A DIMENSÃO DIALÉTICA DO NOVO CÓDIGO CIVIL EM UMA PERSPECTIVA PRINCIPIOLÓGICA



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Transcrição:

A DIMENSÃO DIALÉTICA DO NOVO CÓDIGO CIVIL EM UMA PERSPECTIVA PRINCIPIOLÓGICA MÁRIO LÚCIO QUINTÃO SOARES Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais Professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias Membro do Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro Diretor da Faculdade de Direito de Pedro Leopoldo Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/MG LUCAS ABREU BARROSO Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Mestre em Direito pela Universidade Federal de Goiás Professor da Universidade de Itaúna Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias Membro da União Mundial dos Agraristas Universitários Membro da Associação Brasileira de Direito Agrário Membro do Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro Membro do Instituto O Direito por um Planeta Verde Membro do Grupo de Estudos Professora Giselda Hironaka SUMÁRIO: 1 Os princípios informadores do novo Código Civil e os princípios constitucionais fundamentais. 2 O novo Código Civil e o problema da igualdade material. 3 Referências bibliográficas. 1 Os princípios informadores do novo Código Civil e os princípios constitucionais fundamentais Desde o advento do paradigma Estado de Direito, construído pelas revoluções burguesas e entronizado pela dogmática alemã, compreende-se que a legislação infraconstitucional deve estar adequada à ordem constitucional vigente em determinado país. O paradigma Estado Democrático de Direito, esposado na Constituição Federal de 1988, tendo como arcabouços uma sociedade inclusiva e mecanismos institucionais para a emancipação do cidadão, pressupõe a vinculação dos atos estatais e do legislador ao texto constitucional. Com efeito, há que se indagar, aprioristicamente, acerca da missão do legislador ordinário (dotado de poder constituinte derivado) no processo de constitucionalização do Direito Civil brasileiro, em relação aos matizes filosóficos plantados na elaboração do novo

2 Código Civil. Salvo melhor juízo, de forma equivocada, a codificação civil há pouco em vigor apega-se à concepção axiológica, isto é, à tirania de valores, tão questionada por Friedrich Müller, mas praticada pelo Tribunal Constitucional Alemão. Konrad Hesse, um dos marcos teóricos da concepção axiológica, fornece subsídios para a apreensão do significado deste método hermenêutico, isto é, mediante elaboração de metódica ajustada à interpretação constitucional, pretendendo, assim, o equilíbrio capaz de evitar o sacrifício da dimensão normativa de uma dada constituição em face da realidade. Partindo da premissa de que a norma constitucional carece de existência independentemente da realidade, para Konrad Hesse sua eficácia não pode extrapolar as condições naturais, históricas, sociais e econômicas de cada situação. Todavia, uma constituição consiste em algo maior do que essas condições fáticas, possuindo peculiar força normativa dirigida a ordenar e conformar a realidade político-social. Dentre os pressupostos que permitem a consecução do enunciado equilíbrio ressalta-se a vontade da constituição eis que representa uma alternativa à mera vontade de poder e à normatividade formal e abstrata, carente de vontade, que repousa em três convicções: a) necessidade de uma ordem normativa objetiva e estável, como garantia frente à arbitrariedade do poder; b) a ordem normativa necessita de constante legitimação; c) o valor normativo da ordem vigente depende de sua racionalidade e dos atos da vontade humana tendentes à sua realização. Não obstante tais considerações, o novo Código Civil, sob a coordenação de Miguel Reale e gestado durante a ditadura militar, envelheceu no decorrer de seu longo período de tramitação no Congresso Nacional. Apesar de superar a feição individualista do Código Civil de 1916, peculiar ao paradigma Estado Liberal de Direito, deixou-se acorrentar pela concepção axiológica,

