XXIV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA - 2007



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Transcrição:

Associação Nacional de História ANPUH XXIV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA - 2007 Abrigos espíritas para a infância: uma descoberta da infância sob o lema fora da caridade não há salvação Alexandre Ramos de Azevedo Resumo: Quando o juiz de menores do Rio de Janeiro, Saul de Gusmão, deu início em 1940 ao serviço de recenseamento e fiscalização das casas de proteção à infância, constatou que dos 33 estabelecimentos registrados, 27 eram católicos e 6 espíritas. Apesar desse e de outros registros significativos, a atuação dos espíritas no campo da assistência à infância tem sido pouco investigada. Resolvemos, então, empreender uma arqueologia dessas instituições, no intuito de averiguarmos os motivos que levaram os referidos atores sociais a entrarem na longa história da institucionalização da infância. Palavras-chave: infância abrigos espiritismo. Abstract: When the judge Saul de Gusmão of Rio de Janeiro juvenile court gave beginning in 1940 to the census and examination service of child protection instituitions, established that of the 33 registered establishments, 27 were catholics and 6 were spiritists. Despite this and of other significant registers, the performance of the spiritists in the field of children assistance has been little investigated. Then we decide to make the archaeology of these institutions, with the intention to investigate the reasons that had taken the mentioned social actors to enter in the old history of the child institutionalization. Keywords: childhood asylums spiritism. Problematizando o objeto a partir de alguns vestígios Não encontramos muitas referências a nosso objeto de pesquisa na produção dos campos da história da infância e da educação. Mas, desde o início, uma das frentes de trabalho que se apresentaram mais fecundas foi a que nos direcionou para a história das instituições que visaram, segundo modelos bastante comuns no período histórico investigado, proteger a infância: os chamados abrigos ou asilos para órfãos ou crianças abandonadas. Sobre este assunto, descobrimos que: Em 1940, o juiz de menores do Rio de Janeiro Saul de Gusmão (1941 1 ) deu início ao serviço de recenseamento e fiscalização das casas de proteção à infância (p. 59). Com esse fim, o curador de menores inspecionou pessoalmente 54 estabelecimentos, 33 deles registrados no Juízo de Menores. Das instituições registradas, 27 eram católicas e 6 espíritas (RIZZINI, 1995: 267). Mestre em Educação pela UERJ, Técnico em Assuntos Educacionais da Pró-Reitoria de Extensão da UFRJ. 1 Saul de GUSMÃO. Proteção à infância (Relatório do Juiz de Menores do Distrito Federal 1940). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1941 (cf. RIZZINI, 1995: 267).

2 A história desses asilos ou abrigos espíritas nos pareceu bastante viável e promissora, até porque grande parte deles continua em funcionamento até os dias de hoje. A delimitação do nosso objeto de pesquisa, contudo, se deveu em muito às fontes documentais que fomos incorporando no decorrer do processo, principalmente as de caráter serial, como a revista Reformador, órgão da Federação Espírita Brasileira (FEB) fundado em 1883. Elas nos permitiram buscar respostas para algumas dúvidas ou questões que surgiram na etapa da pesquisa exploratória. Entretanto, o presente texto não pretende dar conta de toda a pesquisa realizada. Nos restringiremos aqui à investigação sobre a motivação ou o porquê do surgimento dessas instituições no Brasil. Enfim, procuraremos verificar como aconteceu essa descoberta da infância pelos espíritas, através de práticas específicas institucionalizadas sob a égide da caridade. Da caridade às obras de caridade Tivemos acesso, ainda, ao depoimento de um espírita português que esteve em visita ao Brasil no ano de 1955 em busca de imagens vivas que refletissem as obras monumentais, que se impõem a gregos e troianos, na terra augusta do cruzeiro (SANTOS, 1960b: 7). Isidoro Duarte Santos, que dirigia a revista Estudos Psíquicos, de Lisboa, deixou suas impressões registradas em volumes publicados sob o título O Espiritismo no Brasil (ecos de uma viagem). Nesses volumes verificamos que o viajante vai a muitos centros espíritas. Porém, grande parte do tempo é dedicada a visitar um tipo de instituição espírita bem específico. Eram casas destinadas à assistência, dentre as quais destacavam-se inúmeros abrigos para crianças, localizados em diferentes cidades dos Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Por outro lado, desde 1927 encontramos outro senhor, de nome João Torres, escrevendo uma série de artigos na imprensa espírita, intitulados As obras da caridade espírita, demonstrando a existência de um número razoável de instituições daquele tipo. O que essa série de artigos nos apresenta de bastante significativo é o conhecimento de que, naquela ocasião, os espíritas já faziam um inventário de suas obras assistenciais. A chave inicial para compreendermos o orgulho espírita em relação à suas obras sociais, veio através de Marcelo Ayres Camurça, o primeiro que encontramos levantar a tese de que os espíritas tiveram na constituição de obras filantrópicas um importante instrumento

