A IMPORTÂNCIA E DESAFIOS DO ENSINO BILINGÜE NA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA



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A IMPORTÂNCIA E DESAFIOS DO ENSINO BILINGÜE NA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA FERREIRA, Franchys Marizethe N. S. (francys.santana@terra.com.br) UFMS/CPAQ SOUZA, Claudete Cameschi de 1 (cameschi@terra.com.br) UFMS/CPAQ INTRODUÇÃO Vinculada ao projeto de pesquisa Educação Escolar Indígena: língua, raça, cultura e identidade, esta comunicação tem por objetivo analisar o ensino da língua materna e portuguesa na escola da Aldeia Limão Verde, localizada no Município de Aquidauana-MS. Os procedimentos metodológicos incluíram levantamento bibliográfico, observação direta e análise documental. Posteriormente, realizamos uma sondagem in loco das metodologias ao ensinar o idioma materno e sua relação com a língua portuguesa. Como fundamentação teórica utilizamos principalmente os Brasil (1998-RCNEI). Embora parciais, os resultados apontaram dificuldades no processo ensino-aprendizagem tanto por parte dos docentes quanto dos discentes indígenas. A Educação Escolar Indígena Segundo Matos e Monte (2006:72), No Brasil, como no conjunto dos países americanos, a educação escolar foi empregada como um recurso, quase sempre extremamente eficaz, de aniquilação da diversidade. Inúmeras iniciativas de civilização e integração forçada à sociedade nacional foram implementadas pela coroa portuguesa, pelo império e pela república. Mesmo assim, recorrendo a diversas formas de resistência, as sociedades indígenas tentaram domesticar a escola ou, quando isso não era possível, tornaram-se totalmente refratárias a ela. Como se pode inferir do trecho supracitado, a educação escolar surge para os indígenas a partir do primeiro contato com o não-índio. No Brasil, o fato se dá desde o descobrimento, através dos Jesuítas, passando pelo período da Colônia, Império e República. Assim, conforme aponta Grupioni (2006:43), impondo-se por meio de diferentes modelos e formas, cumprindo objetivos e funções diversas, a escola esteve presente ao longo de toda a história de relacionamento dos povos indígenas 1 Professoras do Departamento de Educação da Fundação Universidade federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Aquidauana, MS.

com representantes do poder colonial e, posteriormente, com representantes do Estado-nação. Considerando as observações desses autores, o que se depreende da leitura é que a escola, inicialmente imposta ao indígena, hoje é reivindicada por eles como direito assegurado pela Constituição. De 1500 para cá, é possível perceber que as preocupações com a educação escolar para os índios ganharam contornos mais específicos a partir da década de 1970, momento em que grupos sociais, formados por não-índios, iniciam um processo de assessoria a algumas comunidades indígenas, em busca de um modelo de escola mais respeitoso à diversidade e aos direitos coletivos assegurados mais tarde na Constituição brasileira.(matos; MONTE, 2006, p. 72). Nesse sentido, a Constituição Federal, em 1988, reconhece aos índios o direito à diferença, delegando ao Estado a proteção às manifestações das culturas indígenas e assegurar o uso de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988). Em 1991 foi promulgado o decreto de lei que atribuiu ao Ministério da Educação a coordenação de políticas públicas e ações em prol da educação escolar indígena, em substituição à FUNAI, órgão responsável pelo setor até então no Brasil. Inicia-se, assim, um processo de construção de uma nova política pública para a educação escolar indígena que passa a figurar nos documentos educacionais posteriores, como, por exemplo, na Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional (LDBEN), em 1996; Plano Nacional de Educação, em 1998 e no Referencial Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI), em 1998. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº9394/1996 dedica dois artigos no Título das Disposições Gerais, à questão da educação escolar indígena. O Artigo 78 determina que o Sistema de Ensino da União desenvolva sistemas integrados de ensino e pesquisa para a oferta de educação escolar bilíngüe e intercultural aos povos indígenas, respaldando, implicitamente a criação de um subsistema de ensino voltado exclusivamente para a educação indígena, que poderá estruturar-se de forma completamente diferenciada dos sistemas de ensino dirigidos às populações não-índias. Um dos desdobramentos mais imediatos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDBEN, é a elaboração do Plano Nacional de Educação proposta do executivo ao Congresso Nacional (MEC/INEP, 1998) que traz em seu bojo um capítulo dedicado especificamente à Educação Indígena, estabelecendo as metas nesse campo para os próximos 10 anos, a partir de dezembro de 1997. Outro instrumento legal de nível nacional pertinente neste trabalho é o Programa Nacional de Direitos Humano, instituído pelo Decreto Nº 1904/96. No capítulo Sociedades Indígenas, afirma-se que se deve assegurar às sociedades indígenas uma educação escolar diferenciada, respeitando o seu universo sóciocultural.(decreto Nº 1904/96), como uma ação a ser implantada em curto prazo. Todos esses documentos servem de suporte às normatizações do estado de Mato Grosso do Sul, que seguem as determinações do Ministério da Educação, inclusive em relação à formação de professores indígenas e à organização dos

currículos das escolas indígenas, defendidas e sistematizadas nos Referenciais Curriculares Nacionais para as Escolas Indígenas. Em Aquidauana, a legislação municipal é explícita ao privilegiar a educação intercultural e bilíngüe. Dois instrumentos legais fazem referência direta e essa questão: a Lei Orgânica do Município de Aquidauana, promulgada em 05 de Abril de 1990 e a Lei Municipal Nº 1.700/99, de 19 de Abril de 1999. A Lei Orgânica do Município de Aquidauana, em consonância com o texto constitucional afirma em seu Artigo 212 que O Poder Público Municipal assegurará às comunidades indígenas o ensino fundamental, ministrado em língua portuguesa, garantindo-se-lhes a utilização da língua materna e de processos próprios de aprendizagem. Também encontramos nos Artigos 171 e 172, que o mesmo instrumento legal já dispunha sobre o ensino bilíngüe na Educação Infantil e sobre a inclusão, no currículo, de conteúdos pertinentes à realidade cultural das comunidades indígenas. A Lei Municipal Nº 1.700/99, de 19 de Abril de 1999, institui o Programa de Educação Intercultural Bilíngüe nas Escolas Municipais Indígenas em caráter permanente a partir do ano letivo de 1999. Essa Lei estabelece, entre as várias ações a serem desenvolvidas no Programa, a alfabetização na língua materna com o objetivo de facilitar à criança e ao jovem indígena o acesso pleno à leitura, escrita e ao cálculo na língua nacional a partir do conhecimento da estrutura lingüística da sua língua materna. Destacam-se, ainda, entre as ações previstas no Programa de Educação Intercultural Bilíngüe criado pela Lei em questão, a inclusão do estudo da língua materna nas séries iniciais do Ensino Fundamental, bem como a valorização da arte e cultura Terena em todas as séries do Ensino Fundamental. Observa-se, portanto, que, por meio das novas Leis a escola indígena ganha um novo significado e sentido, como meio de assegurar o acesso a conhecimentos gerais da sociedade nacional sem precisar negar as especificidades culturais e a identidade própria das nações indígenas. Língua Terena X Língua Portuguesa A língua é o mais forte traço cultural que identifica um povo; tudo o que a cultura possui se expressa através da língua. Câmara Jr. (1979) diz que a língua é a expressão em miniatura de toda a cultura de um povo. O autor ainda esclarece que o conhecimento produzido pelo estudo de uma língua indígena contribui decisivamente para a solução de problemas educacionais, uma vez que a língua é a chave que nos permite conhecer todo o universo cultural de um povo. A estrutura da língua que uma pessoa usa geralmente influencia a maneira como ela entende o seu ambiente. Para a Ferreira; Leite e Leite (1999) é essencial a escola como instrumento de preservação da língua como identidade cultural, segundo os autores, o programa de educação intercultural em operacionalização junto aos índios Terena em