3 concernente ao paradigma Estado Social de Direito, desconhecendo o ideal de democracia social e o respeito às minorias, característicos do Estado Democrático de Direito. Metodologicamente, a nuança conservadora de Miguel Reale subjaz no novo Código Civil, entronizando, na perspectiva da eticidade e da socialidade, os bens culturais reconhecidos e aceitos pela comunidade em geral. Destarte, a nova codificação, segundo o próprio Miguel Reale 1, está pautada nas seguintes diretrizes: a) aderência aos problemas concretos da sociedade brasileira; b) unidade sistemática determinada pela parte geral; c) unificação lingüística; d) unidade valorativa; e) sentido de concreção de que as normas se revestem, atendendo ou buscando aliar os ensinamentos da doutrina e da jurisprudência ao direito vivido pelas diversas categorias profissionais. A socialidade dos modelos jurídicos, assente no culturalismo de Miguel Reale 2, peculiar ao paradigma Estado Social de Direito, reflete-se na nova codificação, especificamente na prevalência dos valores coletivos em detrimento dos individuais, redimensionando os conceitos dos cinco principais personagens do Direito Privado: o proprietário, o contratante, o empresário, o pai de família e o testador. Isto porque, além de representar a quebra do individualismo, consagra também a ruptura do patrimonialismo que permeava as relações jurídicas de Direito Privado à luz do Código Civil de 1916, podendo-se depreender da leitura hermenêutica do novo Código Civil a influência de Emilio Betti nesse sentido, conquanto busque combinar o valor da livre iniciativa, no plano econômico, com a socialidade, o que é característico do status socialis, exigindo, p. e., que o contrato e a propriedade cumpram sua função social. Miguel Reale 3 ignorou a superação dos paradigmas tradicionais com o advento do Estado Democrático de Direito, ao considerar que não houve a vitória do socialismo no plano 1 REALE, Miguel. O projeto do novo código civil. 2. ed. reform. e atual. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 50 e ss. 2 Idem. Visão geral do projeto de código civil. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 752, jun. 1998. p. 23. 3 Idem. O projeto... Ob. cit., p. 7.

4 jurídico, mas o triunfo da socialidade, ou seja, dos valores atinentes a uma sociedade capitalista reformista democrática. O princípio da eticidade, outro pilar teórico de Miguel Reale, está igualmente presente no novo Código Civil, consubstanciado na utilização constante de princípios, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, os quais fazem referência a expressões cujos significados exigem uma atividade valorativa do julgador no tocante à aplicação da regra infraconstitucional e possibilitam a superação do apego ao formalismo jurídico. A ampla menção aos princípios da boa-fé e eqüidade, bem como a constante invocação aos bons costumes, refletem essa tendência, propiciando ao novo Código Civil uma feição que é peculiar ao paradigma Estado Social de Direito, figurando as diversas cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, consoante Miguel Reale, como pontos de mobilidade e de abertura do sistema jurídico em tela para as modificações da realidade. Entrementes, foram introduzidas na nova codificação regras infraconstitucionais que visam ampliar sua incidência a fatos não previstos expressamente e cuja previsão não poderia ser formulada pelo legislador ordinário. Ora, se existem princípios constitucionais para serem aplicados à matéria, tais regras tão somente devem adequar-se aos mesmos, segundo a interpretação principiológica a ser assumida pelos operadores jurídicos, em consonância com o paradigma Estado Democrático de Direito. 4 A idéia de natureza das coisas, ressuscitada por Miguel Reale, vinculada ao caráter nomotético da consciência e normativo de alguns fatos, por mais que faça referência a um sistema de valores, determinado historicamente pela experiência natural e cultural, torna-se utópico resgate jusnaturalista que não tem pertinência com o ideal democrático das complexas sociedades contemporâneas. 4 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do estado. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 303 e ss.

