BANCO DE DADOS EM NEUROLINGÜÍSTICA: TRANSCRIÇÃO VERBAL E REGISTRO N ÃO-VE RBAL (DATA BASE IN NEUROLINGUISTICS: VERBAL TRANSCRIP TION AND NON-VE RBAL REG ISTRATION) Mich elli Alessandra SILVA (Universidad e Estadual d e Campinas) Breno Luís D EFFANTI (Universidad e Estadu al d e Campinas) ABSTRACT: This paper refers to the relation between a verbal process and a nonverbal process transcription of the interaction session in an aphasical and nonaphasical group. At the moment, the paper refers to the register of non-verbal process, considering the relation between language, gesture and perception. KEYWORDS: Data Base, Verbal and Non-Verbal Process, Neurolinguistics Este trabalho insere-se no Projeto Integrado de Pesquisa, apoiado pelo CNPq: Contribuições da Pesquisa Neurolingüística para a Avaliação do Discurso Verbal e Não Verbal e incide n a relação d a transcrição d e pro cessos v erbais co m o registro de processos não-verbais das sessões de interação em grupo de sujeitos afásicos e nãoafásicos no Centro de Convivência de Afásicos (CCA), que funciona no Instituto de Ensino da Linguagem (IEL) e é fruto de um convênio interdisciplinar do Departamento de Lingüística co m a Faculdad e de Ciên cias Médi cas (FCM) da Universidad e Estadu al de Campinas (UNICAMP). O trabalho desenvolvido no CCA orienta-se para o estudo discursivo das afasias 1, definido a partir de uma teoria indeterminada e pública de linguagem (Franchi, 1977), à luz da qual o sentido não é dado a priori, mas se faz em meio a contingências sócio-históricas, incluindo fatores contextuais. Adotar tal abordag em i mplica em di zer que os processos de significação dependem de uma série de fatores (de língua, de linguagem e de suas relações com sistemas não-verbais) para serem determinados, sendo estes culturalmente construídos e motivados pela realidade simbólica humana, expressa em práticas discursivas 2 que relacionam ações, processos verbais e não verbais com o que faz sentido do ponto de vista da sociedade e cultura da qual os sujeitos fazem parte. Partindo desta concepção, enfatizamos, neste momento, o registro de processos de significação não verbais ao considerar a rel ação d a língua co m a gestualidade e a 1 COUDRY (1986/96: 5) define a afasia como alterações de processos lingüísticos de significação de origem articulatória e discursiva (...) produzidas por lesão focal adquirida no sistema nervoso central, em zonas responsáveis pela linguagem, podendo ou não se associarem a alterações de outros processos cognitivos. Um sujeito é afásico quando do ponto de vista lingüístico, o funcionamento de sua linguagem prescinde de determinados recursos de produção ou interpretação (ibid: 5). 2 De acordo com MAINGUENEAU (1989: 60) Estudos Lingüísticos XXXIII, p. 507-512, 2004. [ 507 / 512 ]
percepção como condi ção fundamental para a atividade significativa. Conseqüentemente, a transcrição de processos de significação verbais documentados a partir da grav ação em áudio d as sessões no CCA, d esde 1990, tornou -se insatis fatória. A fim de promover melhor visibilidade dos dados ali disponíveis e fornecer material básico para a con fecção do BDN, houve a necessidade de se recorrer às filmagens co mo instrumento de registro dessas sessões, que passaram a ser registradas em fitas de vídeo a partir de 1996. A estratégia hoje adotada é a de registrar as sessões do CCA atrav és de dois processos distintos, porém simultâneos: o registro em áudio (realizado por u m gravador) e o registro em vídeo (realizado po r u ma câmera filmadora). O processo de transcrição, portanto, se dá da seguinte forma: os transcritores assistem ao registro em vídeo das sessões, posteriormente analisam e transcrevem o material em áudio e, finalmente, conferem a transcrição retomando o registro em vídeo. Desta maneira, o papel do registro em vídeo torna-se complementar ao registro em áudio, uma vez que contextualiza as condi ções de produção dos enunciados verbais e revel a as condições de produção dos enunciados não-verbais. Somente, então, os dados são incorporados ao BDN. Tem sido evolutivo o processo de formação do BDN, tendo este passado por etapas signifi cativas de adequ ação e modernização. Atual mente, configura-s e por u ma tabela composta por seis colunas: código de busca, numeração das linhas, sigla do