do Rei do Congo, que açambarcava toda a sociedade supracitada, e atuava no palco urbano colonial. A organização social do rei do Congo (assim como a Festa) agia como uma espécie de complexo dentro das vilas açucareiras portuguesas, ou seja, ela abrangia os diversos elementos sociais do espaço citadino e, de certa forma, fazia com estes interagissem entre si. Quando falamos em elementos, estamos nos referindo aos diversos grupos e classes sociais que compunham a sociedade colonial: escravos africanos, senhores de engenho e

oficiais do governo português, etc. Para melhor entender o que foi a organização social do rei do Congo, precisamos, primeiramente, observar algumas questões importantes, como a influência da cultura barroca no Novo Mundo, e a participação das irmandades leigas na realização das cerimônias das colônias, nas colônias luso-americanas. No contexto do século XVII temos o absolutismo, que começava se estabelecer e para tanto necessitava de um artifício que o ajudasse a manter a ordem e a disciplina dessa sociedade abalada pela ressaca da peste negra, e pela recente organização dos Estados Nacionais. As tensões políticas e econômicas desenhavam o quadro social daquele momento, e a população, como um termômetro, indicava a cada momento o nível da dita crise. Dessa forma, o barroco caiu como uma luva nas mãos da aristocracia setecentista, que visava a manutenção da ordem social, a posição de superioridade diante da crescente classe comerciante, a burguesia, e o estabelecimento do absolutismo. Esta ação da aristocracia deu origem ao que chamamos de cultura barroca. Verificamos isto com mais sentido na obra de João Antonio Maravall, onde ele coloca que o barroco é uma cultura que consiste na resposta dada, em torno do século XVII, por grupos ativos pertencentes a uma sociedade que entrou em dura e difícil crise, relacionada com flutuações críticas na economia desse período 1. A cultura barroca se expressa através de vários aspectos e artifícios, que por sua vez estão relacionados a uma simples condição: o controle social. Por se voltar diretamente à massa da população, o barroco manifesta características dirigistas e massivas. Outro feitio da cultura barroca é o conservadorismo, o que equivale dizer que para manutenção da ordem social os meios empregados são extremante rígidos e coercitivos. Por fim o mais importante dos aspectos barrocos é o urbano. Com a fixação do poder político nos centros urbanos, um inchaço populacional ocorreu dentro das cidades. Este aumento da densidade demográfica nos meios urbanos fomentava cada vez mais as tensões sociais. Por isso, nos meios citadinos os artifícios de dominação barrocos foram tão facilmente percebidos. O desenho e plano do traçado da cidade, a literatura, o teatro, a arte, os jogos, o luxo, o ócio, o fausto e a ostentação são alguns destes meios de controle. Dentre eles podemos destacar o fausto e a ostentação como as principais formas de evidencia da cultura barroca. 1 MARAVALL, João Antônio. A Cultura do Barroco Análise de uma Estrutura Histórica. São Paulo. Edusp/ Imprensa Oficial, 1997. p. 65

A manifestação da dita cultura deu-se de forma mais expressiva dentro dos países ibéricos, onde observaremos a construção do ideal de Hidalguia: o hidalgo de Espanha é o mais acabado de exemplar de do homem barroco (...) faustoso, complicado, formalista, cheio de suscetibilidades, enfatuado, e por vezes insolente em seu espanholismo soberbo e confiante 2. Em Portugal também irá se construir um ideal de hidalguia semelhante ao da Espanha. O homem barroco ibérico tem uma mentalidade ligada a vários ideais: a luta pela defesa do cristianismo, o conquistador de terras além-mar, o cavalheiro dos palácios reais, ou seja, ele é, enfim, a figura de todos os momentos 3. Com chegada dos espanhóis e portugueses ao continente americano iremos observar a construção de um novo ideal barroco, e que será influenciado por outras visões, a indígena e a africana, que também irão estar participando do cotidiano da vida colonial, nas vilas açucareiras. A partir do fim século XV e início do XVI, o momento das expansões ultramarinas começa a tomar força. Observamos a chegada dos espanhóis à região da costa mexicana, e logo mais tarde a invasão do litoral brasileiro, por parte dos portugueses. Com o estabelecimento destes descobridores no continente americano, teremos a incidência de uma nova perspectiva cultural. Segundo Maravall a cultura de uma época barroca pode ser encontrada também, e com certeza o foi, em países americanos sobre os quais repercutiram as condições culturais européias desse tempo. 