Homoafetividade e Direito Homoafetivo



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Transcrição:

Homoafetividade e Direito Homoafetivo Maria Berenice Dias www.mbdias.com.br www.mariaberenice.com.br www.direitohomoafetivo.com.br SUMÁRIO: Introdução; 1. A família na CF de 88 e a proteção constitucional das uniões homoafetivas; 2.O novo conceito de entidade familiar trazido pela Lei Maria da Penha; 3. A evolução jurisprudencial; 4. A homoparentalidade: adoção e reprodução assistida; 5. A necessidade de construir um novo ramo do Direito; Referências legais. Introdução A tendência de engessamento dos vínculos afetivos sempre existiu, variando segundo valores culturais e, principalmente, influências religiosas dominantes em cada época. No mundo ocidental, tanto o Estado como a Igreja sempre buscaram limitar o exercício da sexualidade ao casamento. A família, consagrada pela lei, tinha um modelo conservador: entidade matrimonial, patriarcal, patrimonial, indissolúvel, hierarquizada e heterossexual. O vínculo que nascia da livre vontade dos nubentes era mantido, independente e até contra a vontade dos cônjuges. Ora identificado como uma instituição, ora nominado como contrato, o casamento ainda é considerado a base da sociedade. Daí a excessiva intervenção estatal para impedir sua dissolução. A sacralização do casamento, e a tentativa de sua mantença como única estrutura de convívio lícita e digna de aceitação, fez com que os relacionamentos chamados de marginais ou ilegítimos, por fugirem do molde legal, não fossem reconhecidos, sujeitando seus atores a severas sanções. O conceito de família mudou e os relacionamentos homossexuais que passaram a ser chamados de uniões homoafetivas foram, pouco a pouco, adquirindo visibilidade. O legislador intimida-se na hora de assegurar

direitos às minorias alvo da exclusão social. O fato de não haver previsão legal para específica situação não significa inexistência de direito à tutela jurídica. Ausência de lei não quer dizer ausência de direito, nem impede que se extraiam efeitos jurídicos de determinada situação fática. O silêncio do legislador deve ser suprido pela justiça, que precisa dar uma resposta para o caso que se apresenta a julgamento. 1. A família na CF de 88 e a proteção constitucional das uniões homoafetivas A Constituição Federal inseriu na definição de entidade familiar o que chamou de união estável, alargando o conceito de família para além do casamento. Num único dispositivo o constituinte espancou séculos de hipocrisia e preconceito. 1 Foi derrogada toda a legislação que hierarquizava homens e mulheres, bem como a que estabelecia diferenciações entre os filhos pelo vínculo existente entre os pais. Ao outorgar proteção à família, independentemente da celebração do casamento, vincou a Carta Magna um novo conceito de entidade familiar, albergando vínculos afetivos outros. Mas é meramente exemplificativo o enunciado constitucional ao fazer referência expressa à união estável entre um homem e uma mulher e às relações de um dos ascendentes com sua prole. O caput do art. 226 é, consequentemente, cláusula geral de inclusão, não sendo admissível excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade. 2 Pluralizou-se o conceito de família, que não mais se identifica pela celebração do matrimônio. Não há como afirmar que o art. 226, 3º, da Constituição Federal, 3 ao mencionar a união estável formada entre um homem e uma mulher, reconheceu somente esta convivência como digna da proteção do Estado. O que existe é uma simples e desnecessária recomendação para 1 Zeno Veloso. Homossexualidade e Direito. 2 Paulo Luiz Netto Lôbo. Entidades Familiares Constitucionalizadas:..., p.95. 3 CF, art. 226, 3º: A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