locutor, transcrição, observações sobres as condições de produção do enunciado verbal e observações sobres as condições de produção do enunciado não verbal. Co m o objetivo de selecionar enunciados que possibilitem identificar a produção e a comp reens ão da linguagem tanto pelo afásico qu anto pelo não afásico, as catego rias da coluna código de busca ficaram assi m definid as (pod endo s er acres cidas): CÓDIG O \tom \TF \her \top \neg \ins \aí \né \tá \rir \int \lei \co m \esc FINALIDA DE Entonação utilizada pelo falante no momento do enunciado ininteligível Transcrição fonética Hesitação, repetição Topicalização sintática Enunciado negativo Inserção Aí, daí, então Risos Introdução de opinião Leitura em voz alta Co mp aração Escrita Estudos Lingüísticos XXXIII, p. 507-512, 2004. [ 508 / 512 ]
\: Alongamento vocálico \imp Imperativo \ / Pausa breve \ // Pausa longa \? Enunciado interrogativo \! Enunciado exclamativo Sobretudo, por ser organizado por este sistema aberto de busca, o BDN tornase mais do que um simples depositário de dados, estando suscetível a inserções teóricas relevantes para o desenvolvimento do Projeto Integrado assim como para as pesquisas que dele se servem. Faz-se n ecessário ressaltar qu e o sistema d e codi fi cação do BDN p rocu ra preservar as características das variedades vernaculares dos falantes do PB, procurando atingir u m equilíbrio de notação para o como se escreve o que se fala, de man eira que falando-s e bassora por vassour a ou cabincho po r cachimbo, por exemplo, a transcrição repr esenta o qu e se falou. Para tanto, é preciso levar em conta a vari edade de situações interativas e a dinâmica da atividade oral - em que também ocorre a linguagem não verbal, seja acompanhando e enriquecendo o que se fala, seja assumindo o lugar da linguagem oral, quando a afasia se mani festa - que caracteri za o grupo d e afásicos e n ão afásicos que participa do CCA. Por esse motivo, no dado que iremos analisar, foi considerada, em todos os momentos, a interação dos sujeitos com os investigadores como constitutiva dos processos que permitem buscar nessas pessoas formas expressivas de significação, seja através de processos verbais ou através de processos não verbais. Com a intenção de demonstrar a importância do registro em vídeo nos trabalhos de transcrição e confecção do BDN, propomos ainda, uma leitura do dado com olhar co mparativo para as transcrições realizadas em um pri meiro mo mento, apenas com o auxílio do áudio e, posteriormente, com o auxílio do registro em vídeo (coluna d estacada). O dado abaixo é referente à sessão do dia 24 de Fevereiro de 2003, na qual a investigadora Imc solicita aos sujeitos os nomes de todos os integrantes do grupo incluindo aqueles que estavam ausentes, para o novo integrante FR tomar conhecimento. Busca Nº Sigla do Locutor Tro ca de lugares entre C F e AC Transcrição 1 Imc aquele rapaz que tem uma tatuagem... Observações sobre processos de significação verbais referindo-se a outro integrante Observações sobre processos de significação não verbais Estudos Lingüísticos XXXIII, p. 507-512, 2004. [ 509 / 512 ]
\? 2 Imc sabem, aquele r apaz que tem uma tatuagem? do grupo perguntando para o g rupo AC toca o braço d e CF e aponta para o lugar em que está sentado \neg 3 CF não CF aponta para I mc \TF 4 CF [εσαεσαω] CF peg a sua agenda 5 Imc a sua está aqui Imc pega a agenda d e A C e mostra p ara ele 6 AC dá falando com CF AC sinaliza não co m a cabe ça, \? 7 Imc o que que foi? 8 Imc estamos falando das pessoas... levanta-s e e dirige-se p ara CF AC puxa sua cadeira e a empurra n a direção de CF \TF 9 CF ah! [εσαεσαω]? to m: pergunta CF aponta para a cadeira em que AC estava sentado \? 10 Imc trocar, por quê? CF l evanta - \né 11 Imc não sei, né CF, o por quê se, sinaliza co m as mãos e co m a cabe ça que não entende o motivo da troca d e lugares, e senta-se no lugar de AC risos AC pu xa a cadeir a e m que CF estava sentada Estudos Lingüísticos XXXIII, p. 507-512, 2004. [ 510 / 512 ]
