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Transcrição:

Excelentíssimo Senhor Desembargador Walter Luiz, Relator do Incidente de Inconstitucionalidade n. 1.0144.11.003964-7/002 Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Levantem os olhos sobre o mundo e vejam o que está acontecendo à nossa volta, para que amanhã não sejamos acusados de omissão se o homem, num futuro próximo, solitário, nostálgico de poesia, encontrar-se sentado no meio de um parque forrado de grama plástica, ouvindo cantar um sabiá eletrônico, pousado no galho de uma árvore de cimento armado. (PIMENTEL, Manoel Pedro. Revista de direito penal, v. 24, p. 91) O Ministério Público do Estado de Minas Gerais, por intermédio da nos autos do Incidente de Inconstitucionalidade supracitado, requerido pela Primeira Câmara Cível desse Tribunal de Justiça em sede de Apelação interposta contra sentença que julgou procedente o pedido de instituição da reserva legal formulado na Ação Civil Pública proposta em face de Paulo Marcelo dos Santos e outra, diante do interesse institucional da matéria, vem respeitosamente à presença de Vossa Excelência para apresentar o seguinte memorial, como subsídio ao julgamento. 1 Do relato dos fatos Cuida-se de Incidente de Inconstitucionalidade, suscitado pela Egrégia Primeira Câmara Cível desse Tribunal de Justiça, em sede de Apelação da sentença que julgou procedente o pedido formulado na Ação Civil Pública proposta em face de Paulo Marcelo dos Santos e outra,

condenando-lhes a promover a averbação da reserva legal na matrícula imobiliária ou a inscrição no Cadastro Ambiental Rural (CAR), no prazo fixado, e, ainda, a recompor a área de reserva legal depois da respectiva delimitação. A Primeira Câmara Cível acolheu o incidente arguido pelo autor e remeteu os autos a esse Órgão Especial, em atenção à cláusula de reserva de plenário (art. 97 da CF), bem como ao Enunciado da Súmula Vinculante nº 10, do STF, dada a necessidade de pronunciamento acerca da questão prejudicial, a residir na alegada inconstitucionalidade do art. 67 da Lei n.º 12.651/2012 (Novo Código Florestal), que embasou as razões recursais. Processado o incidente e juntado o parecer da Procuradoria-Geral de Justiça, por intermédio da Coordenadoria de Controle da Constitucionalidade, opinando pela declaração incidental de inconstitucionalidade do dispositivo em comento, os autos foram conclusos ao Relator em 29.04.2015. 2 Da competência do Órgão Especial e da relevância da questão constitucional Registre-se a competência desse Órgão Especial para o julgamento do Incidente, a teor do artigo 33, I, c, do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (RITJMG). Igualmente, entendemos pela relevância da questão prejudicial, a demandar solução não só como premissa lógica e necessária ao 2

deslinde da controvérsia em torno da qual se instaurou o litígio, mas também pelo fato de a decisão ter reflexos em centenas de ações civis públicas ambientais em trâmite no Estado de Minas Gerais. Além disso, o Incidente traz a lume discussão a respeito de lei que tem por fim reduzir o nível de proteção socioambiental, exatamente no momento em que o Estado de Minas Gerais, pelo quinto ano consecutivo, acumula o triste recorde de devastação da Mata Atlântica. Consta que, no período 2012-2013, conforme o Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica, elaborado pela organização não governamental SOS Mata Atlântica, em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), divulgado em 27.05.2014, a Mata Atlântica perdeu 235 quilômetros quadrados de vegetação, o que representa um aumento de 9% no ritmo da devastação em relação ao último período avaliado (2011-2012). Essa área representa vinte e quatro mil campos de futebol. Minas Gerais lidera o desmatamento com 84,3 quilômetros quadrados de florestas derrubadas (cf. <www.jb.com.br>, acesso em 03.06.2014). Não ocorre, também, qualquer hipótese excludente de relevância, dentre aquelas alinhadas nos incisos I, II, III e IV, do 1º, do artigo 297, do RITJMG. O caso guarda semelhança com os históricos julgamentos por esse Tribunal ocorridos, respectivamente, em 23.11.2003 e 11.08.2004 dos Incidentes de Inconstitucionalidade n. s 401.472-0 e 406.926-8 dos 1 e 2 do art. 84 do CPC, os quais, respectivamente, mantinham o foro privilegiado nos crimes comuns e nos de responsabilidade para os agentes 3

