A CULTURA DO ACARAJÉ EM ARACAJU Leovaldo Garcia Universidade Federal de Sergipe garcilleos@gmail.com



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A CULTURA DO ACARAJÉ EM ARACAJU Leovaldo Garcia Universidade Federal de Sergipe garcilleos@gmail.com GT 01: A Produção de Alimentos Tradicionais nos Territórios Rurais e Urbanos Resumo Este trabalho se propõe a fazer uma análise preliminar sobre a produção, comercialização e consumo do Acarajé em Aracaju, considerando sua relação com a atividade turística. Hoje, o consumo crescente deste alimento tradicional tem colaborado para o aumento de sua produção em várias cidades do Nordeste brasileiro, entre elas Aracaju. É nesta vertente que segue este artigo, que objetiva analisar as especificidades da cultura do acarajé na cidade. O estudo está baseado em pesquisa bibliográfica envolvendo temas como gastronomia, cultura e turismo, por meio de autores como Barroco (2008), Cunha et al.(2009), Gândara & Mascarenhas (2010) e Schlüter (2003). E pesquisa de pesquisa de campo com a utilização da observação direta e entrevistas. Observou-se que em Aracaju tal tradição absorve novas formas de produção e espaços de comercialização, tendo como principal consumidor o morador e não o turista. Palavras-chave: Cultura do Acarajé; Aracaju; Turismo. Introdução Este trabalho tem por objetivo analisar o contexto de produção, comercialização e consumo do Acarajé em Aracaju, considerando sua relação com a atividade turística. Para tanto, buscará identificar as reais motivações pelas quais as pessoas se propuseram a começar esse tipo de negócio e nesse contexto, compreender como se dão as relações socioeconômicas, entorno da atividade. A intenção é compreender como se dá a cultura do acarajé na referida cidade, evidenciando suas especificidades, seus produtores e espaços de venda e consumo. O artigo foi desenvolvido por meio de pesquisa bibliográfica e de campo. O debate teórico buscou tratar da temática do vínculo entre turismo, cultura e patrimônio por meio de autores como Barroco (2008), Cunha et al.(2009), Gândara & Mascarenhas (2010) e Schlüter (2003). A pesquisa de campo teve por finalidade mapear os principais espaços de comercialização de acarajé em Aracaju situados em áreas de visitação turística. O critério de escolha foi baseado na representatividade dos produtores e vendedores da iguaria nas áreas de fluxo turístico, tais como os calçadões e praças no centro histórico da cidade, o bairro Coroa do Meio e a Orla de Atalaia Velha. 1

Durante a pesquisa de campo foram desenvolvidas entrevistas e observação in loco. As entrevistas serviram para entender como se dá a dinâmica da atividade em Aracaju e sua relação com o turismo da capital. Foram desenvolvidas oito entrevistas nos respectivos pontos de venda com produtores, considerando o tempo de produção e venda de cada entrevistado. Neste âmbito, foram colhidos relatos de Dona Bilô, Jorge (Filho de Dona Bilô), Dona Luzia, Dona Edezoíta, Dona Rita, Dona Jaíra e Senhor Genildo. A observação in loco serviu para observar a dinâmica de todas as etapas de preparo que envolve o saber fazer. Nesta etapa foram utilizados câmera fotográfica e gravador como equipamentos de registro, além de bloco de notas para o registro de informações que não foram capturadas durante as entrevistas. 1. Gastronomia e turismo A gastronomia pode transformar-se em um importante elemento de produção de espaço e de construção social. Isso se deve ao fato de que se trata de um importante elemento de caracterização cultural de uma localidade, podendo também fazer parte do consumo turístico como mecanismo de contato com a cultura visitada. Nesse contexto, o alimento é o atrativo capaz de estimular sobremaneira a atividade turística. Entende-se, portanto, que o segmento turístico baseado na gastronomia pode ser visto como um desdobramento do turismo cultural, permitindo que visitantes possam conhecer os costumes e modos de viver das pessoas que estão sendo visitadas por meio dos seus alimentos e bebidas. Desta forma, a gastronomia passa a fazer parte da atividade turística, permitindo a aprendizagem de uma cultura local a partir das sensações e das experiências vivenciadas no momento de consumo de algum alimento típico ou regional. Contudo, na maioria das vezes esse aspecto cultural não tem condições de fomentar a atividade de um lugar. Não obstante, pode atribuir valor a visitação, na medida em que estimula o contato dos visitantes com a comunidade visitada (GÂNDARA; MASCARENHAS, 2010, p.375, 377). Sobre isso Schlüter (2003) afirma que a grande compatibilidade entre cultura e gastronomia culminou em uma fusão, na qual a gastronomia foi absorvida pelas complexas políticas de patrimônio cultural. Sendo assim, o uso turístico do patrimônio gastronômico vem ganhando cada vez mais força no que diz respeito a promoção de um destino como forma de chamar atenção de novas demandas. Não obstante a autora afirma que a gastronomia isoladamente poucas vezes consegue ser objeto motivador capaz de provocar o deslocamento de pessoas. 2

