MEMÓRIAS DO HOLOCAUSTO: ESTÓRIAS DA HISTÓRIA Yazid Jorge Guimarães Costa *



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Transcrição:

MEMÓRIAS DO HOLOCAUSTO: ESTÓRIAS DA HISTÓRIA Yazid Jorge Guimarães Costa * INTRODUÇÃO O tema central deste ensaio é analisar como são construídas diferentes memórias sobre um mesmo acontecimento, ou como memórias podem ser re-significadas, dependendo do contexto onde estão inseridos os grupos que irão propagar esta memória. Esta tentativa de apreensão será executada a partir de dois diálogos que serão buscados: o primeiro diálogo será uma tentativa de relacionar a História, como área do conhecimento historicamente constituída a partir um método na verdade, vários métodos -, o que lhe rendeu a aura de ciência, e a Literatura, campo de ação intelectual quase sempre relegado a um papel de menor importância nas pesquisas relacionadas ao campo das ciências humanas. O segundo diálogo a ser tentado será entre a área da Teoria da História, elaborada por historiadores, e a Filosofia da História, elaborada, logicamente, por filósofos, relacionando o quê estas duas áreas do conhecimento entendem por memória. Há de ser ressaltado, no entanto, que estes diálogos não serão sempre abordados de maneira apartada, os temas interligam-se, possibilitando o aparecimento de ambas discussões no mesmo tópico sem prejuízo metodológico, e isto se dá pelo fato de a literatura aparecer neste ensaio como a principal fonte a possibilitar tais discussões, sendo as obras Treblinka (1976) e O Diário de Anne Frank Edição definitiva (1991), respectivamente de Jean- François Steiner, e Anne Frank, sendo organizada esta edição por Otto Frank e Mirjam Pressler. A partir destas duas obras um romance baseado em fatos reais e um diário é que será feita a tentativa de dialogar tanto História e Literatura, como História e Filosofia, relacionando o contexto retratado nas duas obras, como o trabalho de pesquisadores das ciências humanas, como Roney Cytrynowicz, Hannah Arendt, Eric Hobsbawm e Roderick Stackelberg. Relacionando estes vários textos poderá ser feita a discussão acerca da memória, posto que, do meu ponto de vista, a opção teórico-metodológica de um determinado autor seja ele um historiador, uma cientista política, um escritor, ou uma garota de 13 anos que começa a redigir um diário sem intenção de publicá-lo, buscando um refúgio representa, * Bacharelando em História pela Universidade Federal do Ceará. 1

também, uma determinada memória a ser perpetuada, e daí surge a problemática de como a História e a Filosofia tratam da questão da memória, onde fica o coletivo, onde fica o individual? Os dois principais autores que ajudarão a entender o problema da memória neste embate são: Jacques Legoff e Paul Ricouer, historiador e filósofo, respectivamente. As obras que tratam do problema apresentado que foram utilizadas para este diálogo são, respectivamente, História e Memória (1996) e A memória, a história, o esquecimento (2007). Por fim, como é perceptível, não será qualquer memória que será analisada neste ensaio. O contexto sócio-histórico que será pano de fundo deste trabalho é aquele localizado no período da Segunda Guerra Mundial, especificamente no que se refere à atuação da Alemanha na tentativa de extermínio dentre outros, como ciganos, russos, etc. do povo judeu. O EXTERMÍNIO A tentativa de extermínio do povo judeu durante a Segunda Guerra Mundial, sob a influência da Alemanha nazista, tem por consenso ser denominada como Holocausto, mas devido à conotação de sacrifício, de imolação em chamas, como se os judeus tivessem se sacrificado em nome de alguma coisa (CYTRYNOWICZ, 1990, p. 13), alguns autores não a usam, preferindo termos como extermínio ou genocídio 1, porém, a interpretação que faço do que foi a tentativa de aniquilação dos judeus, possibilita, sim, a utilização do termo holocausto, ainda que com a conotação de sacrifício do povo judeu. Esta interpretação se dá a partir da discussão que é feita por muitos autores acerca da passividade dos judeus ante o extermínio. Esta chamada e aqui é justificado o uso do termo chamada, no sentido de que há divergências sobre a razão da conduta dos judeus passividade, por muitos foi apontada devido aos milênios de perseguição sofrida por este povo, tendo suas origens muito antes da traição de Judas. Devido ao povo judeu ser um grupo sem pátria, é justificado então o fechamento em si do grupo como elemento que impediu uma percepção mais acurada do contexto posterior a República de Weimar e da ascensão do nazismo, devido a tradições pacifistas 2 do grupo, que por terem lideranças caracterizadas 1 Foi apenas após o fim da Segunda Guerra Mundial, como a derrota da Alemanha e o imperativo do julgamento dos crimes cometidos sob a influência da Alemanha nazista que surgiu o crime de genocídio. 2 O uso do termo pacifista, na verdade, significa uma posição com base em Hannah Arendt de não-violência dos judeus enquanto um grupo organizado, porém, não significa que os judeus não tomassem posição em um momento de guerra, caso fossem afetados por este contexto, Cytrynowicz inclusive cita os problemas que 2