políticos depois da cessação da função pública e instituíam o citado privilégio na ação por ato de improbidade. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais de Minas Gerais foi um dos primeiros do País a reconhecer a inconstitucionalidade das referidas normas antes da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no controle concentrado da constitucionalidade. No momento atual, há três ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas pela Procuradoria-Geral da República na referida Corte Constitucional n. s 4.901, 4.902 e 4.903 impugnando vários dispositivos do Novo Código Florestal. 3 Razões do incidente de inconstitucionalidade a seguinte redação: O art. 67 do Novo Código Florestal (Lei n. 12.651/2012) tem Art. 67. Nos imóveis rurais que detinham, em 22 de julho de 2008, área de até 4 (quatro) módulos fiscais e que possuam remanescente de vegetação nativa em percentuais inferiores ao previsto no art. 12, a Reserva Legal será constituída com a área ocupada com a vegetação nativa existente em 22 de julho de 2008, vedadas novas conversões para uso alternativo do solo. O tamanho do módulo fiscal unidade de medida agrária que representa a área mínima necessária para as propriedades rurais poderem ser consideradas economicamente viáveis no Brasil varia de cinco a cento e dez hectares, dependendo do Município. 4

O dispositivo citado prevê a constituição da reserva legal com o percentual de vegetação nativa existente em 22 de julho de 2008. A norma permite o registro de reservas legais em percentual inferior a 20% da área do imóvel. Por exemplo: se a propriedade tinha 0,01% de vegetação nativa em 22.07.2008, essa será a área da reserva legal. O que significa dizer que os desmates ilícitos foram consolidados. Para se ter uma ideia da situação desastrosa decorrente da aplicação do artigo em tela, anexamos a este memorial, por amostragem, cópias de alguns recibos de inscrição no Cadastro Ambiental Rural (CAR), extraídas de Inquéritos Civis em trâmite no Conselho Superior do Ministério Público, nos quais a área de reserva legal indicada corresponde a zero ou a percentual bem inferior a 20% das áreas dos imóveis, todas inferiores a quatro módulos fiscais. Inquérito Civil Área do imóvel (ha) Reserva legal indicada (ha) 0604.09.000051-3 73,72 0 0372.08.000199-6 2,02 0 0123.13.000105-6 3,86 0 0620.10.000079-8 4,09 0 0236.14.000134-8 5,24 0 0620.10.000056-6 3,62 0 0471.12.000289-7 11,04 0 0236.07.000007-0 6,54 0 0372.13.000338-0 6 0 0071.08.000025-1 11,32 0,29 0236.13.000073-0 4,85 0,59 0471.06.000050-5 23,62 0,66 5

No Brasil, 90% dos imóveis rurais têm área de até quatro módulos fiscais; assim, o impacto da aplicação do dispositivo em comento é devastador. Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica (IPEA), cerca de 29,6 milhões de hectares deixarão de ser recuperados, verbis: Com base na área total dos imóveis rurais e aplicando os percentuais de reserva legal previstos no atual Código Florestal para cada tipo de vegetação, o Brasil deveria possuir uma área total de 258,2 milhões de hectares de reserva legal. Aplicando o índice de passivo obtido para cada município, foi estimado um passivo total de reserva legal de 159,3 milhões de ha (61,7% da área total de reserva legal prevista na lei atual). 4.1. Cenário 1: Área de reserva legal que será isenta de ser recuperada Neste primeiro cenário, considerou-se a hipótese de anistia dos passivos atuais existentes nas áreas de RL referentes aos imóveis rurais de até quatro módulos fiscais. Neste contexto, o passivo total estimado isento de ser recuperado é de 29,6 milhões de hectares (tabela 3), sendo que a maior parte deste passivo ocorreu na Amazônia e é de 18 milhões de ha (61%) (Figura 2). (grifo do original cf. fl. 305 da ADin 4.902) A desoneração do dever de restaurar essas áreas premia injustificadamente aqueles que realizaram desmatamentos ilegais. Os prejuízos ambientais saltam aos olhos. Em outro estudo, produzido pela Academia Brasileira de Ciência e pela Sociedade Brasileira para o Progresso Científico na época da discussão da lei no Congresso Nacional, os parlamentares foram alertados das consequências da redução das áreas de reserva legal e de preservação permanente nos termos seguintes: 6

Entre os impactos negativos da redução de APPs e de RL estão a extinção de espécies de muitos grupos de plantas e animais (vertebrados e invertebrados); o aumento de emissão de CO2; a redução de serviços ecossistêmicos, tais como o controle de pragas, a polinização de plantas cultivadas ou selvagens e a proteção de recursos hídricos; a propagação de doenças (hantavírus e outras transmitidas por animais silvestres, como no caso do carrapato associado à capivara); intensificação de outras perturbações (incêndios, caça, extrativismo predatório, impacto de cães e gatos domésticos e ferais, efeitos de agroquímicos); o assoreamento de rios, reservatórios e portos, com claras implicações no abastecimento de água, energia e escoamento de produção em todo o país. (cf. fl. 15 da Adin n. 4.902) A reserva legal constitui a área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural necessária ao uso econômico, de modo sustentável, dos recursos naturais, à conservação e à reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção da fauna e da flora nativas (art. 3º, III, do Novo Código Florestal). Assim, segundo essa definição, a reserva legal visa à conservação dos atributos biogeográficos elementos da fauna e da flora da região na qual a propriedade rural se encontra. Não foi sem razão, portanto, que o legislador empregou o vocábulo nativas para se referir à fauna e à flora amparadas pela reserva legal. A Constituição da República, influenciada pelo revogado Código Florestal, além de fazer constar do conceito de função social da propriedade a proteção do meio ambiente (art. 186, II), erigiu o estabelecimento de espaços territoriais especialmente protegidos nos quais se incluem a reserva legal e as áreas de preservação permanente à categoria 7