3 de afirmação de sua identidade religiosa e de legitimação. Assim, o exercício da caridade logrou assegurar reconhecimento e popularidade para o movimento que se traduz no número considerável de instituições kardecistas na cidade e na alta freqüência a elas (CAMURÇA, 1997: 154). Entretanto, quando perguntamos a qualquer espírita sobre o porquê dessas instituições, eles recordarão do lema Fora da caridade não há salvação adotado desde os primórdios do Espiritismo na França. Entretanto, contrariando um pouco a simplicidade desta afirmação, encontramos na Revista Espírita 2 de julho de 1866 uma mensagem atribuída a certo Espírito, contendo a defesa de que os espíritas deveriam fazer como os católicos, contribuindo com alguns centavos por semana e capitalizando esses recursos, de modo a chegarem a fundações sérias, grandes e verdadeiramente eficazes. Até porque, uma iniciativa assim além de promover o bem se constituiria em um monumento do valor moral do Espiritismo, tão caluniado, hoje e ainda por muito tempo, encarniçadamente (KARDEC, 2004: 261-3). Voltando ao Brasil da década de 1950, podemos dizer que muitos olhares se voltam para a ação social desenvolvida pelos espíritas brasileiros. De um lado, existia a Igreja procurando defender o seu rebanho. Nesta direção, alguns opúsculos foram publicados recomendando a interdição de qualquer ajuda ao espiritismo, inclusive aos asilos, creches, maternidades, hospitais, albergues noturnos, etc., enfim, a tudo o era feito em nome da caridade pelos espíritas, mas que não passava de propaganda da doutrina espírita, que acaba sendo sustentada por contribuições que eram arrecadadas através de petitórios, subscrições, festas populares etc. (...) entre os próprios católicos (FREI BOAVENTURA, 1954: 27). Por outro lado, os espíritas, em muito lugares, tornam-se parceiros do poder público. Isidoro, ao passar pela cidade de Cachoeira Paulista, no Estado de São Paulo, narra que o Albergue Noturno fornece café e banhos e mantém-se em perfeita ligação com o Delegado Policial (...) As autoridades estão em ligação com o Espiritismo na luta contra a indigência, o maior cancro social! Matar a Doutrina seria flagelar a comunidade (SANTOS, 1960a: 209-10). Mais adiante, há a confirmação do recebimento, pelas obras sociais espíritas daquela cidade, de subvenções públicas. Em 1955 a subvenção federal foi de 2.000 cruzeiros; a estadual de 10.000 e a municipal de 1.000. Além disso, graças a outras 2 Sobre a Revista Espírita podemos dizer que se trata da primeira revista dedicada ao Espiritismo e que cumpre o papel de articular o movimento espírita nascente. Esta foi dirigida por Allan Kardec aquele que é considerado o codificador da doutrina espírita desde a fundação daquela revista, em janeiro de 1858, até a desencarnação dele em março de 1869.