Para isso, é necessário que haja um conjunto integrado de atividades das quais a gastronomia possa fazer parte e assim causar mais interesse por parte do visitante. Segundo Cunha, Oliveira & Luz (2009), a gastronomia é uma atividade em que tanto quem a executa quanto quem a observa precisa estar em harmonia. Por isso, não deve ser compreendida apenas como um simples ato de oferecer algum tipo de alimento para o outro, pois a gastronomia é uma prática diária e faz parte da história de quem prepara determinado tipo de alimento. Sendo assim é preciso que a gastronomia seja compreendida como um possível e importante atrativo cultural para o turismo, principalmente quando por meio dela o visitante possa compreender o seu valor. Quando o visitante se envolve com o modo e com as peculiaridades de fazer, tendo a possibilidade de conhecer onde é produzido, a experiência proporciona um aprendizado cultural diferenciado, já que a cultura é necessáriamente variada e dinâmica e seus processos mudam de conteúdo e significado de um lugar para o outro. Segundo Montanari (2008, p. 41 apud CUNHA, OLIVEIRA, LUZ, 2009): a invenção não nasce apenas do luxo e do poder, mas também da necessidade e da pobreza e esse é no fundo, o fascínio da história alimentar: descobrir como os homens, com o trabalho e com a fantasia, procuraram transformar as mordidas da fome e as angústias da penúria em potenciais oportunidades de prazer. Como se nota, o prazer da alimentação reforça mais uma vez sua forte influência para atrair turistas, no intuito de perceber a gastronomia como fonte de cultura, conhecimento, sensibilidade, que se transforma num atrativo turístico cultural. 2. A cultura do acarajé Segundo o inventário do Ofício das Baianas de Acarajé do Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional, a iguaria representa uma comida ritual da orixá Iansã, que na África é chamado de àkàrà (que significa bola de fogo) e je possui o significado de comer. No Brasil foram reunidas as duas palavras numa só, acara-jé, ou seja, comer bola de fogo. Trata-se de uma tradição que é indissociável da cultura do candomblé e da história dos africanos no Brasil. Sua origem é explicada através do mito que trata da relação de Xangô com suas esposas, Oxum e Iansã. 3