5 O ideal democrático, de acordo com Martin Kriele 5, seria a identidade entre os que mandam e os que obedecem, a qual, sem embargo, há de requerer a unanimidade. Como esta não pode ser alcançada na prática, devem ser criados mecanismos democráticos que autorizem que o maior número possível de pessoas goze de autonomia e de que o menor número possível esteja sujeito à heteronomia. Pelo menos, a maioria deve ter a liberdade de viver conforme as suas próprias leis. Por outro lado, o Estado Democrático de Direito, enquanto comunidade do povo, consiste em uma comunidade de valores ou unidade vinculada ao ideal democrático. O povo somente pode ser representado quando o princípio da representação, como forma de dominação, vincula-se aos valores desta comunidade política ideal. Consagrou a Carta Política de 1988 (art. 1º) enquanto fundamentos do Estado Democrático de Direito cinco princípios, de prática obrigatória em todos os processos de escolha e tomada de decisões que lhes são concernentes, qualquer que seja a ação política, econômica ou social a ser empreendida. As posições conceituais que espelham os princípios ali constantes devem integrar-se, visando coexistirem, a fim de conferir legitimidade à República Federativa do Brasil, eis que transcendem a concepção de Estado instituído, atingindo os valores preambularmente expostos no mesmo diploma constitucional que motivaram seu reconhecimento como Constituição cidadã. E se, por um lado, tais princípios representam os fundamentos do Estado brasileiro, por outro igualmente o serão de todo o ordenamento jurídico pátrio, seja ele constitucional ou infraconstitucional, superando o princípio da legalidade na qualidade de regra primeira da interpretação do arcabouço legislativo em vigor, atuando como fatores primordiais de validade das normas no ordenamento jurídico brasileiro. 5 KRIELE, Martin. Introducción a la teoría del estado: fundamentos históricos de la legitimidad del estado constitucional democrático. Traducción Eugenio Bulygin. Buenos Aires: Depalma, 1980. p. 320 e ss.

6 Ademais, descabe o argumento de que se tratam de normas programáticas, dependentes de regulamentação, por ausência de previsão no texto constitucional e por configurarem princípios, o que por si só já é bastante para lhes conferir aplicabilidade imediata e para a persecução de sua efetividade. Mas dentre os princípios enunciados apenas três estão em destaque, em sintonia com a abordagem do tema proposto. Estes são a cidadania (inciso II), a dignidade da pessoa humana (inciso III) e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (inciso IV). Os princípios de que ora se ocupa, na evolução histórica do Direito nacional, converterão em realidade a lógica pessoal de sua conformação material: a integração da pessoa humana a saber, nos limites do âmbito de jurisdição da Constituição Federal, o brasileiro, nato e naturalizado, e o estrangeiro residente no país como destinatários finais da norma constitucional (art. 5º, CF), no processo político, social e cultural que a capacita à qualidade de agente plasmador da cidadania. 6 A pessoa humana, na dicção constitucional, é valorada mediante o espectro antropocêntrico que permeia a Ciência Jurídica no Estado Democrático de Direito, no qual é posta no vértice do prisma da hierarquia das normas jurídicas, juntamente com os demais princípios expostos no art. 1º mencionado, haja vista a consolidação da noção de que a justiça é o fundamento do Direito, sendo o fundamento da justiça a dignidade da pessoa humana. E não há como falar de justiça, distributiva ou social, afastando em posições estanques pessoa humana e cidadania. Preleciona Miguel Reale 7 que estes são valores que devem ser interpretados conjuntamente, pois o respeito devido à pessoa humana em sentido universal (eu costumo dizer que a pessoa humana é o valor fonte de todos os valores), não exclui, mas antes implica a dimensão jurídico-política que cada membro da coletividade brasileira adquire só pelo fato de nascer no território nacional, assegurando-lhe um campo específico de direitos 6 BOFF, Leonardo. Depois de 500 anos: que Brasil queremos? 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 51-53. 7 REALE, Miguel. O estado democrático de direito e o conflito das ideologias. 2. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 3.