4 diligências, houve subvenção federal extraordinária de 95.000 cruzeiros que permitiu a ampliação das obras (SANTOS, 1960a: 210). Os próprios espíritas tomam conhecimento das instituições que vinham sendo fundadas, o que para eles passa a ser motivo de orgulho e, porque não dizer, de afirmação da identidade, pois a identidade se constrói em torno de elementos de positividade, que agreguem as pessoas em torno de atributos e características valorizados, que rendam reconhecimento social a seus detentores. Assumir uma identidade implica encontrar gratificação com esse endosso (PESAVENTO, 2004: 91). Acreditamos, com isso, que além de movidos, sem dúvida, pelo lema Fora da caridade não há salvação, os espíritas tiveram efetivamente consciência do importante papel desempenhado pelos monumentos da fé que erigiram. Era um atestado necessário de suas boas intenções cristãs, que os ajudou a enfrentar com muita desenvoltura a hostilidade diante da qual se sentiram vitimados. Tais evidências foram confirmadas nas investidas às fontes seriais referidas, conforme passaremos a expor. A descoberta da infância pelos discursos e práticas espíritas Leopoldo Cirne foi presidente da FEB de 1900 a 1913. Nesse cargo, ele estava à frente não apenas da instituição que se tornava a principal articuladora do movimento espírita brasileiro, mas também da revista que teve fundamental importância na organização daquele movimento. Um marco deste período foi o ano de 1904, que trouxe novidades significativas no que se refere à ação social dos espíritas. Assim, por ocasião das festas comemorativas do centenário de nascimento de Allan Kardec, um documento intitulado Bases da Organização Espírita foi discutido e aprovado por delegados que representavam os espíritas de diversas partes do país. Esse documento já continha, dentre outras, a recomendação de se instituir por toda parte cursos gratuitos de instrução elementar ou secundária, com uma parte destinada ao ensino da moral ou filosofia espírita (Reformador de 15 de novembro de 1904). Tendo consultado o Reformador desde 1883, podemos dizer que antes das Bases não existiram ou pelo menos não eram noticiadas iniciativas no campo da educação escolar como aquelas que passamos a encontrar dali em diante. Quanto aos abrigos, que não haviam sido mencionados naquele documento, começarão a referidos como parte de um projeto futuro: Para já não falar da fundação de asilos e hospitais, que, por sua natureza complexa e dispendiosa, exigindo a multiplicidade de um concurso com que por ora não seria

5 lícito contarem as agremiações espíritas, em geral de formação mais ou menos recente, deixamos propositalmente de incluir nas Bases. Realmente, os asilos somente surgirão alguns anos mais tarde. Mas as escolas começaram a proliferar quase que imediatamente, basicamente nas sedes das próprias instituições espíritas. É interessante notar que a intenção de criar escolas surge quase ao mesmo tempo, mas com maior ímpeto do que a de instituir abrigos ou asilos. Entretanto, são estes últimos que mais tarde ganharão relevo. A obra espírita em gestação e sua função O clima religioso era de conflito permanente. Não poucas vezes vimos referências à suposta invasão dos padres estrangeiros para combaterem o avanço do Espiritismo no Brasil. No Reformador de 31 de março de 1910, é apresentada sob o título Espíritas, a postos!, a transcrição de um artigo publicado na Revista Internacional do Espiritualismo Científico, de Paris. O artigo trazia o seguinte alerta: Roma resolveu combater, por todos os meios, o Espiritismo no Brasil. Ultimamente, há uma coisa de meses, voltou do Brasil um jesuíta dos mais influentes, que visitara, em missão especial do Papa Negro, a República Brasileira e que estudara, sur place, os meios mais eficazes de dar combate ao Espiritismo. Um relatório em regra foi apresentado ao Geral dos Jesuítas pelo emissário em questão, que no Brasil teve conferências com os mais altos dignatários eclesiásticos e com personalidades católicas influentes na política, sendo assentado todo um plano de campanha a dar aos nossos confrades brasileiros. Verdadeira ou não, essa informação circulou e povoou o imaginário dos espíritas. Logo, a ação social espírita adquiriu uma feição de luta por sobrevivência, por espaço e também por hegemonia de projeto social. Nesta luta, vemos a caridade assumir a função de escudo. Diante da situação apresentada, como os espíritas deveriam se comportar? A pergunta formulada é respondida por Cirne: Como? Atacando os representantes dessa religião que morre, porque já fez o seu papel na história e tem que fatalmente ceder à lei da finalidade, pois que não quer evoluir? Não, que não é de demolição, nem de invectivas, nem de ódios, mas de amor o nosso ministério. O que cumpre é organizar sistematicamente, de norte a sul, a propaganda espírita ( ). Há ainda uma obra, por assim dizer preparatória ou, se o quiserem, paralela dessa outra e da máxima eficácia: é de um lado criar as aulas de instrução primária, em que o indivíduo, aprendendo a ler, se habilite a compulsar os livros e jornais espíritas e neles abeberar de luz a inteligência e de pureza o coração, e de outro lado instituir os serviços de curas, com o auxílio dos espíritos, e os de assistência de toda ordem aos necessitados, aos detentos, à infância abandonada e aos desvalidos na velhice.