O bolinho se tornou uma oferenda a esses orixás. Mesmo quando é vendido num contexto profano, o acarajé ainda é considerado como uma comida sagrada. Por isso, a sua receita, embora não seja secreta, não pode ser modificada e deve ser preparada apenas pelos filhos-de santo. Contudo, na atualidade não acontece bem assim. Conforme salienta Querino (1928, p.31), no início, o feijão fradinho era ralado na pedra, de 50 cm de comprimento por 23 de largura, tendo cerca de 10 cm de altura. A face plana, em vez de lisa, era ligeiramente picada por canteiro, de modo a torná-la porosa ou crespa. Um rolo de forma cilíndrica, impelido para frente e para trás, sobre a pedra, na atitude de quem mói, triturava facilmente o milho, o feijão, o arroz. Conforme salienta o inventário de patrimonialização do IPHAN (2007), o acarajé é feito hoje com feijão-fradinho, que deve ser quebrado em um moinho em pedaços grandes e colocado de molho na água para soltar a casca. Após retirar toda a casca, deve-se passar novamente no moinho para que a massa fique bem fina. A essa massa acrescenta-se cebola ralada e um pouco de sal. O segredo para o acarajé ficar macio é o tempo que se bate a massa. Quando a massa está no ponto, fica com a aparência de espuma. Para fritar, é preciso usar uma panela funda com bastante azeite de dendê ou azeite doce (ilustração 01). Ilustração 01 Acarajé no envelope Autor: Leovaldo Garcia (2011) Normalmente são usadas duas colheres para fritar, ou seja, uma colher para pegar a massa e uma colher de pau para moldar os bolinhos. É preciso que o azeite esteja bem quente antes de 4

colocar o primeiro acarajé para fritar. Quando sua feitura está vinculada ao âmbito religioso, o primeiro acarajé é oferecido a Exu pela primazia que tem no candomblé. Os seguintes são fritos normalmente e ofertados aos orixás para os quais estão sendo feitos. O acarajé também é um prato típico da culinária baiana e um dos principais produtos vendidos nas ruas da cidade, transformando-se em uma referência cultural e turística do estado. Quando produzidos para consumo em geral recebem mais tempero, diferenciando-se de quando são feitos para o orixá. Segundo o IPHAN (2007), a comercialização do acarajé teve início ainda no período da escravidão, com as escravas de ganho que trabalhavam em diversas atividades nas ruas das grandes metrópoles. Uma delas era a venda de quitutes nos tabuleiros. Tal comércio foi responsável não apenas pelo sustento de famílias, mas também pela criação das irmandades religiosas, da criação de laços comunitários/ identitários entre escravos urbanos. Pode-se perceber através do que foi disposto no dossiê que a forma de preparo do acarajé, enquanto comida votiva (oferecida aos santos) e comida laica (comercializada) é praticamente a mesma. A diferença está no modo de ser servido: enquanto comida laica pode ser cortado ao meio e recheado com vatapá, caruru, camarão refogado, pimenta e salada (feita com tomate verde e vermelho mais coentro). O acarajé é similar ao abará. A maior diferença entre os dois é que o acarajé é frito, ao passo que o abará é cozido. Podemos observar pelo dossiê que apesar de ser uma tradição étnica marcante, foi somente a partir da segunda metade do século passado que as baianas foram reconhecidas e valorizadas nacionalmente. Na Bahia, transformaram-se em ícones da cultura soteropolitana, junto a outros aspectos da cultura imaterial em Salvador. Por tal representatividade cultural e identitária, no ano de 2005, o ofício das Baianas de Acarajé foi inscrito no Livro dos Saberes, sendo declarado patrimônio cultural imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). 3. O acarajé em Aracaju e sua relação com o turismo Embora tenha sido em Salvador onde o acarajé mais tenha sido difundido e hoje reconhecido como patrimônio imaterial brasileiro, essa iguaria é comercializada também em outros estados 5