4 Vale salientar também que as expansões também atingiram as terras africanas, e tanto lá quanto aqui, um ideal híbrido cultural se formou e deu luz a novas formas e expressões barrocas. Principalmente três características foram essencialmente visíveis dentro do barroco americano 5, o controle social através de alguns artifícios, como as cerimônias e os zelos urbanísticos, a utilização do espaço urbano para realização dos artifícios supracitados. A questão do zelo urbanístico é um assunto amplamente discutido e revisto por teóricos. Para a construção do termo palco urbano, o qual visa designar o ambiente citadino 2 FRANÇA, Eduardo D Oliveira. Portugal na Época Restauração. São Paulo. Hucitec, 1997. p. 74-75. 3 FRANÇA, op. cit. 74. 4 MARAVALL, op. cit. p. 41 5 A Representação deste barroco pode ser chamada de Barroco Mestiço. O Barroco Mestiço é termo que designa a expressão barroca dentro das vilas açucareiras e, quiçá, no restante da América, onde foi possível observar a incidência da cultura barroca trazida pelos ibéricos ao Novo Mundo. Trabalhado por Kalina Vanderlei em sua tese de doutorado, Nas solidões vastas e assustadoras: Os pobres do Açúcar Na Conquista do Sertão nos séculos XVII e XVIII, este tipo de expressão cultural manifesta um caráter extremamente relacionado com o hibridismo cultural e com a questão dos imaginários das três perspectivas culturais, a européia, a negra e a indígena.

como receptáculo das nuances sociais, das expressões e semblantes barrocos, e ao mesmo propiciador destas condições, trabalhamos com as perspectivas de alguns teóricos como Lewis Munford, Sérgio Buarque, Angel Rama, Kalina Vanderlei e Carla Mary. Munford analisa cuidadosamente toda a relação da cidade na história e, por conseguinte, este também aborda o barroco como principal responsável pela criação das cidades do fim do século XVI e início do XVII, observando ainda todas as formas de evidencia desta cultura em meio às projeções arquitetônicas urbanas. Ele defende a teoria de que os anseios do novo momento cultural poderiam ser vistos nas fachadas dos grandes e suntuosos palácios, e estes anseios corresponderiam a uma tentativa coercitiva e disciplinar de manutenção da ordem social. Munford considera a cidade como palco do drama barroco, daí, portanto, nossa associação entre palco e núcleo urbano. Com Angel Rama, vemos uma perspectiva ligeiramente associada à idéia de Munford, com relação à correspondência dos anseios barrocos estarem ligados aos planos e traçados das cidades barrocas. Contudo, Rama traz esta discussão para o âmbito americano e amplia um pouco mais seu trabalho ao tratar do significado do palco urbano na América, sua relação com as novas concepções culturais, e os intentos ibéricos de construção de cidades através da ordem barroca. Vejamos melhor o que foi dito: De conformidade com esses procedimentos, as cidades americanas foram remetidas desde suas origens a uma dupla vida. A correspondente à ordem física que, por sensível, material está aos vaivens da construção e da destruição, e, sobretudo, aos impulsos da invenção circunstancial de indivíduos e grupos segundo seu momento e situação (...) as cidades emergiam já completas por um parto da inteligência nas normas que as teorizavam, nos atos fundacionais que as instituíam nos planos que as desenhavam idealmente, com essa regularidade fatal que espreita aos sonhos da razão (...) 6. Sérgio Buarque ao tratar do assunto da preocupação e zelo urbanísticos dos espanhóis e portugueses nas Américas, atribui uma apreensão maior dos primeiros em relação à cidade do que os segundos, ou seja, para este autor os espanhóis teriam sido mais zelosos do que os portugueses na construção das urbes americanas: Essa primazia acentuada da vida rural concorda bem com o espírito da dominação portuguesa, que renunciou a trazer normas imperativas e absolutas, que cedeu todas as vezes em que as 6 RAMA, Angel. A Cidade das Letras. São Paulo. Editora Brasiliense, 1986. p. 32.