transformá-la em casamento. Em nenhum momento foi dito não existirem entidades familiares formadas por pessoas do mesmo sexo. Exigir a diferenciação de sexos do casal para haver a proteção do Estado é fazer distinção odiosa, 4 postura nitidamente discriminatória que contraria o princípio da igualdade, ignorando a existência da vedação de diferenciar pessoas em razão de seu sexo. A nenhuma espécie de vínculo que tenha por base o afeto se pode deixar de conferir status de família merecedora da proteção do Estado, pois a Constituição Federal 5 consagra, em norma pétrea, o respeito à dignidade da pessoa humana. 6 Essa é a regra maior, que serve de norte ao sistema jurídico. Como bem afirma Carmem Lúcia Rocha, a dignidade é o pressuposto da ideia de justiça humana, porque ela é que dita a condição superior do homem como ser de razão e sentimento. 7 Os princípios da igualdade e da liberdade estão consagrados já no preâmbulo da Carta Constitucional ao conceder proteção a todos, vedar discriminação e preconceitos por motivo de origem, raça, sexo ou idade, e assegurando o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...). Já o seu artigo 5º, ao elencar os direitos e garantias fundamentais, proclama: todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Garante o mesmo dispositivo, de modo expresso, o direito à liberdade e à igualdade. De nada adianta assegurar o respeito à dignidade humana e à liberdade. Pouco vale afirmar a igualdade de todos perante a lei, dizer que homens e mulheres são iguais, que não são admitidos preconceitos ou qualquer forma de discriminação. Enquanto houver segmentos que sejam alvo da exclusão social, tratamento desigualitário entre homens e mulheres, 4 Adauto Suannes. As Uniões Homossexuais e a Lei 9.278/9, p. 32. 5 CFB, art. 1º, III: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana; 6 Maria Berenice Dias. Manual do Direito das Famílias (2005), p. 45. 7 Carmem Lúcia Antunes Rocha. O princípio da dignidade humana e a exclusão social, p. 72.

enquanto a homossexualidade for vista como crime, castigo ou pecado, não se estará vivendo em um estado queq se diz democrático de direito. Em face do primado da liberdade, é assegurado o direito de constituir uma relação conjugal, uma união estável hetero ou homossexual. Há a liberdade de extinguir ou dissolver o casamento e a união estável, bem como o direito de recompor novas estruturas de convívio. 8 Como afirma Rodrigo da Cunha Pereira, a verdadeira liberdade e o ideal de Justiça estão naqueles ordenamentos jurídicos que asseguram um Direito de Família que compreenda a essência da vida: dar e receber amor. 9 O direito a tratamento igualitário independe da tendência sexual. Inexistindo o pressuposto da igualdade, haverá dominação e sujeição, não liberdade. A sexualidade é um elemento integrante da própria natureza humana e abrange a dignidade humana. Todo ser humano tem o direito de exigir respeito ao livre exercício da sexualidade. Sem liberdade sexual, o indivíduo não se realiza, tal como ocorre quando lhe falta qualquer outro direito fundamental. A orientação sexual adotada na esfera de privacidade não admite restrições, o que configura afronta à liberdade fundamental a que faz jus todo ser humano, no que diz com sua condição de vida. As normas constitucionais que consagram o direito à igualdade proíbem discriminar a conduta afetiva no que respeita à inclinação sexual. A discriminação de um ser humano em virtude de sua orientação sexual constitui, precisamente, uma hipótese (constitucionalmente vedada) de discriminação sexual. 10 Rejeitar a existência de uniões homossexuais é afastar diversos princípios insculpidos na Carta Magna, pois é dever do Estado promover o bem de todos, vedada qualquer discriminação, não importa de que ordem ou de que tipo. É de se relembrar a existência do princípio da afetividade 11 e do princípio 8 Maria Berenice Dias. Manual de Direito das Famílias (2007), p. 61. 9 Rodrigo da Cunha Pereira. Família, Direitos Humanos, Psicanálise e Inclusão Social, p. 161. 10 Roger Raupp Rios. Direitos Fundamentais e Orientação Sexual:..., p.29. 11 Emanado dos artigos 226 e 227 da Constituição brasileira.

