ARQUITETURA E ORDENS TERCEIRAS UMA ANÁLISE DAS IGREJAS DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS E DE NOSSA SENHORA DO CARMO



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Transcrição:

ARQUITETURA E ORDENS TERCEIRAS UMA ANÁLISE DAS IGREJAS DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS E DE NOSSA SENHORA DO CARMO Natalia Casagrande Salvador* Resumo: As igrejas de São Francisco de Assis e de Nossa Senhora do Carmo, de Mariana, foram construídas na segunda metade do século XVIII, na mesma praça, e pelas duas irmandades mais proeminentes da sociedade mineradora. Apesar das condições semelhantes, ao analisar as fachadas dessas duas igrejas percebemos diferenças arquitetônicas consideráveis empregadas por cada Ordem Terceira. Sabendo que as irmandades estavam constantemente em litígio umas com as outras por uma posição de destaque, percebemos a construção dessas duas igrejas como um fenômeno entrelaçado. A partir dessa análise surge uma proposta de estudo comparativo entre as duas fachadas visando elucidar os estilos de representações de poder adotado por cada uma delas. Palavras-chave: Arquitetura religiosa, arquitetura colonial, igrejas mineiras. Introdução A segunda metade do século XVIII se caracteriza por ser uma fase de intensa produção artística na capitania de Minas Gerais. Produção esta que é quase inteiramente voltada para fins religiosos. No momento auge de surgimento e implantação das diversas irmandades leigas, são criadas em Mariana as Ordens Terceiras de Nossa Senhora do Carmo (15 de maio de 1751) e de São Francisco de Assis (15 de novembro de 1757) 1. Primeiramente abrigadas em igrejas de outras irmandades, elas logo trataram de encomendar a construção de templo próprio. Esse processo de criação da ordem, instalação em capela provisória e posterior construção do templo não difere do caminho percorrido por várias outras igrejas da região. Porém, as ordens carmelita e franciscana acabam por entrelaçar sua história, uma com a outra, ao escolherem o mesmo espaço para lançamento de sua pedra fundamental: a Praça Minas Gerais. *graduanda em história pela Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: nati_salvador@terra.com.br 1 TRINDADE, 1945. 1

Curioso que seja o fato, nenhum pesquisador parece ter explorado tal peculiaridade até o presente momento. Pode-se notar que logo que a arte colonial começou a ser estudada, durante o período de sua revalorização (a partir movimento modernista), além de estudos mais gerais sobre arquitetura e arte colonial, os casos específicos pesquisados eram aqueles dos grandes mestres e monumentos. Percebe-se na historiografia desse período a tentativa de criação de uma identidade nacional através da exaltação de alguns ícones: Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (para escultura e arquitetura) e Manuel da Costa Ataíde (para pintura), por exemplo. Para tanto, procurou-se delimitar e exaltar uma arte que teria surgido a partir de características genuinamente brasileiras. Hoje percebemos que esse direcionamento foi condicionado pelos propósitos do movimento modernista e da ideologia propagada por eles e era, portanto, inevitavelmente tendencioso. De qualquer forma, graças aos estudos realizados principalmente a partir da metade do século XX, temos uma farta produção bibliográfica, muitas vezes baseada em análise sistemática das fontes primárias, que analisada com uma visão crítica pode nos auxiliar no desenvolvimento das pesquisas atuais em história da arte colonial. Já nos últimos anos, dentro do meio acadêmico, vem ocorrendo uma nova retomada da história da arte colonial possibilitando a revisão de teorias clássicas, e a elucidação de certos aspectos que não haviam sido levados em conta até então. Rodrigo Bastos, em sua tese de doutorado 2, propõe a historicização da produção arquitetônica, através do resgate de conceitos encontrados em tratados de arquitetura do período. E André Tavares levanta a necessidade de observarmos a construção das igrejas em estreita relação com a topografia do local e o traçado urbanístico que resultou num efeito plástico característico. O professor André Dângelo empreendeu há pouco tempo uma extensa pesquisa sobre a produção arquitetônica mineira no período colonial, defendendo a circularidade cultural como traço marcante dessa produção. Além dessas, algumas pesquisas esparsas vem deslocando atenção para os monumentos menos afamados às vezes de artistas anônimos, o que leva a concluir que está ocorrendo uma renovação da historiografia consciente da necessidade de ampliar a abrangência dos estudos nessa área e iluminar objetos que até o momento permaneceram nas sombras dos grandes 2 BASTOS, Rodrigo Almeida. A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais, (1711-1822). 2009. Tese (doutorado em Arquitetura e Urbanismo) Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2