conveniências imediatas aconselharam a ceder, que cuidou menos em construir planejar ou plantar alicerces, do que feitorizar uma riqueza fácil e quase ao alcance da mão (...) a colonização espanhola caracterizou largamente pelo que faltou à portuguesa: por uma aplicação insistente em assegurar o predomínio militar, econômico e político da metrópole sobre as terras conquistadas, mediante a criação de grandes de povoações estáveis e bem ordenados. Um zelo minucioso e previdente dirigiu a fundação das cidades espanholas na América 7. As colocações de Sérgio Buarque não se convergem com a questão histórica. Entretanto, veremos em Carla Mary, que com a construção de Filipéia (atual João Pessoa, na Paraíba), e a tentativa de organização urbanística com Tomé de Souza, na Bahia, o argumento de que os espanhóis eram mais zelosos do que os portugueses, fica um pouco sem consistência. Vistos estes pontos sobre barroco e cidade, passaremos agora a questão das irmandades. Aqui trabalharemos com os conceitos de irmandades utilizados por Virgínia Assis e Marina de Mello. As irmandades eram associações de leigos que tinham em comum a devoção a um santo, ou santa. Estas associações prestavam serviços de ordem social aos seus membros e, em alguns casos, assumiam funções da Igreja, como contratação de padres, realização de missas e outros ritos, como cerimônias de sepultamento, por exemplo. Estas irmandades serviam, ainda, como forma de distinção social tanto para negros como para brancos. A realização de festas e outras cerimônias religiosas, dentro as vilas açucareiras, além da devoção aos referidos santos, acobertava o culto a alguns traços culturais remanescentes dos escravos africanos, o que foi dando origem a um sincretismo religioso e um hibridismo cultural. Uma dessas cerimônias foi a coroação do Rei do Congo. As irmandades desempenhavam vários papeis, como o de atenuadores da árdua realidade cotidiana dos escravos através do resgate de sua dignidade pela obtenção de status social dentro de uma sociedade de pouca mobilidade e promotora de lazer, através da realização de missas, procissões, terços, dias santos e festejos. Devemos observar, ainda, a função das irmandades como instrumento de controle social mantedora da paz dentro das vilas açucareiras. Assim concluímos que essas associações eram meios de o grupo instituir formas de solidariedade, principalmente, frente à morte e à doença. Algumas vezes facilitando a 7 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo. Cia das Letras. 1995. p. 95-96.

obtenção de liberdade aos que eram escravos. Ao ingressar em uma irmandade leiga, os africanos e seus descendentes também alcançariam maiores níveis de integração e aceitação na sociedade na sociedade que o subjugava, podendo mesmo estas corporações serem caminhos para a mobilidade social. Desta perspectiva, as confrarias funcionavam como sociedade de ajuda mútua, mas também serviam como canais de por meio dos quais era possível controlar a vida dos africanos e com eles negociar 8. Como dito anteriormente, uma das cerimônias mais importantes realizadas pelas irmandades (neste caso específico, a Irmandade do Rosário dos Homens Pretos) era a festa de coroação do rei do Congo. E, vistos e brevemente analisados, portanto, os demais pontos que complementariam o entendimento da dita festa e organização social, vamos a eles. A festa do Rei do Congo era um festejo plenamente barroco. Por se expressar através de todo o fausto, luxo, pompa e ostentação possível dentro dos palcos urbanos coloniais, vilas açucareiras, temos dentro da dita festa um organismo ainda muito maior e mais importante para a manutenção da ordem e do controle sociais dos africanos, livres ou escravos: a Organização Social do Rei do Congo. Um corpo burocrático-hierárquico que dava respaldo ao status social do rei da nação corrente, e ainda servia de representação para as demais corporações de ofício de escravos urbanos, e nações dos mesmos, que compunham as ordens dentro das irmandades, era a organização social do rei do Congo. Acreditamos, ainda, - e neste estudo tentaremos verificar se isto se deu de fato ou não -, que a organização do rei do Congo sofria atuação direta dos compromissos 9 das irmandades leigas. De acordo com a definição de Cláudia Torres, observamos alguns detalhes sobre a supracitada organização: Cada comarca ou distrito paroquial tinha um rei ou rainha do Congo e cada reino era constituído por uma verdadeira corte, seguindo os moldes da monarquia portuguesa e um serviço militar em que todos havia todos os cargos, como num exército, e que seguia uma hierarquia. Havia marechais, brigadeiros, coronéis e também 8 SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil Escravista História da Festa de Coroação do Rei do Congo. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2002. p. 163. 9 Os compromissos eram uma serie de normas impostas pelas irmandades para seleção de entrada de seus futuros membros. Era através destas normas que verificamos o controle social realizado por parte das irmandades. Bom comportamento, efetuação das obrigações sociais com os membros das irmandades, participação efetiva junto às corporações de oficio (em quaisquer que fossem estas tarefas), etc. eram alguns dos compromissos que deveriam ser sempre realizados por aqueles que pleiteassem a entrada na Irmandade ou alguma ascensão de cargo dentro da organização social.

os governadores de cada nação e de várias profissões. Assim era a organização social do rei do Congo 10. Ao analisar a dita organização percebemos, além da grande hierarquização típica de uma instituição plenamente barroca, uma liberdade dos escravos. No mesmo trabalho, Cláudia Torres atribui a causa desta relativa liberdade às condições dadas pelo próprio ambiente citadino das colônias portuguesas. Escravos de aluguel e de ganho eram figuras tipicamente comuns do palco urbano colonial. Outro detalhe importante é a relação mantida entre os líderes da organização (geralmente reis vice-reis ou governadores) com os oficiais do governo português. Estabelecendo acordos de paz eles mantinham a organização dentro das colônias, e, assim, ambos saiam ganhando: os oficiais por terem sua preocupação com a ordem dos núcleos urbanos diminuída, e os africanos (componentes das irmandades) mais status por terem suas festividades reconhecidas e apoiadas pelo governo oficial do Reino português. Aqui vemos como se dá a organização do Rei do Congo. Contudo resta-nos analisar a festa. Durante a eleição para escolha do rei do Congo montava-se uma grande estrutura própria de uma coroação real. Após a escolha do rei e legitimação dos governadores de província 11, realizava-se uma maravilhosa festa regada a cantos, cortejos, batuques, danças e alegrias características dos festejos africanos. Assim era a festa de coroação do rei do Congo. Tal festa teve origem ainda na África, dentro do reino do Congo, na África Centro- Ocidental, região que ficava situada entre Nsundi (ao norte), Mbamba (ao sul), Soyo (ao leste) e Matamba (ao oeste). Um festejo que tinha o intuito de comemorar a assunção do rei do Congo, mani Congo, era realizado entre os habitantes daquela nação. Após a chegada dos missionários portugueses e de alguns enviados da coroa, ao dito reino, a serviços diplomático-comerciais, uma espécie de assimilação de cultura foi acontecendo. Com a chegada de escravos africanos a Portugal, as assimilações de alguns aspectos culturais 10 TORRES, Cláudia Viana. Um Reinado de Negros em Mundo de Brancos Organização De Escravos Urbanos em Recife No Final Do Século XVIII e Início do XIX (1774 1815). 1997. Dissertação (mestrado em história) faculdade de filosofia e ciências humanas. Universidade Federal de Pernambuco. Recife. p. 39. 11 A documentação do Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano (APEJE), Patentes Provinciais, corroboram este apoio e reconhecimento. Vejamos um trecho desta documentação: José Cezar de Menezes do conselho de Sua Magestade I. F. Seu governador e Capitão mor geral de Pernambuco, e mais capitanias anexas (...) Hei por bem de nomear (...) ao dito Preto Semião da Rocha, no posto e cargo de Governador dos Pretos da nação do Gome (...) Aqui verificamos a hierarquia de cunho militar das corporações de ofício e das nações africanas, como, ainda, o apoio das autoridades à manutenção da festividade e instituição, do Rei do Congo. APEJE, Patentes Provinciais, v. 02 p. 114.