de dever fundamental do poder público para garantia do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, 1º, III). A constitucionalização desses espaços territoriais trouxe consequências vinculantes ao sistema jurídico, inclusive com restrições dirigidas ao legislador, porquanto, para assegurar a efetividade desse direito, o art. 225, 1º, da CF em seus incisos prevê como atribuição do poder público: a) preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas (inciso I); b) preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País (inciso II); c) definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção (inciso III). Além do dever geral de não degradação ambiental consagrado na Constituição da República, a criação desses espaços territoriais especialmente protegidos decorre do dever de preservar e de restaurar os processos ecológicos essenciais a diversidade e a integridade do patrimônio genético, a fauna e a flora, cujo cumprimento atinge as três esferas de poder: o Executivo deverá observá-lo em seus atos administrativos, especialmente no licenciamento; o Judiciário não poderá chancelar a utilização predatória dos espaços protegidos, zelando pela função ambiental dessas áreas; o Legislativo deverá atender o referido preceito na elaboração da legislação infraconstitucional. 8

Em caso de dano ao meio ambiente, a Carta consagra o dever de reparação, segundo o qual as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas e jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados (art. 225, 3, da CF). Isentar o proprietário de recompor a área desmatada a obrigação de reflorestar data de 18.01.1992 (art. 99 da Lei n. 8.171/91), além de afrontar os deveres de não degradação (art. 225 da CF) e de reparação do dano ambiental (art. 225, 3 ), viola os seguintes deveres fundamentais explicitados nos seguintes incisos do 1 do aludido art. 225 da Constituição da República: a) a vedação de que espaços territoriais especialmente protegidos sejam utilizados de forma a comprometer os atributos que justificam sua proteção (inciso III); b) o dever de preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais (inciso I). A norma em tela, ao estabelecer um padrão de proteção ambiental manifestamente inferior ao anteriormente existente, viola também o princípio da vedação do retrocesso social, formulado da forma seguinte por Canotilho: A liberdade de conformação política do legislador no âmbito das políticas ambientais tem menos folga no que respeita à reversibilidade político-jurídica da protecção ambiental, sendo vedado adoptar novas políticas que se traduzam em retrocesso retroactivo de posições jurídico-ambientais fortemente enraizadas na cultura dos povos e na consciência jurídica geral. (cf. voto proferido pelo Des. Wander Marotta na TJMG ADIn n. 1.0000.07.456706-6/000, j. 27.08.2008). (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, p. 5) 9

A aplicação retroativa do aludido art. 67 do Novo Código Florestal a situações constituídas sob a égide do Código revogado viola o ato jurídico perfeito, os direitos ambientais adquiridos e a coisa julgada (art. 5, XXXVI). Aliás, sobre a irretroatividade da lei ambiental e em especial do Novo Código Florestal, registre-se a existência de sucessivos precedentes da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça. No julgamento do REsp. n. 980.709-RS, Rel. Min. Humberto Martins, DJ 02.12.2008, a referida Corte não admitiu a aplicação da lei nova que reduzira a faixa non aedificandi, prevista na Lei de Parcelamento do Solo Urbano. O acórdão tem a seguinte ementa: O direito material aplicável à espécie é o então vigente à época dos fatos. In casu, Lei n. 6.766/79, art. 4º, III, que determinava, em sua redação original, a "faixa non aedificandi de 15 (quinze) metros de cada lado do arroio". Analisando pedido de aplicação do art. 59 do Novo Código Florestal que prevê anistia de multas por infrações ambientais no julgamento da Pet. no REsp. n. 1.240.122-PR, DJ 19.12.2012, o Rel. Min. Herman Benjamin assim consignou: O novo Código Florestal não pode retroagir para atingir o ato jurídico perfeito, direitos ambientais adquiridos e a coisa julgada, tampouco para reduzir de tal modo e sem as necessárias compensações ambientais o patamar de proteção de ecossistemas frágeis ou espécies ameaçadas de extinção, a ponto de transgredir o limite constitucional intocável e intransponível da 'incumbência' do Estado de garantir a preservação e restauração dos processos ecológicos essenciais (art. 225, 1º, I). 10