ícones do modernismo brasileiro. Diante desse contexto historiográfico, este artigo propõe o levantamento de algumas questões concernentes à aparência das fachadas das igrejas analisadas em paralelo à relação tensa que se estabeleceu entre as duas Ordens Terceiras. Obtemos através dessa breve explanação historiográfica, um arcabouço importante para a construção da hipótese apresentada nesse artigo. Através da utilização dos dados coletados e da produção bibliográfica dos pesquisadores da fase heróica do IPHAN e dos novos estudos e pesquisas que vem sendo desenvolvidos atualmente, propomos a realização de um estudo comparativo entre igrejas das Ordens Terceiras de Nossa Senhora do Carmo e de São Francisco de Assis. Buscando, dessa forma, compreender o processo de construção de ambas as igrejas e perceber as relações que as irmandades tiveram durante esse processo, para delimitar quais seriam as possíveis influências no estilo adotado por cada uma delas em suas fachadas. Tendo sempre em vista que essas obras denotavam um papel retórico importante dentro da sociedade colonial: o de evidenciar o poder da irmandade, perante uma sociedade que se organizava através de agremiações religiosas que, não raro, mantinham uma relação de rivalidade entre si. Começando com o levantamento documental realizado pelo Cônego Raimundo Trindade, podemos reconstruir a história do surgimento das duas Ordens Terceiras em Mariana. Sabendo que as irmandades eram as responsáveis pela realização da maioria dos eventos religiosos e sociais, traçou-se um vínculo estreito entre a população e essas associações leigas, de forma que todos os habitantes das minas faziam parte de alguma. Constata-se que os irmãos carmelitas e franciscanos de Mariana, antiga Vila do Carmo, professavam nas irmandades de Vila Rica, até que na década de 50 do setecentos foi deliberado por Roma a criação das duas Ordens Terceiras na cidade de Mariana. Primeiro a Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, que recebeu deliberação em 1751, seis anos depois a de São Francisco de Assis. Esse era um período de maior estabilidade nas minas, distante já da instável fase de assentamento da população, no começo do século XVIII. Mariana havia recentemente sido elevada à cidade, portanto um projeto urbanístico estava sendo posto em prática para tornar a cidade uma sede digna de um arcebispado, como descreve André Tavares: [...] Mariana surgiu como um núcleo pouco organizado, e, somente após uma enchente que acabou por destruir a maior parte das edificações da vila é que esta ganhou o seu traçado reticulado. Um outro sítio, mais seguro, 3

adequado e elevado foi escolhido para a construção da nova cidade (PEREIRA, 2000, p.94) Acompanhando os projetos de urbanização, a elite da sociedade se estabeleceu próxima à praça central e aos principais monumentos de poder, que mudaram para sítio mais elevado, longe do risco de alagamento por enchente, compondo uma região de prestígio. Poucos metros acima, muito próximo da Praça da Sé se localizava a Praça nova, onde a Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, Em mesa de 29 de maio de 1759 resolveu-se que se comprassem uns chãos que estão na Praça nova desta cidade, pertencentes ao Dr. Francisco Xavier dos Santos para nelles se fazer a capela em que esta venerável Ordem se estabeleça. (TRINDADE, 1945, p.168) Ação que foi logo imitada pelos irmãos franciscanos Em 1761, reconhecendo a Ordem que já era tempo de possuir sua própria igreja, decidiu erigi-la [... no] lugar em que se acha o Palácio Velho (TRINDADE, 1945, p.174), diante justamente da Praça nova. O motivo da escolha do mesmo local pela irmandade dos franciscanos é intrigante, mas também é certo que havia todo um prestígio social decorrente da localização, principalmente após a construção da Casa de Câmara e Cadeia (que havia determinado se instalar na Rua Nova no ano de 1747). Aventamos para a hipótese de que a Ordem Terceira de São Francisco de Assis tenha comprado as terras na mesma Praça que a irmandade do Carmo no intuito de garantir uma boa localização. Tendo em vista que a escolha do local não era a única condição de prestígio das igrejas: Rivalizam as sedes de suas irmandades pelas situações privilegiadas, pelas proporções maiores, pelo maior labor artístico. Apresentam-se, em geral, soltas de outras construções, exibindo toda sua plástica barroca. (MARX, 1980, p.93-94) No caso a situação privilegiada é a mesma, mas as proporções em que foram construídas as igrejas e o labor artístico que Murillo Marx cita é notavelmente diferente para as duas igrejas. Pensando o processo de construção das igrejas, somos incitados a questionar porque essas duas igrejas, construídas por duas ordens tão proeminentes dentro da sociedade, apresentariam gostos arquitetônicos tão diferentes em toda sua composição. Observando as 4