(caráter cristão, ideal de hidalguia, utilização de alguns acessórios típicos dos reis ibéricos à indumentária africana, etc.) lusos se deram nos costumes dos africanos. Este hibridismo cultural 12 chegou até o Brasil e evidenciou-se, de certe forma, através da Coroação do Rei do Congo. Contudo, ainda hoje, podemos perceber muitas destas influências dentro dos maracatus e das festas religiosas em alguns municípios do interior de Pernambuco, como é o caso da Festa de Coroação do Rei do Congo, que é realizada em Floresta 13. Apesar ser realizada nas vilas açucareiras, a importância do corrente festejo foi tamanha, que influenciou a população responsável pela formação do sertão de Pernambuco. Concluímos, portanto, que a festa (assim como a organização social) do Rei do Congo foi a concretização do das relações culturais tidas entre portugueses, índios e, sobretudo, negros dentro da América portuguesa. Vimos ainda que tal festejo se manifestava dentro dos espaços urbanos, o que corrobora o caráter essencialmente barroco das cerimônias realizadas nos núcleos urbanos luso-americanos. Nosso estudo, porém, pretende ir mais adiante e buscar mais problemas, assim como respostas, para um melhor entendimento da festa e organização do rei o congo em Pernambuco. Buscando, cada vez mais, ver como se dava o cotidiano das vilas açucareiras portuguesas entre os séculos XVII e XVIII, e observar como muitas destas manifestações culturais influenciam nosso cotidiano, e nossas cerimônias e festejos populares, como as coroações de reis de nações maracatus, por exemplo. BIBLIOGRAFIA: ASSIS, Virgínia Almoêdo de. Pretos e Brancos A Serviço De Uma Ideologia De Dominação (Casos das Irmandades do Recife). 1988. Dissertação (mestrado em história) faculdade de filosofia e ciências humanas. Universidade federal de Pernambuco, Recife. DANTAS, Leonardo. Estudos Sobre a Escravidão Negra vol. 2. Recife. FUNDAJ, Editora Massangana, 1988. FRANÇA, Eduardo D Oliveira. Portugal na Época Restauração. São Paulo. Hucitec, 1997. 12 Manifestação que congrega elementos de diversas culturas em contato e que permite múltiplas leituras conforme os grupos sociais que delas participam Souza, op cit. p. 179. 13 Município do interior do estado de Pernambuco, localizado no sertão, e situado a 450 km de distância do Recife.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo. Cia das Letras, 1995. MARAVALL, João Antônio. A Cultura do Barroco Análise de uma Estrutura Histórica. São Paulo. Edusp/ Imprensa Oficial, 1997. MUNFORD, Lewis. A Cidade na História. São Paulo. Martins Fontes, 1988. RAMA, Angel. A Cidade das Letras. São Paulo. Editora Brasiliense, 1986. SILVA, Kalina Vanderlei. Nas Solidões Vastas e Assustadoras: Os pobres do Açúcar Na Conquista do Sertão nos séculos XVII e XVIII. Recife: Tese de doutorado em história. Universidade Federal de Pernambuco. 2003. SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil Escravista História da Festa de Coroação do Rei do Congo. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2002. TORRES, Cláudia Viana. Um Reinado de Negros em Mundo de Brancos Organização De Escravos Urbanos em Recife No Final Do Século XVIII e Início do XIX (1774 1815). 1997. Dissertação (mestrado em história) faculdade de filosofia e ciências humanas. Universidade Federal de Pernambuco. Recife. FONTES: Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano (APEJE) Patentes Provinciais (1774 1802)