do Nordeste com a finalidade de complementação de renda familiar ou fonte de sobrevivência individual. O próprio dossiê relata tal realidade, quando explica que embora apresente nuances, no Recife também se faz acarajé. Conforme o documento, existem especificidades em cada estado para a comercialização: em Recife, onde têm quase a metade do tamanho do acarajé baiano, com a medida de uma colher das de chá, e leva um pequeno camarão sobre a massa, são vendidos sem molho e consumidos vários de uma só vez; no Maranhão, o tamanho é o de uma colher das de sopa e são vendidos apenas com camarão seco e pimenta; e na Bahia, os acarajés são grandes, com recheio, e têm o formato de uma escumadeira, entre outros estados (IPHAN, 2007, p.24) Como já comentado anteriormente, no princípio, o acarajé estava vinculado essencialmente à tradição religiosa, sendo vendido pelas mulheres iniciadas no candomblé para angariar recursos para fazer o santo. Contudo, o tempo passou e tal iguaria ganhou posição privilegiada, tornando-se parte dos hábitos alimentares das mais variadas classes sociais. Hoje, o consumo crescente deste alimento tradicional tem colaborado com o aumento de sua produção em várias cidades do Nordeste brasileiro, entre elas, Aracaju, resultando no aumento de pessoas interessadas em produzi-lo e vendê-lo. Fato que só colabora para encontrarmos tal iguaria nos mais diversos locais, tais como shopping centers, lanchonetes, restaurantes e ruas dos centros urbanos (ilustração 02). Ilustração 02 Acaraxé Shopping Jardins. Autor: Leovaldo Garcia (2012) 6

Segundo Dona Raimunda, antiga vendedora de acarajé da cidade, foi sua mãe quem apresentou essa iguaria para a população aracajuana na década de 40. Conforme relata: [...] ela foi quem ensinou o povo aqui a comer acarajé [...]. Dona Raimunda afirma que hoje o acarajé em Aracaju não tem tradição, devido a sua banalização. Ela continua dizendo que para fazer o verdadeiro acarajé tem que saber dos segredos intrínsecos dessa iguaria, que só algumas baianas possuem. Tal explicação nos remete ao que Aquino (1916) descreve como ancestralidade do alimento afro, que também está disposto no dossiê do IPHAN (2004), que relaciona essa iguaria diretamente com os santos das religiões afro-brasileiras. Durante a pesquisa de campo, observamos que Dona Bilô, outra vendedora entrevistada, mantém a tradição da venda em tabuleiro, tal qual é relatado no dossiê do IPHAN (2004), vendendo seu acarajé no calçadão do centro histórico de Aracaju (ilustração 03). Ilustração 03 Ponto de venda de Dona Bilô no centro histórico de Aracaju. Autor: Leovaldo Garcia (2010) Dona Edezoíta conta que antes o processo era manual, mas hoje existe até massa pronta. E por isso, há muita gente vendendo, conforme conta: [ ] mas são poucos como eu que põe a mão na massa e faz como nas antigas [...]. Segundo ela, outra coisa que facilitou o processo de feitura foi a utilização de batedeiras, que substituiu o uso excessivo dos braços. E continua falando, em tom de desabafo, que em Aracaju não se dá o devido valor ao oficio de vender 7