7 e deveres, sem prejuízo da igualdade perante a lei [...]. Maria Cristina De Cicco 8 ressalta o compromisso a que se está adstrito em face da realidade jurídica que se impôs a partir da elevação desses princípios à categoria de fonte primária do Direito interno: A Constituição Brasileira de 1988 [...] ao eleger a dignidade da pessoa humana e o pleno exercício da cidadania como fundamentos do ordenamento e ao consagrar a justiça distributiva, provocou uma profunda alteração no tecido normativo. Essa transformação não pode passar despercebida, nem ser relegada a um plano secundário com a desculpa de a Constituição significar tão-somente uma carta de princípios; exigindo, ao contrário, uma mudança de mentalidade no operador do Direito em todos os sentidos. Uma das projeções da livre iniciativa é a liberdade de participação na economia, corroborando o capitalismo enquanto modelo econômico adotado, que traz consigo todas as mazelas e formas de exclusão que lhe são inerentes, mas que deverá, antes de tudo, respeitar os valores sociais do trabalho, juntamente com a livre iniciativa, na posição de fundamento do Estado e preceito da Ordem econômica, visando compatibilizar o regime de produção escolhido (capital, lucro), a dignidade da pessoa humana e a dimensão econômico-produtiva da cidadania. O capitalismo é parte integrante do ambiente cultural em que se vive e, conseqüentemente, parâmetro obrigatório na análise de qualquer propositura jurídica que se estabeleça no Estado brasileiro. Não se pode, assim, esquecer que qualquer abordagem dentro do ordenamento jurídico pátrio deve, necessariamente, perpassar pela noção de que o intérprete está diante de uma ordem jurídica constitucional que não só reconhece, como impõe, que a liberdade econômica somente é limitada pelos ditames constitucionais acima tratados e por outros de menor valor na escala jurídica, ética e social. 8 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução do direito civil constitucional. Tradução Maria Cristina De Cicco. 1. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. Prefácio da tradutora.

8 Firma-se, pois, como lembra Miguel Reale 9, que a Carta Magna não consagra o liberalismo infenso à justiça social, mas sim o social-liberalismo, segundo o qual o Estado também atua como agente normativo e regulador da atividade econômica, muito embora sem se tornar empresário, a não ser nos casos excepcionalíssimos previstos no Art. 173, por imperativos de segurança nacional, ou relevante interesse coletivo definido em lei. Para Roger Raupp Rios 10 a valorização do trabalho humano como elemento fundamental da ordem jurídica-econômica [após mencionar que também da República Federativa do Brasil] revela-se, simultaneamente, postulado da consciência geral no atual estágio do desenvolvimento histórico da humanidade e, particularmente, da sociedade brasileira, bem como dado normativo central para a compreensão e equacionamento dos problemas econômicos [...]. E mais adiante aduz: A fundamentalidade ínsita à noção de livre iniciativa implica o reconhecimento de uma esfera jurídica dentro da qual os agentes econômicos gozam de autonomia no exercício de sua atividade econômica. Esse campo, onde grassa a autonomia privada, consiste na faculdade concedida aos particulares de autoregulamentação de seus interesses. Em síntese, apesar do brilhantismo do trabalho de Miguel Reale, haverá um saudável conflito hermenêutico no ordenamento jurídico brasileiro entre os princípios informadores do novo Código Civil e os princípios constitucionais fundamentais, proporcionando aos intérpretes a percepção e compreensão da verdadeira comunidade de valores erigida sob a égide do paradigma Estado Democrático de Direito. 9 REALE, Miguel. O estado... Ob. cit., p. 45. 10 PAULSEN, Leandro; CAMINHA, Vivian Josete Pantaleão; RIOS, Roger Raupp. Desapropriação e reforma agrária: função social da propriedade, devido processo legal, desapropriação para fins de reforma agrária, fases administrativa e judicial, proteção ao direito de propriedade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 29-30 e 31-32.