pela idade onde a idade estaria associada à sabedoria e ao conhecimento das tradições seria comum tomar para si a responsabilidade da segurança de um número vasto de pares seus, o que os levaria a adotar uma postura de cautela e esperança em relação às práticas dos nazistas, e não uma postura combativa, que aparece na historiografia, cabendo esta prática aos jovens que estão sob a influência dos ideais sionistas ou socialistas, que foram responsáveis por revoltas como a do Gueto de Varsóvia, em 1943, entre outros levantes. A revolta do gueto de Varsóvia, ou do campo de extermínio Treblinka são exemplos de que a passividade judia não é uma verdade absoluta como nada o é - e podem ser caracterizados como sacrifícios, posto que seja impensável a existência da crença em uma vitória efetiva de um grupo de guerrilha mal equipado sobre um exército bem treinado, equipado e ordenado. Mas, a própria suposta passividade pode ser interpretada como um sacrifício, a partir de determinado momento após a solução final 3 ter sido posta em prática. A partir de 1942, os judeus não apenas seriam aprisionados em guetos, como seriam deportados para campos de concentração e extermínio como, por exemplo, o campo chamado Treblinka. E quando é iniciada a deportação em massa destes judeus, fica claro para algumas pessoas inclusive o presidente do Judenrat do gueto de Varsóvia, que comete o suicídio após o início das deportações em protesto a esta prática e ao que ela claramente representava: a morte dos judeus deportados que a morte chegaria a quem fosse deportado. Mas surge um impasse, a morte para quem se revolta, é certa, mas se eu ficar quieto pode ser que eu sobreviva, e mesmo que eu seja deportado do gueto, e ao invés de ser enviado para trabalhar como os alemães dizem, seja enviado para um campo de extermínio, ainda há uma chance de sobreviver, e devo, então, apegar-me a esta chance. Este dilema foi problematizado na historiografia amplamente, inclusive na obra de Jean-François Steiner, e a reação encontrada a esta questão, a da esperança de sobreviver, pode, sim, ser interpretada como um sacrifício. A crença em uma chance final pode representar um sacrifício pela vida, mesmo que este represente a morte. Posto isto, Holocausto, extermínio e genocídio dos judeus, neste trabalho, assumem a mesma conotação, de sacrifício, seja ele combativo, por meio das poucas revoltas ocorridas em guetos ou campos de concentração, ou passivo. surgem para os nazistas no momento pré-guerra, antes da solução final, para deportar heróis judeus da Primeira Guerra, por exemplo. 3 Solução final é tida neste ensaio com o sentido de aniquilação ou extermínio dos judeus, aparecendo neste sentido após a determinação de não apenas haver a deportação dos judeus, mas também o assassínio destes, a partir de janeiro de 1942. 3