fachadas, percebemos que a igreja São Francisco de Assis tem traços lineares e bem definidos. As pilastras verticais e a multiplicidade de portas-sacada realça a impressão de simetria e inércia. As torres de base quadrada reforçam a linearidade. O frontão se limita a curvas brandas e mesmo o óculo tem formato angular. Toda a rigidez desse monumento recorda a arquitetura das matrizes e da arquitetura do início do século XVIII 3. Demonstra através do risco a escolha de um estilo mais clássico que não distanciava muito da arquitetura já estabelecida na região. Alguns detalhes apenas fogem ao estilo geral desta igreja. Os elementos mais leves e ornamentados são o medalhão e a portada, sobre isso Myriam Ribeiro escreve: A portada de São Francisco de Mariana sem dúvida posterior a 1783 é uma obra de desenho original e grande finura de execução. A composição é, entretanto, rigidamente dividida por uma moldura, sugerindo acréscimo da parte superior (OLIVEIRA, 2003, p. 237) grifo nosso. Ou seja, a parte que menos se assemelha ao resto do prédio, pode ter sido acrescentada posteriormente, talvez -segundo a proposição deste estudo- como reação a aparência da igreja vizinha, muito mais ornamentada externamente. A igreja Nossa Senhora do Carmo, diferentemente, tem traços mais curvilíneos e interligados. Existe uma harmonia entre o frontão, o óculo, as torres. Apesar da dimensão menor, ela conquista o expectador através da graciosidade de seus contornos. A obra de pedra desta igreja iniciou-se em 1784. Ressaltamos a data, já que no ano anterior, a igreja franciscana sofreu uma reforma que alterou seu risco original, e inclusive determinou o formato de sua portada. Levando-se em conta que antes de iniciada uma obra o seu risco era posto a público, talvez possamos (embora seja necessário desenvolver mais a pesquisa) presumir que houvesse uma influência mútua entre ambos. Para compreender o ambiente de representação simbólica elegido através do estilo arquitetônico utilizado é necessário perceber o contexto social da época, de pertencimento e identificação com as irmandades, principalmente ao se tratar das Ordens Terceiras, que eram as associações mais importantes. Ser membro de uma ordem terceira significava ter acesso ao interior da nata da sociedade, significava status (BOSCHI, 1986, p.20) 3 O que nos faz repensar a noção de progresso na arquitetura, diferentemente das fases de evolução artística concebidas pelos modernistas: nascimento, amadurecimento, apogeu e decadência. 5

Sabemos que a repercussão que as irmandades tinham naquela região não era apenas no campo religioso, mas, sobretudo, no campo sócio-cultural, ou seja, ser membro de determinada irmandade denotava o lugar de poder do agremiado, principalmente ao tratar de sociedades com um fluxo populacional bastante diversificado. A respeito das Ordens Terciras de São Francisco de Assis e de Nossa Senhora do Carmo, Fritz Teixeira Salles explana: estas duas grandes ordens alimentavam pronunciada rivalidade uma contra a outra, lembrando não raro, uma espécie de concorrência ou emulação entre dois clubes ou associações em determinado meio social. Essa rivalidade influiu, como se sabe, na grandeza de nossa arquitetura religiosa tradicional, pois a construção de uma igreja despertava na outra ordem o interesse de realizar outro templo mais belo. (SALLES, 1963, p.68) Constrói-se, portanto, uma relação arraigada entre as irmandades e seus templos - sedes de representação simbólica. A necessidade de espelhar em sua igreja o poderio da irmandade é denunciada pela capacidade de reunião de recursos através de um esforço coletivo realizado pelos agremiados na construção de suas sedes. E devemos considerar que a disputa entre elas não eram simplesmente encarnada por duas associações rivais dentro da sociedade colonial mineira, mas pelas duas irmandades mais proeminentes, compostas pelos estratos mais elevados daquela sociedade. Segundo Germain Bazin: as [confrarias] mais aristocráticas foram as Ordens Terceiras carmelitas e franciscanas (1956, p.31). Ambas tinham uma projeção considerável em meio à sociedade, sendo sobrepujadas apenas pela irmandade do Santíssimo Sacramento, que era comumente sede da Matriz. Essas Ordens Terceiras eram, portanto, Dois grupos ou duas alas, do mesmo nível social, [que] disputam, encarniçadamente, o seu destaque nas manifestações da vida social e religiosa de então. (SALLES, 1963, p.107). Viviam em constante litígio, cada qual buscando sempre uma posição de destaque, superior a outra. Fritz Teixeira Salles ressalta que a característica dos litígios entre a Ordem Terceira do Carmo e de São Francisco são de ordem externa às mesmas, pois suas grande rivalidade originara-se precisamente do fato de possuirem a mesma origem social (1963, p.106). A pesquisa apresentada neste artigo, que ainda está sendo desenvolvida, propõe que essas disputas por maior destaque social abrangiam todas as dimensões das irmandades, sendo verificaveis também no plano simbólico. O objetivo de nosso estudo é justamente encontrar 6