Aquidauana-MS, teve início na segunda metade dos anos de 1970 com a chegada das lingüistas Elizabeth Ekdhal e Nancy Butler à região do Distrito de Taunay. Segundo pesquisa dos autores, as duas lingüistas foram pioneiras no estudo da língua materna Terena na região do Município de Aquidauana MS. Ressaltam ainda que após sinais deste movimento o povo Terena começa a valorizar suas origens étnicas, pois a formulação escrita da língua materna contribui para despertar o sentimento de orgulho, ao perceberem que sua própria língua podia ser expressa de forma escrita e que tinha estrutura gramatical, a exemplo da língua portuguesa. (FERREIRA, LEITE e LEITE, 1999, p.34). Embora as pesquisas 2 tenham demonstrado que, a partir de meados de 1999, há uma melhoria qualitativa no processo de ensino-aprendizagem nas escolas indígenas do município de Aquidauana, com a implantação de um projeto bilíngüe Raízes do Saber, nas aldeias onde a língua terena não é a língua mais usada no cotidiano, os problemas insistem em continuar. Procuradas por uma escola municipal indígena, localizada em uma aldeia onde co-existem no uso cotidiano e no processo de ensino-aprendizagem, como disciplinas, as duas línguas: materna e portuguesa iniciamos, a pedido da escola, uma avaliação diagnóstica com 54 crianças das séries iniciais do ensino fundamental, previamente selecionadas pela escola por considerá-las com dificuldades de aprendizagem, necessitando, portanto, segundo a escola, de aulas de reforço para melhorarem os conhecimentos e o domínio da leitura, escrita e matemática. Após a aplicação do diagnóstico, pudemos constatar que, em especial, as crianças de 3ª e 4ª séries, repetentes de séries anteriores e, algumas da mesma série, mais de uma vez, apresentam dificuldades na leitura (soletram, ignoram a pontuação...) e na escrita (troca de letras, segmentação, ausência de pontuação, não escrevem nada ou não é possível decifrar o que escrevem). Diante disso, procuramos entender a estrutura da língua terena, o contexto familiar e social, a formação dos professores, o trabalho pedagógico por eles realizado, uma vez que muitos problemas detectados apresentam-se como característicos, geralmente, de crianças de 1ª e 2ª séries. Com o objetivo de estabelecer o diálogo e convidar o leitor para as indagações que têm nos tirado o sono, selecionamos e transcrevemos abaixo a descrição interpretativa de um diagnóstico aplicado, em 13/06/2006, em uma aluna da 4ª série do ensino fundamental Carmelita 3. Os critérios de escolha desse diagnóstico foram: a) legível; b) apresenta problemas constantes nos demais diagnósticos da 4ª série; c) a aluna cursou: três anos de 1ª, três de 2ª, dois de 3ª e está matriculada na 4ª; d) em casa, os familiares usam a língua terena; e) a aluna 2 A este respeito, ver, em especial FERREIRA, F. M. N. S; LEITE, F.C. T. e LEITE, S. M.F. Projeto Raizes do Saber : uma experiência de educação rural intercultural com índios Terena em Aquidauana MS. 1999. Monografia (Especialização em Didática fundamentos teóricos da prática pedagógica). Faculdade de Educação São Luiz. Jaboticabal, SP. 3 Pseudônimo.

compreende, mas não fala a língua terena; f) o professor é índio, do sexo masculino, fala/escreve a língua terena e é formado em Pedagogia pela UFMS. Vejamos! É fato sabido que a criança chega à escola conhecendo e utilizando, mesmo que somente na modalidade oral, uma variedade lingüística adquirida no contexto familiar, situado numa área geográfica com características culturais e socioeconômicas diferenciadas. Falam, portanto, de jeito diferente, embora o sistema alfabético do português do Brasil seja o mesmo para todos os habitantes. Se nas escolas não-indígenas esse fato é visível, pela heterogeneidade de sua clientela e da própria língua, tal fato não se apresenta de forma diferente na comunidade indígena em questão, onde a língua Terena língua materna não é a mais utilizada pelas crianças. É ensinada em aulas específicas para isso, além do fato de algumas crianças conviverem, no ambiente familiar, com