ANTI-SEMITISMO Wilhelm Reich (1933) interpreta a ascensão do nazismo 4 a partir de uma interpretação psicológica, tendo como base a visão de que no contexto sócio-histórico no qual o nazismo está inserido, a estrutura familiar existente nas classes médias e baixas se apresentava a partir de uma organização patriarcal, havendo a figura de um chefe, reconhecida aí pelo pai, e além dessa figura, também um código moral. O autor justifica que esta estrutura era reproduzida em toda a sociedade, a partir da repressão sexual praticada pelo chefe aos filhos e esposa, posto que a submissão imposta em casa exceda os limites do lar, aparecendo então para o indivíduo reprimido, o Estado, representando a figura do pai autoritário e repressivo, mas também protetor, que, assim como o chefe familiar seria admirado. Esta repressão não geraria só esta interpretação sobre o Estado, mas também ocasionaria recalques - utilizando o conceito de economia sexual -, que fariam com que a energia sexual fosse direcionada. O conceito anteriormente citado daria conta também de explicar a organização social da Alemanha, relacionando a hierarquia econômica e social com a repressão sexual. Para o autor, com base nestas teorias a perseguição aos judeus seria o escape deste recalque da sociedade sob influência do fascismo. Esta interpretação não me parece a mais adequada para tentar responder aos questionamentos acerca do nazismo e das causas do holocausto, então, imagino ser mais plausível, e ainda assim, não completamente, mas tais críticas serão guardadas, a teoria de Hannah Arendt, que associa o Anti-semitismo à percepção de diferentes classes, em diferentes períodos históricos posto que o anti-semitismo, para esta autora, não seja constante, sofrendo variações de intensidade dos judeus com a classe dominante, ou como uma classe privilegiada, canalizando suas forças contra os judeus, tendo como maior expressão o nazismo alemão, mas surgindo em várias regiões da Europa. Hannah Arendt explica esta associação com as classes combatidas a partir de idéias como o caráter apátrida do povo judeu, que está inserido em quase todos os países europeus, e tem origens anteriores à formação dos Estados Nacionais, quando os judeus serviam, principalmente como banqueiros ou financistas particulares, em caráter individual, mas que a partir da formação de Estados-Nação, surge a necessidade de uma associação entre os judeus, 4 Por nazismo deve-se entender a variante fascista que se instalou na Alemanha com a ascensão de Hitler, sendo esta denominação advinda das duas primeiras siglas do Partido no qual este estava inserido, o Nacionalsocialista. 4

devido a necessidade mais ampla de empréstimos que então vão ser feitos não mais por aristocratas, mas pelo próprio Estado, que na impossibilidade de crédito junto aos burgueses ascendentes, que temiam correr riscos, lançavam mão dos judeus. Esta associação dos judeus com o poder instituído - tendo como representação máxima desta relação e da penetração do povo judeu por quase toda a Europa, a família Rothschild - mas não sua inserção neste, partindo de Hannah Arendt, ocasionou diversas críticas ao povo judeu, sendo o maior exemplo disso não a formação de partidos anti-semitas, por exemplo, mas a redação do texto Os protocolos dos sábios de Sião, que traz a teoria de que existe uma conspiração elaborada pelo povo judeu para dominar o mundo. Estes mesmos Protocolos, que foram utilizados primordialmente na Rússia czarista como forma de desmoralizar movimentos pré-revolucionários, foram apropriados pela Alemanha nazista como forma de propaganda negativa dos judeus além, principalmente, da justificativa racial -, de modo a justificar o que é um crime no caso, foram vários crimes, discriminação, expropriação, deportação, até o assassinato em massa como algo correto e natural. Hannah Arendt explica o surgimento do nazismo, por exemplo, um movimento nacionalista-totalitário, formado a partir da associação entre o nacionalismo e o imperialismo, duas correntes inicialmente contrárias, se dá com base na aliança entre a ralé e a burguesia. Dentre as duas teorias apresentadas acerca da ascensão do nazismo/anti-semitismo - Hannah Arendt e Wilhelm Reich a que me parece mais plausível seria a de Arendt, e esta opção se dá pelo conhecimento do contexto da ascensão do Terceiro Reich. Hitler ao assumir o poder na Alemanha, o faz após o período denominado República de Weimar, momento histórico bastante significativo para o contexto do surgimento do nazismo, posto que seja um período marcando por intensa crise econômica, decorrida entre outros motivos, da derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial. Os judeus, segundo interpretação de Arendt, ao sempre estarem associados ao poder instituído, seriam então, associados aos atores ou classes sociais - que provocaram a Guerra, sendo então, os judeus culpados de todas as mazelas decorrentes deste fato a derrota, a crise econômica, desemprego, inflação, etc. A MEMÓRIA COMO HISTÓRIA 5