\? 12 Imc por que o senhor trocou? \? 13 Imc trocou, por quê? 14 AC porque... aqui... aqui AC aponta para o ar condicionado \? 15 Imc ah! o vento estava indo no senhor? \? 16 Imc mas, aí, o senhor troca co m ela? \aí 17 Imc aí, el a que fica com o ar nas costas risos \TF 18 CF não... [εσα εσα ω] CF nega que o ar condicionado está inco modando -a \? 19 Imc e ago ra, melhorou? Fonte: Ba nco de Dados em Neuroling üística (B DN) AC senta-s e no lugar em que antes CF estava s entada Ibd reduz a intensidade do ar condicionado CF sinaliza não co m a mão e aponta para o ar condicionado Não tivesse o BDN a característica de adaptar-se às necessidades de pesquisa do Projeto Integrado, fatalmente estaria congelado no modelo em que os registros dos processos não verbais seriam ignorados. Sem tal registro, o BDN se mostraria ineficiente em reproduzir com a fidedignidade necessária a abordagem discursiva da linguagem nas dinâmicas das sessões do CCA. No dado acima, verificamos que o gesto ora acompanha, ora preenche, ora pontua e ora substitui a linguagem verbal na busca de sentidos nos cenários de construção de signifi cados. Sendo o BD N ágil na su a proposta de ret ratar as situações discursivamente orientadas, nas quais afásicos e não afásicos estão inseridos, nos deparamos com os caminhos alternativos, apoiados na gestualidade, que são percorridos pelos afásicos. O dado, dessa forma, nos permite constatar que, numa experiência discursiva de linguagem, o trânsito entre o verbal e o não verbal, na afasia, é normal, assim como ocorre na linguagem não-patológica. Através da coluna de registro dos processos de significação não verbais, o BDN mostra os enunciados verbais e não verbais em condições de incompletude a qual a linguagem está exposta. Afinal, se na linguagem não patológica os sentidos não estão prontos e si m dep endem d as relações ântropo-culturais, o mes mo acontece n a afasia na reconstrução dos sentidos. No seu formato atual, o BDN é capaz de mostrar que freqüentemente os gestos não são prontamente compreendidos pelos interlocutores, Estudos Lingüísticos XXXIII, p. 507-512, 2004. [ 511 / 512 ]
sendo que muitas vezes a incompletude se manifesta obrigando-os a alargarem suas possibilidades enunciativas. Este trabalho, portanto, vem ressaltar a importância do BDN como uma fonte de dados que procura mostrar todo o trabalho lingüístico desprendido pelos afásicos na construção da linguag em e na sua constituição como sujeitos inseridos em situações interativas entre afási cos e não afásicos. A função do BDN, dessa fo rma, é a de mostrar linguagem onde olhos normais enxergariam somente patologia. RESUMO: Este trabalho incide na relação da transcrição de processos verbais com o registro de processos não-verbais das sessões de interação em grupo de sujeitos afásicos e não afási cos. Neste momento, focaliza-se o registro não -verb al considerando a relação língua-gestualidade-percepção fundamental para a atividade significativa. PALAVRAS-CHAVE: Banco de Dados; Processos Verbais e Não-Verbais de Significação; Neurolingüística REFE RÊNCIAS BIBLIOG RÁFICA S ALBAN O, E. C. Da fala à linguagem tocando de ouvido. São Paulo: Martins Fontes, 1990. BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1995. CANGUILHEM, G. O Normal e o Patológico. São Paulo/ Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1995. CASTRO, M. F. (Org). O Método e o Dado no Estudo da Linguagem. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996. COUDRY, M. I. & POSSENTI, S. Avaliar discursos patológicos in: Cadernos de Estudos Lingüísticos, 5:99-109, 1983. COUDRY, M. I. Diário de Narciso Discurso e Afasia. Martins Fontes: São Paulo, 1986/96. FRANCHI, C. Linguagem atividade constitutiva in: Cadernos de Estudos Lingüísticos, 22: 9-39, 1977/92. JAK OBSON, R. Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1981. LURIA, A R. Fundamentos de Neuropsicologia. EDUSP: São Paulo, 1981. Th e working brain. London: Penguin Books, 1973. Pensamento e Linguagem as últimas conferências de Luria. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. MAINGUENEAU, D. Novas Tend ências em Análise do Dis curso. Ca mpinas: Editora da UNICAMP/Pontes, 1989. MÁRMORA, C. H. C. Linguagem, afasia, (a)praxia: uma perspectiva neurolingüística. Campinas: Editora da UNICAMP, 2000. POSSEN TI, S. Discurso, Estilo e Subjetividade. São Paulo: Martins Fontes, 1986/88. Língua: sistema de sistemas in: Temas em Neuropsicologia e Neurolingüística, número 4. São Paulo: SBNp, 1995. VYGOTSKY, L. S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1934/93. Estudos Lingüísticos XXXIII, p. 507-512, 2004. [ 512 / 512 ]