o uso da língua materna pelos pais, avós e outros, situação que pode estar interferindo na escrita dessas crianças. Assim, são comuns determinados desvios na escrita do português, conforme veremos na descrição abaixo. Segundo Butler (1999) os próprios professores indígenas, que falam e escrevem a língua terena possuem grandes dificuldades de entender as distinções fonológicas e gramaticais, que não combinam com a estrutura da língua portuguesa que os indígenas também dominam, e que é, na maioria das vezes, o único modelo estudado e que serve como ponto de referência. Um desses exemplos são os padrões de acentuação, pois várias formas do mesmo verbo se distinguem somente pelo acento na forma escrita, tendo como exemplos: pîho ele vai nîko ele come pího quando ele vai níko quando ele come e pihô ele que vai niko ele que come. A autora ressalta que dificilmente a pessoa que entende a língua oralmente, mas que nunca tenha estudado formalmente os padrões acima apresentados, conseguirá representar a diferença por escrito, isto porque não pensa em termos lingüísticos enquanto fala. Sabe apenas que as palavras têm as mesmas letras e que tem algo diferente na pronúncia que distingue o sentido de cada palavra, mas não sabem o que significa nem como representá-lo na escrita. Constata-se, portanto, que, sem as devidas análises lingüísticas não são capazes de saberem que o acento circunflexo associa-se com o alongamento da vogal na sílaba tônica e com o tom decrescente, enquanto o acento agudo associa-se com a vogal dita com mais rapidez na sílaba tônica e sem o tom decrescente. Vejamos como a aprendizagem se desenvolve na Escola Municipal Pólo Indígena Lutuma Dias, a partir de reflexões sobre a produção escrita dos alunos. A aluna Carmelita tem 15 anos, está matriculada na 4ª série do Ensino Fundamental, é extremamente tímida, cursou três anos de primeira série, três de segunda e dois de terceira e apresenta dificuldades ortográficas acentuadas. O primeiro item do diagnóstico Escreva o alfabeto, em letra de forma maiúscula revela dificuldades em relação à escrita das letras: usa letras de forma e cursiva ao mesmo tempo; usa maiúsculas e minúsculas, quando deveria utilizar apenas a maiúscula, conforme solicitado.

Embora reconheça o alfabeto, algumas letras são grafadas com uma vogal acompanhando: Qu para Q, letra que não existe na língua Terena. Talvez este registro (Qu para Q no alfabeto) esteja diretamente ligado ao fato de que a aluna já tenha a informação de que letra q só aparece, em português, seguida de u, mesmo quando esse u não tem som, na escrita das palavras. Assim, a regra é por ela generalizada e acaba usando a informação também na escrita do alfabeto. Quando solicitada a registrar um pequeno ditado, assim escreveu: Na adedia [...] padame sadavi netrivio comu mudade, banana, madica, Limão, maga, cirabu, feijão, caju, outros Este podutoro comusalia nasidi do monisipio de aquidarana, feras etabe nas Residesia. Traduz-se: Na aldeia [... ] plantamos alimentos saudáveis e nutritivos como: banana, mandioca, limão, manga, quiabo, feijão, caju e outros. Estes produtos são comercializados na sede do município de Aquidauana, em feiras e também nas residências. Tentativa de análise dos resultados Carmelita apresenta: 1. Troca uma letra pela outra, como em padame= plantamos T/D t/d; 2. ignora o encontro consonantal inicial pl; confunde a grafia do morfema gramatical da palavra ame=amos; 3. deixa de escrever palavras intermediárias, como, por exemplo, em: plantamos alimentos saudáveis e nutritivos como banana, mandioca, limão, manga, quiabo, feijão, caju e outros que a aluna escreveu: padame sodovi netrivio comu mudade, banana, madica, Limão, maga, cirabu, feijão, caju, outros. A palavra alimentos não aparece e Carmelita acrescenta uma escrita, após a palavra como que sugere o entendimento de comunidade. Na mesma seqüência, é possível constatar que, exceto em banana, limão e feijão, Carmelita tem dificuldades em representar graficamente a sílaba nasalizada, como em: maga/manga; madica/mandioca. Segundo Durigan (2006), considerando que m e n em final de sílaba não são