A discussão sobre a memória existe desde os antigos como Paul Ricoeur bem demonstra na obra A memória, a história, o esquecimento -, com Platão e Aristóteles, onde o primeiro vai questionar a memória como a representação presente de uma coisa ausente; ele advoga implicitamente o envolvimento da problemática da memória pela imaginação (RICOUER, 2007, p. 27), e o segundo crê a memória como uma representação de uma coisa anteriormente percebida, adquirida ou apreendida, preconiza a inclusão da problemática da imagem na da lembrança (RICOUER, 2007, p. 27). A diferença básica que surge no pensamento de Ricouer e de Legoff, está que o primeiro, ao negar a polaridade, memória individual x coletiva, divide-a em três, as atribuições da memória a si, aos próximos, aos outros. Paul Ricouer discorre sobre a gradação da atribuição da memória, e qual seria a importância destas três categorias para a formação da memória, o eu, os próximos e os outros, sendo o eu, uma memória individual, não relacionada com outros sujeitos diretamente, os próximos relacionando-se com os sujeitos que são caros ao indivíduo, ou que têm o indivíduo como caro, gerando a formação de uma memória diferente das dos outros, que seriam os demais membros os quais estariam inseridos no mesmo grupo do indivíduo, mas que não seriam portadores de uma relação diferenciada. Para Legoff: (...) a memória coletiva faz parte das grandes questões das sociedades desenvolvidas e das sociedades em via de desenvolvimento, das classes dominantes e das classes dominadas, lutando todas pelo poder ou pela vida, pela sobrevivência e pela promoção. (LEGOFF, 1996, p. 475). A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar de identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia. (LEGOFF, 1996, p. 476). Para Legoff, por fim, não existe uma polaridade entre a memória individual e a coletiva, ambas fazem parte de um mesmo processo, a construção de uma identidade, seja esta individual, ou coletiva, mas, não apenas isto, a memória coletiva aparece também como um objeto de desejo, posto que a classe que detém o poder de definir a memória coletiva, tem também o poder de eliminar outras memórias, e com isto, identidades outras. Porém, a principal diferença entre o pensamento de Paul Ricouer e Jacques Legoff está no caráter que cada um atribui ao papel da memória em relação à História. 6