da pluralidade familiar, 12 homoafetivas. que também oferecem respaldo às uniões Um tratamento diferenciado só pode existir na ocorrência de uma fundamentação racional que o justifique. Na falta de fundamentação válida ou insuficiente, é lógico o juízo de que, em virtude da igualdade, deve-se aplicar o mesmo regime jurídico a todas as situações, sob pena de se atingir frontalmente diversos dos princípios constitucionais supracitados. 2. O novo conceito de entidade familiar trazido pela Lei Maria da Penha A Lei Maria da Penha 13, que vis coibir a violência doméstica, consagra um novo conceito de família, inserindo as homoafetivas. Seu art. 2º dispõe que, toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. O parágrafo único do art. 5º 14 da lei explicitamente menciona que as relações pessoais e as situações que configuram violência familiar e doméstica independem da orientação sexual das pessoas envolvidas. Destarte, como é assegurada proteção legal a fatos que se dão dentro do ambiente doméstico, as uniões homoafetivas são entidades familiares. Violência doméstica, como a própria nomenclatura afirma, é violência que ocorre no seio de uma família. 12 Cujo esteio se encontra no art. 226 da Carta Magna. 13 Lei n. 11.340, de 7 de Agosto de 2006. 14 Art. 5 o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.

Assim, a Lei Maria da Penha estendeu o conceito de família, abarcando as uniões homoafetivas. 15 Ainda que a Lei tenha por finalidade proteger a mulher, acabou por cunhar um novo conceito de família, independente do sexo dos parceiros. Assim, se família é a união entre duas mulheres, igualmente é família a união entre dois homens. Mesmo que eles não se encontrem ao abrigo da Lei Maria da Penha, para todos os outros fins, impõe-se este reconhecimento. Basta invocar o princípio da igualdade. Não pode ser outro o entendimento: as uniões homoafetivas já galgaram o status de entidade familiar. 3. A evolução jurisprudencial Apesar da omissão da lei, ainda assim é buscada a justiça. A resposta, em um primeiro momento era nenhuma. As ações tramitavam nas varas cíveis. A tendência era extinguir os processos por impossibilidade jurídica do pedido. Ao depois, começou a se reconhecer a presença de uma sociedade de fato, impondo a prova da participação efetiva de cada parceiro para a divisão do patrimônio amealhado durante a vigência da sociedade, na proporção do aporte financeiro levado a efeito por cada um. Fora do âmbito do direito de família e das sucessões, anda mais era deferido ou reconhecido. A mudança começou pela Justiça gaúcha, ao definir a competência dos juizados especializados da família para apreciar as uniões homoafetivas, 16 as inserindo no âmbito do Direito das Famílias e deferindo a herança ao parceiro sobrevivente. 17 15 Maria Berenice Dias. A Lei Maria da Penha na Justiça, p. 35. 16 RELAÇÕES HOMOSSEXUAIS. COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DE SEPARAÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO DOS CASAIS FORMADOS POR PESSOAS DO MESMO SEXO. Em se tratando de situações que envolvem relações de afeto, mostra-se competente para o julgamento da causa uma das varas de família, à semelhança das separações ocorridas entre casais heterossexuais. Agravo provido. (TJRS, AI nº 599 075 496, Oitava Câmara Cível, Relator: Des. Breno Moreira Mussi, Data do julgamento: 17/6/1999). 17 UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO. PARTILHA DO PATRIMÔNIO. MEAÇÃO. PARADIGMA. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas

Na esteira dessas decisões, que alcançaram repercussão de âmbito nacional, encorajaram-se outros tribunais e, com significativa frequência, são divulgados novos julgamentos adotando posicionamento idêntico. Na medida em que se consolidou a orientação jurisprudencial - ainda que minoritária - emprestando efeitos jurídicos às uniões de pessoas do mesmo sexo, começou a se alargar o espectro de direitos reconhecidos aos parceiros quando do desfazimento dos vínculos homoafetivos. Dentre todos os institutos que se encontram normatizados no ordenamento jurídico brasileiro, é inquestionável a similitude entre a união homoafetiva e a união estável. A doutrina majoritária, assim como boa parte da jurisprudência, 18 vai pelo caminho de aplicar as normas relativas à união estável às uniões homoafetivas, por analogia. de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária. Nelas remanescem conseqüências semelhantes às que vigoram nas relações de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevados sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na constância do relacionamento deve ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica. Apelação provida, em parte, por maioria, para assegurar a divisão do acervo entre os parceiros. (TJRS AC 70001388982, 7ª C. Civ. Rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, j., 14/3/2001). 18 APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOAFETIVA. RECONHECIMENTO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE. É de ser reconhecida judicialmente a união homoafetiva mantida entre dois homens de forma pública e ininterrupta pelo período de nove anos. A homossexualidade é um fato social que se perpetuou através dos séculos, não podendo o judiciário se olvidar de prestar a tutela jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não apenas a diversidade de gêneros. E, antes disso, é o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das relações mantidas entre pessoas do mesmo sexo constitui forma de privação do direito à vida, bem como viola os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. AUSÊNCIA DE REGRAMENTO ESPECÍFICO. UTILIZAÇÃO DE ANALOGIA E DOS PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO. A ausência de lei específica sobre o tema não implica ausência de direito, pois existem mecanismos para suprir as lacunas legais, aplicando-se aos casos concretos a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, em consonância com os preceitos constitucionais (art. 4º da LICC). Negado provimento ao apelo. (TJRS, 7ª C. Cível, AC 70009550070, Rel. Desa. Maria Berenice Dias, j. 17/11/2004). APELAÇÃO. UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. A união homossexual merece proteção jurídica, porquanto traz em sua essência o afeto entre dois seres humanos com o intuito relacional. Uma vez presentes os pressupostos constitutivos, de rigor o reconhecimento da união estável homoafetiva, em face dos princípios constitucionais vigentes, centrados na valorização do ser humano. Via de consequuência, as repercussões jurídicas, verificadas na união homossexual, em face do princípio da isonomia, são as mesmas que decorrem da união heterossexual. NEGARAM PROVIMENTO AO APELO, POR MAIORIA. (TJRS, 8ª C. Cível, AC 70021085691, Rel. Des. Rui Portanova, j. em 04/10/2007).

Apartando-se o requisito da dualidade de sexo dos conviventes na união estável, não se encontra distinção alguma entre os relacionamentos heterossexuais e homoafetivos. Ambos são vínculos que têm sua origem no afeto, existindo identidade de propósitos, qual seja a concretização do ideal de felicidade de cada um. Destarte, é lógico o entendimento de que, na ausência de norma especifica, deve ser aplicada analogicamente às uniões homoafetivas a legislação relativa à união estável, em respeito aos princípios da dignidade da pessoa humana, da isonomia, além dos princípios gerais de Direito. 19 Mais recentemente, o STJ proferiu decisão histórica, ao determinar o prosseguimento da ação na qual um casal formado por um brasileiro e um canadense buscou o reconhecimento de constituírem uma união estável. 20 Vivendo juntos há 20 anos e casados no Canadá, buscam a obtenção do visto de permanência para fixarem residência no Brasil. Tanto o juiz de São Gonçalo como o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro haviam fulminado a ação, alegando impossibilidade jurídica do pedido, ou seja, que a ação não poderia ser proposta por falta de previsão legal. A decisão não significa que o STJ reconhece a existência do vínculo entre ambos e nem declara que se trata de uma união estável. Mas toma uma posição sobre tema envolto em preconceito e alvo de tanta discriminação que 19 AÇÃO ORDINÁRIA. UNIÃO HOMOAFETIVA. ANALOGIA COM A UNIÃO ESTÁVEL PROTEGIDA PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PRINCÍPIO DA IGUALDADE (NÃO- DISCRIMINAÇÃO) E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. RECONHECIMENTO DA RELAÇÃO DE DEPENDÊNCIA DE UM PARCEIRO EM RELAÇÃO AO OUTRO, PARA TODOS OS FINS DE DIREITO. REQUISITOS PREENCHIDOS. PEDIDO PROCEDENTE. À união homoafetiva, que preenche os requisitos da união estável entre casais heterossexuais, deve ser conferido o caráter de entidade familiar, impondo-se reconhecer os direitos decorrentes desse vínculo, sob pena de ofensa aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. - O art. 226 da Constituição Federal não pode ser analisado isoladamente, restritivamente, devendo observar-se os princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Referido dispositivo, ao declarar a proteção do Estado à união estável entre o homem e a mulher, não pretendeu excluir dessa proteção a união homoafetiva, até porque, à época em que entrou em vigor a atual Carta Política, há quase 20 anos, não teve o legislador essa preocupação, o que cede espaço para a aplicação analógica da norma a situações atuais, antes não pensadas. A lacuna existente na legislação não pode servir como obstáculo para o reconhecimento de um direito. (TJMG, 7ª C. Cível, AC-RN 1.0024.06.930324-6/001, Rel. Desa. Heloisa Combat, pub. 27/07/2007). 20 PROCESSO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO HOMOAFETIVA. PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. OFENSA NÃO CARACTERIZADA AO ARTIGO 132, DO CPC. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. ARTIGOS 1º DA LEI 9.278/96 E 1.723 E 1.724 DO CÓDIGO CIVIL. ALEGAÇÃO DE LACUNA LEGISLATIVA. POSSIBILIDADE DE EMPREGO DA ANALOGIA COMO MÉTODO INTEGRATIVO. (STJ, 4ª T., Resp 820475/RJ, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, j. 02/09/2008).