fonemas, mas apenas símbolos de nasalidade da vogal que os antecede, formando, segundo alguns autores, dígrafos nasais, a criança não os grafa. Outra grafia que chama a atenção é a da palavra cirabu/quiabo, pois em português a letra c tem som de /k/ apenas quando acompanhada das vogais a, o e u. Como se trata de uma aluna Terena, verificou-se a possibilidade de a aluna estar misturando a grafia das línguas: materna e língua portuguesa; constatou-se que, no alfabeto terena, não se usa a letra c e que o som de qu é representado pelo k; afinal é uma língua fonética. Estaria o professor, nas explicações, estabelecendo comparações orais entre duas línguas estruturalmente diferentes e causando confusões cognitivas? 4. Outro aspecto significativo na escrita de Carmelita refere-se ao acréscimo de ra, ri, ro ou, ainda, do r sem vogal em algumas palavras. Isto acontece em substituição a alguma letra ou dígrafo, ou, ainda, quando tem dúvida se falta ou não alguma letra na escrita da palavra: cirabo/quiabo; esfera/escreva;

produtoro/produtos; munisipiro/município; aquidarana/aquidauana; laravo/lavo; ropara/roupa; vasira ou vazira/ vasilha; nara/ na; mira/minha; tira/tia, Residesira/residência, Izarira/Izaias [...]. Entretanto, Carmelita usa corretamente o r em outras palavras como: verdi/verde; netrivio/nutritivo; feras/feiras; Residesira/residência; sobre/sobre [...]. 5.Carmelita está matriculada na 4ª série, é repetente de séries anteriores ( três anos na 1ª; três anos na 2ª e dois anos na 3ª série) e, em alguns momentos, apresenta dificuldades na segmentação das palavras, como, por exemplo, em nasidi/ na sede; etabe/ e também. Em nasidi/na sede, há, conforme Durigan (2006), o desaparecimento da diferença entre e e i, em átomos finais, como em sidi, mas em si de sidi, o que ocorre? Em etabe/ e também, repete a ausência dos símbolos de nasalidade da vogal que antecede. 6.Apesar de a substituição do dígrafo nh por r em mira/ minha, já apontado no item 4 desta descrição, sugerir que Carmelita desconhece o uso do nh, ela escreve, de memória a palavra galinha corretamente. Como se pode observar, há uma certa dificuldade em classificar os desvios de Carmelita, pois, além de demonstrar que conhece o uso do nh, a aluna, que usa o r em diferentes situações (aceitas ou não como corretas), deixa de grafá-lo em outras: podutoro/produtos; pofessor/professor; comesalia/ comercializados [...]; 7.Em adedia/aldeia, deixa de grafar o l após o a inicial e acrescenta o d entre a vogal e a semivogal do ditongo que antecede o hiato final da palavra; em sadavi/saudaveis, suprime o u; suprime também a sílaba ti em netrivio/nutritivo e em tantas outras palavras. São muitos os desvios de Carmelita e alguns difíceis de buscar o entendimento do por quê a aluna escreve assim, mas é possível considerar que as palavras desconhecidas apresentam maiores dificuldades, como, por exemplo, sadavi/saudáveis; netrivio/nutritivo; comesalia/comercializados [...], mas a mesma regra não se aplica para adedia/aldeia; pouco/porco; laravo/lavo [...] que são palavras conhecidas e utilizadas nas diferentes escritas de sala de aula. É possível compreender que Carmelita troca, como tantas outras crianças brasileiras, o fonema t pelo d, quando transcritos para a modalidade escrita da língua, por não conseguir distinguir que um é surdo e outro é sonoro; mas como justificar a troca de cre por fe em escreva? Constata-se, também, que, há a presença marcante do uso da língua na modalidade oral, fato comum na produção de textos das crianças brasileiras, neste nível de ensino, e que os professores, índios ou não-índios, têm conseguido resolver, gradativamente, ainda nas séries do ensino fundamental; mas será que a aluna diz laravo para lavo? Como estas muitas são as dúvidas em relação à escrita de Carmelita. Considerando que o conhecimento e desenvolvimento lingüístico e o desenvolvimento cognitivo estão inter-relacionados e são fundamentais no aprendizado escolar, como agir em relação às crianças indígenas que convivem e aprendem, tanto na modalidade oral quanto na escrita, simultaneamente duas línguas: materna e portuguesa?