O citado posicionamento repetiu-se, em 2013, no julgamento do AgRg no Ag. no REsp. n. 327.687-SP, Rel. Min. Humberto Martins, DJ 26.08.2013, no qual não se admitiu a aplicação do art. 15 do Novo Código Florestal, que prevê o cômputo das áreas de preservação permanente na reserva legal, verbis: Indefiro o pedido de aplicação imediata da Lei 12.651/12, notadamente o disposto no art. 15 do citado regramento. Recentemente, esta Turma, por relatoria do Ministro Herman Benjamin, firmou o entendimento de que "o novo Código Florestal não pode retroagir para atingir o ato jurídico perfeito, direitos ambientais adquiridos e a coisa julgada, tampouco para reduzir de tal modo e sem as necessárias compensações ambientais o patamar de proteção de ecossistemas frágeis ou espécies ameaçadas de extinção, a ponto de transgredir o limite constitucional intocável e intransponível da 'incumbência' do Estado de garantir a preservação e restauração dos processos ecológicos essenciais (art. 225, 1º, I). De forma idêntica, a aludida Corte não admitiu a aplicação dos arts. 68 e 58 do Novo Código Florestal em acórdãos cujas ementas no que interessa têm, respectivamente, a seguinte redação: A Segunda Turma desta Corte firmou a orientação de inaplicabilidade de norma ambiental superveniente de cunho material aos processos em curso, seja para proteger o ato jurídico perfeito, os direitos ambientais adquiridos e a coisa julgada, seja para evitar a redução do patamar de proteção de ecossistemas frágeis sem as necessárias compensações ambientais. (AgRg no REsp. n. 1.367.968-SP, 2ª T.; Rel. Min. Humberto Martins, DJ 12.03.2004) A entrada em vigor da Lei n. 12.651/2012 revogou o Código Florestal de 1965 (Lei n. 4.771), contudo, não concedeu anistia aos infratores das normas ambientais. Em vez disso, 11

manteve a ilicitude das violações da natureza, sujeitando os agentes aos competentes procedimentos administrativos, com vistas à recomposição do dano ou à indenização. (AgRg no REsp. n. 1.313.443-MG, 2ª T., Rel. Min. Og Fernandes, DJ 12.03.2014) Recentemente, no julgamento do REsp 1.462.208-SC, 2ª T., Rel. Min. Humberto Martins, DJ 06.04.2015 versando sobre intervenção em terreno de marinha, reafirmou-se o citado entendimento de irretroatividade do Novo Código Florestal. Na oportunidade, em voto-vista, o Min. Min. Herman Benjamin acrescentou: A Constituição foi mais longe, atrelando, internamente, ao direito de propriedade uma função ecológica, nos termos do art. 186, II. De tudo isso decorre que, no regime jurídico brasileiro, já não há espaço para a propriedade contra o ambiente, substituída que foi pelo modelo da propriedade com o ambiente. Deve, portanto, ser reconhecida a inconstitucionalidade incidental do art. 67 da Lei n. 12.651/2012, em razão da afronta aos seguintes dispositivos constitucionais: a) art. 225, caput, que consagra o dever geral de proteção ambiental; b) art. 225, 3, que prevê a obrigação de reparação do dano ao meio ambiente; c) art. 225, 1, I, que estabelece o dever de restaurar os processos ecológicos essenciais; d) art. 225, 1, IIII, que veda a utilização de espaço especialmente protegido de modo a comprometer os atributos que justificam sua proteção; e) art. 186, II, que estabelece a exigência de que a propriedade atenda sua função social; f) art. 5, XXXVI, que resguarda o ato jurídico perfeito, os direitos ambientais adquiridos e a coisa julgada. 12

Acrescente-se, ainda, a afronta ao princípio da vedação do retrocesso em matéria socioambiental. 4 Pedido Isso posto, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais requer a procedência do incidente, a fim de que se declare incidentalmente a inconstitucionalidade do art. 67 da Lei n.º 12.651/2012. Belo Horizonte, 5 de maio de 2014. Antônio Sérgio Rocha de Paula Procurador de Justiça Ana Paula Mendes Rodrigues Procuradora de Justiça Antônio Joaquim Schellenberger Fernandes Procurador de Justiça Geraldo Magela Carvalho Fiorentini Procurador de Justiça Giovanni Mansur Solha Pantuzzo Procurador de Justiça Iraídes de Oliveira Marques Caillaux Procuradora de Justiça Jacson Rafael Campomizzi Procurador de Justiça Marcos Tofani Baer Bahia Procurador de Justiça Maria Inês Rodrigues de Souza Procuradora de Justiça Shirley Fenzi Bertão Procuradora de Justiça Mônica Aparecida Bezerra Cavalcanti Fiorentino Procuradora de Justiça 13