leva o legislador a omitir-se. Daí o significado do julgamento, pois impõe a inclusão das uniões homoafetivas no âmbito de proteção do sistema jurídico como uma realidade merecedora de tutela. Pela primeira vez é admitido, por um Tribunal Superior, que as pretensões envolvendo pares homossexuais merecem ser apreciadas pela justiça. Aliás, neste sentido, já vem se manifestando, de forma cada vez mais frequente, tanto justiça comum como as justiças especializadas de vários Estados. Inclusive as demandas propostas pelo Ministério Público perante a Justiça Federal têm eficácia erga omnes, o que levou o INSS a expedir Resolução Normativa 21 para a concessão de direitos previdenciários aos parceiros do mesmo sexo. O próprio Supremo Tribunal Federal, ao menos em duas oportunidades, já manifestou postura francamente favorável ao reconhecimento das uniões como entidade familiar. Os Ministros Celso de Melo e Marco Aurélio, em decisões monocráticas, mostraram indignação ante ao descaso social a tal segmento da população. Fora disso, o Superior Tribunal Eleitoral, pelo voto do Ministro Gilmar Mendes, declarou a inelegibilidade da parceira de quem ocupa cargo político. 22 3. A homoparentalidade: adoção e reprodução assistida A primeira questão que se coloca é sobre a existência do direito à parentalidade. Na Declaração Universal dos Direitos do Homem está a resposta. Seu art. 12 dispõe que, homens e mulheres, em idade adequada ao casamento têm direito de casar e constituir família. Pode-se entender, portanto, que aí está situado o reconhecimento do direito a ter filhos, que deve 21 Resolução Normativa 25./2000. 22 REGISTRO DE CANDIDATO. Candidata ao cargo de prefeito. Reçação estável homossexual com a prefeita reeleita do município. Inelegibilidade. (CF 14 7º). Os sujeitos de uma relação estável homossexual, à semelhança do que ocorre com os de relação estável, de concubinato e de casamento, submetem-se à regra de inelegibilidade prevista no art. 14, 7º, da Constituição Federal. Recurso a que se dá provimento. (TSE Resp Eleitoral 24564 Viseu/PA Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 1º/10/2004).