elementos dessas disputas nas fachadas das Igrejas de São Francisco de Assis e de Nossa Senhora do Carmo ao fazermos uma análise comparada das mesmas. Dentro do campo de tensão entre as irmandades, nossa hipótese consiste em apontar as composições arquitetônicas apreendidas pelas igrejas de São Franciso de Assis e de Nossa Senhora do Carmos, como lugares de representação das especificidades de cada irmandade, que, conscientemente buscaram se diferenciar não apenas no campo simbólico, mas também no campo do estilo. Tais especifidades, denotam que além de serem assimiladas dentro de uma mesma temporalidade histórica (indo contra, portanto, à idéia de fases na produção artístico-arquitetônico na Colônia) foram arraigadas também sob o signo de rivalidade sociocultural. Conclusão Uma igreja, uma praça; regra geral nas nossas povoações antigas. Os templos, seculares ou regulares, raramente eram sobrepujados em importância por qualquer outro edifício, nas freguesias ou nas maiores vilas. (MARX, 1980, p.54) Nosso caso foge a regra, apresentando duas igrejas em uma mesma praça. Contexto no qual procuramos perceber o desenvolvimento arquitetônico e ornamental das igrejas não apenas como exemplos de engenhosidades, mas, sobretudo, como campo de demonstração de poder, exarcebado principalmente na decoração das fachadas, onde a suntuosidade das composições se mostra fundamental no campo da simbólica e no campo do gosto arquitetônico. Vemos configurar-se, portanto, um cenário de disputa em busca da consolidação da supremacia de cada Ordem por meio de seus templos, mais significativamente expressa em suas fachadas. 7

Bibliografia: BAZIN, Germain. Arquitetura religiosa barroca no Brasil. São Paulo: Record, 1983. BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986. DANGELO, André Guilherme Dornelles. A cultura arquitetônica em Minas Gerais e seus antecedentes em Portugal e na Europa: arquitetos, mestres de obras e construtores e o trânsito de cultura na produção de arquitetura religiosa nas Minas Gerais setecentistas. 2006. Tese doutorado. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - Universidade Federal de Minas Gerais, 2006. MARX, Murillo. Cidade brasileira. São Paulo: Edições Melhoramentos: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1980. 151p. PEREIRA, André Luiz Tavares. Arquitetura, Urbanismo e Topografia em Ouro Preto no século XVIII. 2000. 237f. Dissertação (Mestrado em história da arte) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000. OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. Rococó religioso no Brasil e seus antecedentes europeus. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. 352p. SALLES, Fritz Teixeira de. Associações religiosas no ciclo do ouro: introdução ao estudo do comportamento das irmandades de Minas Gerais no século XVIII. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros/UFMG, 1963. 143p. (Estudos, 1) SANTOS, Paulo F. Subsídios para o estudo da arquitetura religiosa em Ouro Preto. Rio de Janeiro: Editora Kosmos, 1951. TERMO de Mariana: História e documentação. Mariana: Imprensa Universitária da UFOP, 1998. v.1. TRINDADE, Raimundo (Cônego). Instituições de Igrejas no bispado de Mariana. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1945. VASCONCELLOS, Sylvio de. Sylvio de Vasconcellos: Arquitetura, Arte e Cidade: textos reunidos. Organização de Celina Borges Lemos. Belo Horizonte, BDMG Cultural, 2004. 8