Em determinado momento da historiografia, de fato, como aparece em Paul Ricouer (2007, p. 107) afirma que o problema entre a memória coletiva e a individual não estaria acabada, mas que retornaria quando a história, ao se colocar por sua vez como sujeito de si mesma, será tentada a abolir o estatuto de matriz de história, geralmente concedido à memória, e a tratar esta última como um dos objetos do conhecimento histórico. (RICOUER, 2007, p. 107). Esta afirmação, de que a História, de um modo geral, ainda trata a memória como história pode ser refutada a partir da obra de Jacques Legoff, já citada, na página 473, onde é reconhecido que até aquele momento, de fato, assim a História interpretava a função da memória, mas que não mais o era feito. A partir deste contexto da memória coletiva como um objeto de disputa, e como objeto de estudos que deve ser apresentado o livro O Diário de Anne Frank edição definitiva (1991), um diário que pertenceu à jovem Anne Frank, alemã radicada com a família na Holanda logo após o início da perseguição aos judeus, com a ascensão do nazismo na Alemanha. Em 1942, após o início das deportações dos judeus dos territórios neutros ou subjugados da Alemanha para os campos de concentração na Polônia, a família Frank decide esconder-se em um anexo secreto existente na fábrica onde o patriarca, Otto Frank, trabalha. Mudam-se para o Anexo a família Frank Otto, pai; Edith, mãe; Margot, irmã; a própria Anne, a família Van Peels, apresentada no diário como Van Daan Herman, pai; Auguste, mãe; Peter, filho -, e Fritz Pfeffer, dentista apresentado no diário como Albert Dussel. Poucas são as referências de Anne à Guerra, no sentido de notícias, ou interpretações sobre o povo alemão, Hitler ou Nazismo. Porém, todas as suas interpretações são bem coerentes com as interpretações que grande parte das pesquisas históricas, sociológicas, ou romances trarão, ao falar do holocausto. São comuns interpretações tais quais: a perplexidade frente à barbárie promovida por um povo tão evoluído como o alemão; a percepção da omissão dos Aliados em relação ao genocídio dos judeus nos campos de extermínio; e, a percepção de que os nazistas usavam uma máquina de propaganda, mas não só eles, como os Aliados. Porém, surge uma dissonância muito importante, já em 9 de outubro de 1942, é mostrado que os habitantes do Anexo tinham plena consciência do que era feito dos judeus 7

que eram arrebanhados em suas casas, e até antes, sendo este o motivo da família Frank, assim como outras famílias judias que viviam na Holanda se esconderam o fato é demonstrado por Anne Frank em vários momentos do diário, demonstrando haver, inclusive uma rede de solidariedade entre aqueles que viviam na clandestinidade. Muitos autores alegam que a já citada passividade dos judeus se dava, além dos motivos já apresentados, ao desconhecimento do que na verdade lhes aguardava. A família Frank tinha conhecimento, muitas outras famílias, também. Porém, a família Frank, e grande parte das famílias ou indivíduos que fugiram da Alemanha no período apenas de perseguição, e não de extermínio, em sua maioria, eram famílias de classe média, ou alta, logo, eram grupos instruídos, cujas gerações, apesar do caráter apátrida dos judeus, já estavam enraizadas em vários países, principalmente, na Alemanha, o que não acontece com os judeus da Polônia, e do leste europeu, como cita Hannah Arendt, estes judeus tinham características de menos instrução e menor poder econômico em relação aos judeus europeus, daí a justificativa dos Frank terem consciência do extermínio. Por fim, surge a pergunta, até onde o Diário de Anne Frank pode ter influenciado na construção de uma memória coletiva judaica? Sabendo ser a memória um objeto de disputas entre vários sujeitos e grupos, ao fim da Guerra, com a derrota da Alemanha, os judeus, mesmo que sem uma pátria para chamar de sua, fazem parte dos vencedores, posto que o extermínio não foi executado até o fim, e, sendo os vencedores, além dos despojos de guerra de praxe indenizações, tratados, acordos, etc. os judeus também tiveram a oportunidade de impor sua memória, o que, de fato, aconteceu. Neste momento, não tento negar o holocausto, de fato, ele ocorreu, porém, poucos trabalhos enfocam o extermínio de outros grupos sociais, como os comunistas russos, os doentes na Alemanha e territórios conquistados, ciganos, poloneses, etc. Estes trabalhos existem, mas, por muito tempo ficaram sem ser tocados, ou relegados ao segundo plano da importância histórica. Mas, esta é a dinâmica da memória. A HISTÓRIA ROMANCEADA A relação entre História e Literatura por muitos anos e até hoje, alguns historiadores não aceitam foi uma relação conturbada, marcada principalmente por críticas de historiadores a escritores que ousaram adentrar no campo da pesquisa histórica, isto, posto 8