ser vislumbrado como um direito personalíssimo, inalienável, indisponível, passível de proteção estatal. 23 O direito de ter um filho, seja por meio da procriação medicamente assistida, seja por meio da adoção, não corresponde a um direito de propriedade sobre a criança e não se desenvolve através da aquisição de uma vida humana. Ao contrário, se traduz na promoção de uma responsabilidade, de exercer o direito-dever da parentalidade de forma responsável e consciente. 24 Ainda assim, é enorme a resistência para aceitar o exercício da parentalidade adotiva por homossexuais e admitir a possibilidade de homossexuais ou parceiros do mesmo sexo habilitarem-se para a adoção. Não há como deixar de reconhecer que tal configura uma maneira genuína de assegurar o melhor interesse da criança, pois é um direito fundamental de todo cidadão crescer em um ambiente familiar e gozar de uma vida em sociedade. A vedação contrapõe-se ao habitual sistema de institucionalização, que mantém os menores abandonados moral e materialmente pelos pais, em regime fechado, obstando a colocação em família substituta. 25 São suscitadas dúvidas quanto ao sadio desenvolvimento da criança. Há a equivocada crença de que a falta de referências comportamentais de ambos os sexos possa acarretar sequelas de ordem psicológica e dificuldades na identificação sexual do adotado. É sempre questionado se a ausência de modelo do gênero masculino e feminino pode eventualmente tornar confusa a própria identidade sexual, havendo o risco de o adotado tornar-se homossexual. 26 Também causa apreensão a possibilidade de o filho ser alvo de repúdio no meio que frequenta ou vítima do escárnio por parte de colegas e 23 Marianna Chaves. Adoção homoafetiva:..., p. 210. 24 Vera Lucia da Silva Sapko. Do direito à paternidade e maternidade dos homossexuais, p. 80. 25 Maria Berenice Dias. União homoafetiva: o preconceito & a justiça., p. 115. 26 De acordo com Roger Raupp Rios, vale mencionar, nesse momento o caráter discriminatório injustificado pressuposto nesta argumentação. Parte-se da premissa de que, se fosse correta tal relação de causalidade, dever-se-ia evitar a adoção por homossexuais em face do caráter pernicioso e maléfico que tal orientação sexual, por si mesma, representaria. Trata-se de premissa totalmente discriminatória e segregacionista, sem qualquer fundamento racional, tendo em vista a compreensão contemporânea a respeito da homossexualidade.roger Raupp Rios. A homossexualidade no Direito, p. 141-142.

vizinhos, o que poderia lhe acarretar perturbações psicológicas ou problemas de inserção social. Para além disso, levanta-se a absurda questão do abuso sexual que, de pronto, deve ser rechaçada, pois não há registro de um caso sequer de abuso por parte de adotante homossexual. Todas essas preocupações, no entanto, são afastadas com segurança por quem se debruça no estudo das famílias homoafetivas com prole. As evidências trazidas pelas pesquisas não permitem vislumbrar a possibilidade de ocorrência de distúrbios ou desvios de conduta pelo fato de alguém ter dois pais ou duas mães. Não foram constatados quaisquer efeitos danosos ao normal desenvolvimento ou à estabilidade emocional decorrentes do convívio de crianças com pais do mesmo sexo. Também não há registro de dano sequer potencial ou risco ao sadio estabelecimento dos vínculos afetivos. Igualmente nada comprova que a falta do modelo heterossexual acarreta perda de referenciais a tornar confusa a identidade de gênero. Diante de tais resultados, não há como prevalecer o mito de que a homossexualidade dos genitores gere patologias nos filhos. Nada justifica a estigmatizada visão de que a criança que vive em um lar homossexual será socialmente rejeitada ou haverá prejuízo a sua inserção social. Identificar os vínculos homoparentais como promíscuos gera a falsa ideia de que não se trata de um ambiente saudável para o bom desenvolvimento dos filhos. Assim, a insistência em rejeitar a regulamentação da adoção por homossexuais tem por justificativa indisfarçável o preconceito. O Estatuto da Criança e do Adolescente autoriza a adoção por uma única pessoa, não fazendo qualquer restrição quanto a sua orientação sexual. Portanto, não é difícil prever a hipótese de um homossexual que, ocultando sua preferência sexual, venha a pleitear e obter a adoção de uma criança, trazendo-a para conviver com quem mantém um vínculo afetivo estável. Nessa situação, quem é adotado por um só dos parceiros não pode desfrutar de qualquer direito com relação àquele que também reconhece como verdadeiramente seu pai ou sua mãe. Ocorrendo a separação do par ou a