acarajé e que se elas usarem o traje de baiana tradicional, como é usado na Bahia, sofrem perseguição e preconceito. Sobre isso ela diz: [ ] nóis somo taxadas de macumbeira [...]. Ela conta que outra forma de desvalorização está presente nos valores pagos pelos aracajuanos em detrimentos dos preços que os mesmos pagam na Bahia. Pois em Salvador paga-se R$ 5,00, enquanto que em Aracaju o acarajé é vendido até por um real e as pessoas ainda reclamam. O meu custa 2,50, conta a entrevistada. Coincidentemente tanto Dona Bilô quanto Dona Edezoíta são baianas, sendo que a primeira já produz o acarajé em Aracaju há 46 anos e a segunda há 38 anos, ambas no calçadão do centro histórico de Aracaju. Independente de suas origens observou-se em suas falas que está implícita a ideia de banalização do modo de fazer o acarajé na capital. Segundo as interlocutoras, tal realidade envolve vários fatores, que vão desde aspectos econômicos, sociais e até a perda do valor simbólico do alimento. Sobre este último aspecto, a observação das mesmas ocorre principalmente em relação ao preparo, que vem se distanciando das formas tradicionais de feitura. Os produtores levantaram algumas outras questões, como por exemplo, a falta de incentivos, divulgação e de uma associação pela qual eles poderiam organizar-se. Em relação ao turismo, um deles reclamou dizendo que possui um ponto de acarajé na Orla, mas que mesmo lá, quem mais consome são os aracajuanos, pois os turistas ficam nos hotéis e desconhecem a existência do referido espaço. Mesmo havendo nos últimos anos um recorrente crescimento de locais de comercialização do acarajé na cidade, o consumo turístico é quase insignificante, conforme foi identificado durante as entrevistas realizadas, pois os principais consumidores continuam sendo os moradores da cidade. Dona Jaíra revelou que sempre atende alguns turistas, os quais regularmente são indicados pelos hotéis e agências de turismo. Há também dona Rita, cuja lanchonete fica no bairro Coroa do Meio, próximo à Orla de Atalaia Velha, que relatou que também recebe alguns poucos turistas, que, em sua maioria, são oriundos da Bahia. Já as vendedoras do centro histórico de Aracaju (calçadão), não souberam informar corretamente, dizendo apenas que às vezes um ou outro aparece procurando por acarajé. Gilvan, gerente do Acaraxé (quiosque localizado no estacionamento do shopping center Jardins), relatou que provavelmente deve atender à turistas, mas não possui tal controle. 8

Apenas julga que tal público possa frequentar o estabelecimento, pois tem um aumento no movimento nos finais de semana. Considerações finais Baseando-se nos relatos, nas discussões teóricas apresentadas, bem como no contexto apresentado nesse trabalho, percebe-se que a comida é um elemento significativo de uma cultura, cuja manutenção depende do contexto socioeconômico e simbólico ao qual está inserida. Diante da pesquisa empírica observamos que mesmo sendo um elemento identitário baiano, o acarajé não está presente apenas nessa cultura, sendo produzido e comercializado em outras cidades nordestinas, como acontece em Aracaju. Por isso, assim como não coube ao dossiê do IPHAN (2004) julgar certo ou errado essa proliferação em outras cidades, não é objetivo desse trabalho fazê-lo. Entretanto, precisamos desenvolver estudos sobre como o ofício das baianas de acarajé vem se desdobrando em distintas realidades sociais, buscando compreender de que maneira tão patrimônio imaterial se coloca diante das transformações que os modos de fazer acarajé vem absorvendo. E de que forma o turismo se faz presente neste contexto. Nesta análise preliminar foi possível perceber a relação entre a cultura do acarajé e o turismo em Aracaju, bem como identificar a percepção dos produtores tradicionais diante das mudanças que vem ocorrendo no processo de feitura e na forma de comercialização do acarajé. Porém, compreendemos que se faz necessário desenvolver outros estudos que contemplem os diálogos que vem ocorrendo entre tradição e modernidade na cidade para compreendermos de que forma tem se dado as mudanças neste âmbito. Referências Bibliográficas BARROCO, L. M. S. A importância da gastronomia como patrimônio cultural no turismo baiano. Revista Turydes, vol 1, n. 2, Mar. 2008. CUNHA, K. B., OLIVEIRA, L. V., LUZ, J. S. A Gastronomia Enquanto Atrativo Turístico-Cultural. Universidade Estadual de Goiás em dezembro de 2009. GÂNDARA, J.M.G., MASCARENHAS, G.T. Produção e transformação territorial: Uma análise da gastronomia como atrativo turístico. IN: Anais; XI Encontro Nacional de Turismo 9

com Base Local: Turismo e Transdisciplinaridade: novos desafios Niterói - RJ 12 a 14 de abril de 2010. IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. (2007). MinC Ministério da Cultura. Dossiê IPHAN 6 Ofício das Baianas de Acarajé. Brasília. QUERINO, M.R. A arte culinária na Bahia. Salvador. Editora Livraria Progresso, 1922. SCHLÜTER, R. Gastronomia e turismo. São Paulo: Aleph, 2003. 10