Como vencer a timidez e as barreiras culturais de uma jovem como Carmelita que se sente envergonhada e não se comunica com o acadêmico 4, apenas com a acadêmica? Observa-se que o professor da sala é índio. Se considerarmos que na língua terena existem apenas quatro padrões silábicos CV; CVV; V e VV é possível inferir que o aprendizado da língua materna influencia diretamente no aprendizado da língua portuguesa e, provavelmente, vice e versa, como em padame/plantamos, pois pa representa plan, isto é, em terena a sílaba CV ( pa ) representa em português a sílaba CCV ( pla ) acrescida do símbolo de nasalidade. Tal formação de sílaba CCV não existe na língua materna. A mesma inferência se aplica em podutoro/produtos, mas não se aplica na palavra netrivio/nutritivo, na qual a construção silábica CCV, do português, é grafa sem problemas pela aluna. Fato que se repete em sobre/sobre e em outros/outros, por exemplo. Diante do exposto, algumas questões maiores se impõem: estariam as principais causas dessas dificuldades relacionadas à metodologia utilizada em sala de aula, à formação dos professores índios, considerando aqui a proposta de educação escolar indígena intercultural e bilíngüe? Ou, ainda, essas dificuldades podem ser consideradas normais em comunidades que desenvolvem o processo de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita em duas línguas, inicialmente desconhecidas pelas crianças na modalidade escrita, simultaneamente? E no caso específico de Carmelita e de tantas outras Carmelitas que já cursou oito anos nas três primeiras séries do ensino fundamental, quantos anos levará para terminar o ensino fundamental, ou pelo menos para aprender a distinguir a escrita de uma e de outra língua? Terminará Carmelita as séries iniciais do ensino fundamental? Verificamos que é fundamental um curso de formação de professores indígenas que propicie o conhecimento da estrutura ortográfica e gramatical da língua indígena para ser possível um processo de ensino-aprendizagem eficaz, que atenda as reais necessidades da comunidade, uma vez que, o conhecimento só poderá ser possível após o aperfeiçoamento da leitura e escrita pelos educadores indígenas, assim como acontece no processo de construção do conhecimento da estrutura da língua portuguesa. 4 Os trabalhos realizados na comunidade indígena foram propostos da seguinte forma: os estagiários da 3ª e 4ª séries do Curso de Pedagogia, em duplas, desenvolveriam atividades teatrais, leitura, escrita e jogos matemáticos com cada grupo de 10 crianças, organizadas por série, acompanhados dos professores índios e das professoras supervisoras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Centro Gráfico do Estado Federal, 1988.. Ministério da Educação e Desporto. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: Congresso Nacional, 1996.. Presidência da República. Programa Nacional de Direitos Humanos. Brasília: Ministério da Justiça, 1996.. Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. Brasília: MEC, 1998. Butler, Nancy. Perguntas e respostas relacionadas com a formação de professores para salas de alfabetização em Língua Terena. Aquidauana: Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Esporte, 1999. CÂMARA JÚNIOR. J. Mattoso. Introdução às línguas indígenas brasileiras. 3. ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1979. DURIGAN, Marlene. Retextualização: alguns apontamentos. Trechos extraídos de minicurso desenvolvido com acadêmicos do curso de Pedagogia UFMS/CPAQ, 2006. (Digitado/xerocado).. Atividades de (re) textualização e ensino de português. Inter-ação. Paranaíba, v.3, nº 1, p. 21-32, 2004. FERREIRA, F. M. N. S.; LEITE, F. T. ; LEITE, S. M. F. Projeto Raízes do Saber : uma experiência de Educação Rural Intercultural com índios Terena em Aquidauana MS. Monografia (Especialização) Faculdade de Educação São Luiz, Jaboticabal, São Paulo, 1999. GRUPIONI, L. D. B. Contextualizando o campo da formação de professores indígenas no Brasil. IN.. (Org). Formação de professores indígenas: repensando trajetórias. Brasília: MEC/SEC/AD, 2006, p.39-68. MATOS, K.G.; MONTE, N. L. O estado da arte da formação de professores indígenas no Brasil. IN. GRUPIONI, L. D. B. (Org). Formação de professores indígenas: repensando trajetórias. Brasília: MEC/SEC/AD, 2006, p.69-114. MELIÁ, Bartolomeu. Educação Indígena e Alfabetização. São Paulo, Loyola, 1979.