morte do que não é legalmente o genitor, nenhum benefício o filho poderá usufruir. Não pode pleitear qualquer direito, nem alimentos nem benefícios de cunho previdenciário ou sucessório. Sequer o direito de visita pode ser regulamentado, mesmo que o filho detenha a posse do estado e tenha igual sentimento e desfrute da mesma condição frente a ambos os genitores. O amor para com os pais em nada se diferencia pelo fato de eles serem do mesmo ou de diverso sexo. Ao se arrostar tal realidade, é imperioso concluir que, de forma paradoxal, o intuito de resguardar e preservar a criança ou o adolescente resta por lhe subtrair a possibilidade de usufruir direitos que de fato possui. Relativamente à adoção em conjunto, o suposto óbice reside no art. 1.622 do Código Civil brasileiro, onde se encontra a assertiva de que ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher, ou viverem em união estável. Nas palavras de Rolf Madaleno, revela-se hipócrita a proibição de adoção pelo par homossexual. 27 Todavia, tal barreira vem sendo derrubada pela jurisprudência. O primeiro caso de adoção conjunta por casal homossexual ocorreu no Estado do Rio Grande do Sul. 28 O acórdão reafirmou o entendimento, doutrinário e jurisprudencial, de que a união homoafetiva é uma entidade familiar e ressaltando que o relevante é a qualidade e o vínculo afetivo dos infantes com os requerentes, não a orientação sexual dos mesmos. Em face da procriação ou a reprodução medicamente assistida, o sonho de ter filhos e de constituir família está ao alcance de qualquer um. Ninguém precisa ter par, manter relações sexuais, ser fértil para tornar-se pai ou mãe. As 27 Rolf Madaleno. Curso de direito de família, p. 501. 28 APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. CASAL FORMADO POR DUAS PESSOAS DE MESMO SEXO. POSSIBILIDADE. Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre as crianças e as adotantes. (TJRS, 7ª C. Cível, AC 70013801592, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 05/04/2006).

técnicas são reguladas pelo Conselho Federal de Medicina 29 que, ressalte-se, não possui força de lei. O Código Civil não conseguiu ignorar esses avanços e, ao estabelecer presunções de paternidade, faz referência a elas, ainda que de forma bastante limitada (CC 1.597, III a V). Chama-se homóloga a concepção quando o material genético utilizado no procedimento de fertilização é do marido. Por presunção, ele é o genitor. Já na concepção heteróloga, é feito uso de esperma de doador. Havendo a concordância do marido, ele é considerado o pai. Essas normatizações, no entanto, não são suficientes para atender aos avanços da ciência. Assim, quando surge situação não prevista no ordenamento jurídico, o Poder Judiciário é convocado a decidir. Como se vive em um Estado Democrático de Direito, as decisões dos juízes não podem se afastar dos comandos constitucionais. A lacuna da lei não significa ausência de direito, e a Justiça precisa decidir de conformidade com os mandamentos constitucionais. Os primeiros princípios elencados são o da cidadania e o da dignidade da pessoa humana (CF 1º, II e III). Entre os objetivos fundamentais encontra-se o de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CF 3º, VI). Mas há um punhado de postulados outros que precisam ser atendidos. A Constituição considera a família a base da sociedade, outorgando-lhe especial proteção (CF 226). Também admite o planejamento familiar tendo como base os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (CF 226, 7º). Fora isso, é assegurado a crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, o direito à convivência familiar (CF 227). Com o alargamento do conceito de família não mais se pode admitir presunções de paternidade exclusivamente no casamento. A união estável adquiriu o status de família, e as uniões de pessoas do mesmo sexo passaram a ser reconhecidas como entidade familiar pela jurisprudência. As famílias, todas elas, embalam o sonho de ter filhos e não há como limitar o uso das técnicas reprodutivas aos cônjuges ou a quem vive em união estável. Também 29 Resolução nº 1.358/92.