6 da caridade: Em seguida, o presidente da Federação esclarecerá, sobre o porquê do escudo Diante dessa complexa obra humanitária, hão de todas as agressões emudecer. Poderá o clero ele, sim, nosso irreconciliável inimigo bradar que somos obreiros de Satanaz, para indispor contra nós as timoratas multidões. Os benefícios reais, objetivos, com que demonstrarmos ao coração do povo a excelência da doutrina espírita falarão mais alto que todas as injúrias. Será a identidade cristã o escudo que os espíritas assumiram para sustentar qualquer embate, coletivo ou individual. Era uma luta tanto de defesa quanto de afirmação. De defesa porque se sentiam ameaçados; mas, principalmente, de afirmação porque mesmo sendo minoria havia uma intenção de ganhar terreno, de se expandir. O nascimento dos abrigos espíritas para a infância no Brasil Leopoldo Cirne deixara a presidência da FEB em 1913 sem ter conseguido ver florescer as obras duradouras com as quais sonhara. Após alguns anos, no entanto, é noticiado o aparecimento da primeira delas o Abrigo Thereza de Jesus no Reformador de 16 de julho de 1919:... o Grupo Espírita Cultivadores da Verdade acaba de fundar um asilo para a infância desamparada, que sem pão, sem lar, sem proteção, e na sua inconsciência é arrastada aos piores vícios e à prática de atos que deprimem, mercê da freqüência e permanência numa escola de crimes e de miséria. O espetáculo triste, doloroso e compungente que se observa nas ruas e praças desta cidade, como de outros centros, de crianças que são aproveitadas para as piores profissões, não é mais do que o resultado do abandono a que são atiradas. Maltrapilhas, esqueléticas, de fisionomia macilenta tisnada pela necessidade, estigmatizadas pela dor e pela opressão, vão esses pobrezinhos pondo em prática as lições dos seus miseráveis professores. Para apresentação de um abrigo espírita, o discurso de Martins de Oliveira demonstra bem a época em que foi produzido. Usa o linguajar comum do momento histórico, referindo-se à infância desamparada e não diferindo em muito do próprio pensamento laico ou filantrópico da ocasião. Os asilos espíritas também são, portanto, filhos do seu tempo, e dessa forma devem ser analisados. Contudo, para além dos problemas sociais cujos diagnósticos e soluções refletiam um certo consenso social, encontraremos no Reformador de 16 de novembro de 1919 com a outra face da realidade que os espíritas enfrentavam: Aos Diretores desta Instituição de Caridade, damos sinceros parabéns pelo preconício que, da benemerência dos seus esforços acaba de fazer a Câmara Eclesiástica do Arcebispado, recomendando-o à má vontade dos católicos, aos quais, (sic) é vedado concorrer com donativos para propaganda dessa instituição.