que a feitura de um romance histórico seja prejudicada em seu rigor metodológico da História como ciência devido à não formação destes escritores na ciência da História, sendo o papel único então destes, cuidar de ficções, e nunca de fatos passados, que caberiam ao historiador. Jean-François Steiner foi um destes romancistas que ousou adentrar no campo de atuação dos historiadores, e, neste sentido, seu trabalho é de um primor, que somente o mais ranzinza, ou despeitado historiador poderia criticar a sua obra Treblinka. Isto é dito não no intuito de transformar Jean-François Steiner em algo como um historiador honorário, ou qualquer coisa do tipo, posto que não seu romance não seja julgado da maneira como comumente é feita, que é o quão fiel o escritor foi aos fatos. Esta concepção, embasada em uma teoria da História extremamente retrógrada, busca diminuir o trabalho do escritor, entre outro motivos, devido ao medo do historiador de perder espaço já que, assumidamente, poucos historiadores escrevem tão fluidamente quanto um romancista no mercado afinal, ser historiador é uma profissão, e uma profissão para existir necessita de um mercado para que o profissional atue além de arrogar um maior conhecimento dos fatos ao historiador, no caso de uma interpretação dissonante das correntes historiográficas vigentes. Este segundo motivo surge principalmente devido às próprias concepções de História que anteriormente eram predominantes, de uma história factual, pretensamente imparcial, a uma história problemática, onde era buscado descobrir os vários porquês das mudanças ocorridas no tempo e no espaço, que mesmo que não sendo imparcial posto que a imparcialidade não exista faria parte de uma determinada corrente, que surgiria como um contraponto à corrente instaurada, negando a corrente então no poder. A concepção de História que se faz presente neste trabalho, baseia-se na idéia de que a História é apenas uma interpretação sobre um fato, ou um contexto passado, onde o que vai valorar é como foi executado o método para realizar esta interpretação e quais as categorias de análise utilizadas. Por acreditar ser a História apenas uma interpretação, não há de se crer que deva existir pudores em utilizar o materialismo histórico para analisar um tema, e utilizar categorias de análise caras à História Cultural para analisar um outro tema, que seria inviável analisar sob a ótica do materialismo histórico. Cada corrente historiográfica surge sob o signo da necessidade de suprir falhas, ou brechas da corrente então vigente. Assim foi com o 9

Positivismo, a Escola dos Anais, Materialismo Histórico, Nova História Cultural, e outras correntes, que apesar de quase sempre surgirem a partir da negação da anterior, deveriam ser vistas, sim, como um complemento. A última questão relacionada a estas críticas está no fato da tentativa de reconstrução dos fatos, que algumas correntes historiográficas defendem. Neste ensaio esta perspectiva não existe, posto que a história o que de fato aconteceu não pode ser nunca alcançada, mesmo que através da História Oral, como alguns pesquisadores tentam afirmar, mesmo aqueles que vivenciaram a história, não podem passá-las aos livros, posto que seria, ainda assim, uma interpretação da vivência. Sendo assim, um romance histórico, desde que embasado em um método, tem seu valor como produto intelectual, válido não só como fonte de estudo, mas também como registro de uma determinada memória, mas esta questão será abordada posteriormente. Posta esta questão, Treblinka, aparece então como o registro de uma memória que se quer propagada, podendo ser tratada como um símbolo, ou compêndio de várias interpretações que aparecem no mais variados trabalhos sobre o Holocausto, como a passividade, perplexidade, poder aquisitivo e de instrução dos judeus do leste, a idéia de que as revoltas nos campos de extermínio só foram possíveis devido a percepção da iminente destruição do campo, como uma tentativa de sobrevivência, a já citada chance final. BIBLIOGRAFIA CYTRYNOWICZ, Roney. Memória da Barbárie. São Paulo: EDUSP: Nova Stella, 1990. FRANK, Otto. PRESSLER, Mirjam. O diário de Anne Frank edição definitiva. Rio de Janeiro: Record, 2006. HANNAH, Arendt. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: O breve século XX. 2ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. LEGOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1996. REICH, Willem. A psicologia de massas do fascismo. São Paulo: Martins Fontes, 2001. RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. STACKELBERG, Roderick. A Alemanha de Hitler: Origens, interpretações, legados. Rio de Janeiro: Imago, 2002. 10

STEINER, Jean-François. Treblinka. São Paulo: Abril Cultural, 1976. 11