as famílias homoafetivas precisam ter acesso à filiação, ainda que, enquanto casal, não consigam procriar. Como não é possível negar o uso dos meios reprodutivos em face da orientação sexual de quem quer ter filhos, os homossexuais passaram a se socorrer da concepção medicamente assistida. Todavia, questiona-se: no caso de uma inseminação artificial parcialmente heteróloga, onde uma mãe doa o óvulo e a outra gera o filho, com esperma de um doador, quem é a mãe de verdade? A mãe biológicogestacional, a mãe genética ou ambas? Não cabe outra resposta: ambas são as genitoras. O só fato de ter a mãe gestacional carregado o filho no seu ventre, não a autoriza a registrá-lo somente em seu nome. Aliás, a Justiça já vem admitindo que, em caso de gestação por substituição, o registro seja feito em nome de quem forneceu o material genético. De outro lado, nada justifica impedir que no registro de nascimento conste também o nome de mãe que doou os ovócitos. O exame de DNA comprova ser ela a mãe genética. Esta é a única solução. Proceder ao registro em nome de ambas, pois as duas são mães, não só por uma ser a mãe gestacional e a outra a mãe genética. Indiscutivelmente, são elas as mães, porque juntas planejaram tê-lo e juntas não mediram esforços para que o sonho comum se realizasse. Diante desta realidade, que se tornou possível graça aos avanços da ciência, outra não poderá ser a resposta da Justiça, senão determinar que o registro retrate a verdade. Negar às crianças oriundas deste tipo de reprodução o direito de serem reconhecidas como filhos de ambas as mães é afrontar o direito à identidade, é desrespeitar o princípio da dignidade humana. E mais. É negar-lhes o direito à convivência familiar. Afinal, crianças e adolescentes merecem, com prioridade absoluta, especial proteção do Estado. Para isso indispensável que as duas exerçam o poder familiar e assumam juntas todos os encargos decorrentes, entre eles, o de criá-los, educá-los e tê-los em sua companhia (CC 1.634). Enfim, é de ambas o compromisso de torná-los

cidadãos que se orgulhem de terem nascido em um país que sabe respeitar a dignidade de cada brasileiro. 30 Qualquer resposta que não reconheça a dupla maternidade ou a dupla paternidade está se deixando levar pelo preconceito. Permitir que apenas uma das mães ou apenas um dos pais possua vínculo jurídico com o filho é olvidar tudo que vem a justiça construindo através de uma visão mais ampliativa da estrutura famíliar. 31 4. A necessidade de construir um novo ramo do Direito Diante de todo o exposto, é imperioso reafirmar a necessidade de se ter coragem de advogar essas causas, sem medo de ser rotulado de homossexual ou receio de desagradar sua clientela. Tão-somente com um grande derrame de ações, trazendo todo um embasamento teórico coerente, é que será construída uma jurisprudência de inclusão. A Justiça não é cega nem surda. Precisa ter os olhos abertos para ver a realidade social e os ouvidos atentos para ouvir o clamor dos que por ela esperam. Mister que os juízes deixem de fazer suas togas de escudos para não enxergar a realidade, pois os que buscam a Justiça merecem ser julgados, não punidos. Mas em um país onde a lei escrita é tão prestigiada, a jurisprudência ainda que cristalizada não é suficiente. Assim, é necessário instituir um novo ramo do direito: o direito homoafetivo, estabelecer os seus princípios, fontes, suas conexões com outros ramos do direito e um regramento próprio. Destarte, é necessário elaborar um estatuto da diversidade sexual, tal qual há o estatuto do idoso, da criança e do adolescente. E, consolidada a jurisprudência, o legislador não poderá deixar de fazer as leis afinadas com o entendimento dos tribunais, sob pena de estar perdendo espaço de poder. Talvez essa não seja a saída masi fácil ou a mais célere, mas, indubitavelmente, é a única e só depende de cada um. 30 Maria Berenice Dias. Milagre da Ciência. 31 Maria Berenice Dias. Manual de Direito das Famílias (2009), p. 340.

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