7 Estamos acompanhando, então, o conflituoso parto do primeiro asilo espírita dedicado a crianças. Sua inauguração, finalmente, aparece noticiada no Reformador do dia 1º de novembro de 1920. Uma crônica a respeito do fato traz a seguinte narrativa: Às cinco horas foi aberta a sessão, servindo de presidente de honra o representante do Presidente da República, que tinha a seu lado o do Prefeito do Distrito Federal. O presidente do Abrigo, o querido propagandista, irmão Ignácio Bittencourt, em ligeiro preâmbulo, agradeceu a presença dos representantes das autoridades federais e municipais, dando a palavra em seguida ao orador oficial, Leopoldo Cirne (...). Foi muito breve como convinha ao momento. Verificamos que Leopoldo Cirne estava presente naquela inauguração. Talvez para presenciar a realização de um dos itens de seu Programa. Foi o orador oficial da festa. Uma homenagem quem sabe? pela combatividade em prol da obra espírita, que finalmente começava a se concretizar. Outra presença que merece comentário é a dos representantes do poder público, que prenuncia a colaboração entre os espíritas e o Estado brasileiro, em diferentes níveis. Não que estes tenham se transformado em parceiros exclusivos e inseparáveis, deslocando a Igreja de sua posição destacada no campo da assistência social pública e privada. Entretanto, são evidências de que a estreita união entre Igreja e Estado, característica do padroado vigente até o fim do Império, já vinha se enfraquecendo desde o advento da República. Conclusão As práticas espíritas de assistência à infância no Brasil estiveram presentes desde o início do século XX. Nelas verificamos o investimento de sujeitos sociais que procuraram deixar sua marca numa sociedade com graves problemas sociais, dentre os quais a vulnerabilidade da infância. Dedicarmo-nos à pesquisa dessas práticas é irmos um pouco além da disputa ou dicotomia entre os elementos religioso e laico na implementação de políticas públicas e privadas de assistência social. Além disso, sociedade e Estado não eram nem homogêneos nem dissociados um do outro. Logo, a história da infância e de sua proteção deve considerar as tensões e a diversidade de relações entre o religioso e o laico; o público e o privado; bem como a sociedade civil e o Estado. Não chegamos a esquadrinhar por dentro as instituições a que nos referimos, mas alcançamos alguma compreensão sobre aspectos importantes relativos a difusão das mesmas, bem como de certa organização e unificação promovida por intermédio de instituições e de meios de comunicação que cumpriram razoavelmente o seu papel articulador. Neste sentido,

8 percebemos a importância da Federação, do Reformador e, em especial, de Leopoldo Cirne, personagem que entra na cena histórica para mobilizar ou catalisar os esforços individuais e coletivos, transformando idéias distantes no tempo e no espaço em práticas enraizadas histórica, social e culturalmente. Assim é que do lema Fora da caridade não há salvação desembocaram nas obras da caridade espírita. Caridade e abrigos para a infância fizeram parte, sim, das disputas hegemônicas no campo social e cultural, mas também integraram o consenso e as parcerias construídas com vistas a superar os problemas da infância brasileira. Referências bibliográficas: CAMURÇA, Marcelo Ayres. Fora da Caridade não há Religião! Breve história da competição religiosa entre catolicismo e espiritismo kardecista e de suas obras sociais na cidade de Juiz de Fora: 1900-1960. In: LOCUS: revista de história. Vol. 7, nº. 1. Juiz de Fora: Núcleo de História Regional/Departamento de História/Arquivo Histórico/EDUFJF, 2001. Pp. 131-54. FREI BOAVENTURA, O. F. M. Material para instruções sobre a heresia espírita. Petrópolis: Editora Vozes, 1954. KARDEC, Allan. Revista espírita: jornal de estudos psicológicos: Ano nono 1866. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2004. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. RIZZINI, Irmã. Meninos desvalidos e menores transviados: a trajetória da assistência pública até a Era Vargas. In: PILOTTI, Francisco & RIZZINI, Irene (orgs.). A arte de governar crianças. Rio de Janeiro: Instituto Interamericano Del Nino, Editora Universitária Santa Úrsula, Amais Livraria e Editora, 1995. Pp. 243-98. SANTOS, Isidoro Duarte. O espiritismo no Brasil (ecos de uma viagem). vol. 1. Rio de Janeiro: J. Ozon Editor, 1960a.. O espiritismo no Brasil (ecos de uma viagem). Vol. 2. Rio de Janeiro: J. Ozon Editor, 1960b.