9 2 O novo Código Civil e o problema da igualdade material A cidadania demonstra-se tão somente expressão abstrata, mera referência ideológica, se negado o pressuposto de vida compatível com a dignidade humana. O processo de afirmação dos direitos humanos, como condição para convivência coletiva, exige um espaço público, ao qual só se tem acesso por meio da cidadania. Para Arendt, o primeiro direito, do qual derivam todos os demais, é o direito de ter direitos. Direitos que a experiência autoritária tem mostrado só podem ser exigidos através do total acesso à ordem jurídica, o que apenas a cidadania oferece. 11 A efetividade dos direitos humanos está na concretização da cidadania plena e coletiva em todos os segmentos sociais, observando-se que o sentido histórico no qual se estabeleceu o conceito de cidadania resulta das conquistas sócio-econômicas e políticas de movimentos libertários. A cidadania deve ser compreendida, portanto, como participação política do indivíduo no Estado, abrangendo o gozo de direitos políticos e civis, bem como de direitos econômicos, sociais e culturais. A crescente parcela de excluídos que ora assoma, tanto nas sociedades subdesenvolvidas quanto, gradualmente, nas sociedades desenvolvidas, nos faz refletir sobre os obstáculos à concretização da cidadania engendrados pela nova ordem mundial. De um lado, a sociedade de massas instaurou o predomínio das relações impessoais e simbólicas, priorizando os interesses difusos não identificados em grupos ou classes sociais. Em decorrência desses fatos, foi distorcido o mecanismo de representação política, que induzia ao relacionamento pessoal entre representantes e representados. 12 11 ARENDT, Hannah. O sistema totalitário. Tradução Roberto Raposo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1978. p. 381 e ss. 12 COMPARATO, Fábio Konder. A nova cidadania. 14ª CONFERÊNCIA NACIONAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Anais... Vitória, 1992. p. 23 e ss.

10 Nas sociedades subdesenvolvidas, por outro lado, à aludida impessoalidade da relação política acrescentou-se pronunciado desnível econômico entre regiões geográficas, setores econômicos e classes sociais, redundando no mascaramento do sistema clássico de garantia de liberdades individuais. A relação entre cidadania e classe social possibilita desmitificar a expansão formal da cidadania no Estado moderno, visto que as condições econômicas constituem, ainda, óbices intransponíveis, retratando desigualdades sociais e perpetuando a exclusão política: Um sistema político com igualdade de cidadania é na verdade menos do que igualitário se faz parte de uma sociedade dividida por condições de desigualdade 13. O Estado constitucional, construído pelas revoluções burguesas e transformado pelos movimentos sociais, diluiu a relação governante/governado no sistema de representação política 14 e refletiu, em sua ordem jurídica, o reconhecimento dos direitos fundamentais a qualquer indivíduo da sociedade, concretizados nos Estados desenvolvidos por instituições democráticas e eficientes, e sonegados nos Estados subdesenvolvidos por instituições arcaicas e inadequadas. O primeiro passo para a concretização dos direitos fundamentais está no seu reconhecimento pelo Estado, que a eles se vincula pela Constituição. É dessa vinculação que surge a lei, a ser cumprida pelo Executivo e pelo Judiciário, como exigência de realização concreta dos direitos fundamentais. 15 Baracho faz referência ao significado das reflexões que envolvem a crise do Estado e sua própria estrutura, principalmente quando tocamos na base de sua organização, na definição de suas funções e na capacidade das mesmas para resolver as indagações que surgem, atualmente, muitas delas vinculadas aos direitos humanos e sua proteção 13 BARBALET, J. M. A cidadania. Tradução M. F. Gonçalves de Azevedo. Lisboa: Editorial Estampa, 1989. p. 11. 14 LEIBHOLZ, Gerhard. La rappresentazione nella democrazia. Milano: Giuffrè, 1989. p. 213 e ss. 15 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Direitos fundamentais do homem nos textos constitucionais brasileiro e alemão. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 115, p. 85-138, jul./set. 1992. p. 136.

11 jurisdicional 16. Os sistemas econômicos vigentes, institucionalizados em Estados de Direito, não lograram libertar o indivíduo do poder determinante da propriedade privada e de suas instituições pertinentes e, quando o fizeram, cercearam as liberdades públicas necessárias à emancipação da pessoa humana. O acesso à cidadania pelos segmentos marginalizados constitui objetivo a ser perseguido, estabelecendo as premissas da cidadania plena e coletiva. Desta forma, a democracia participativa, a ser construída dentro de Estado constitucional, deve buscar a isonomia material, respaldada na igualdade econômica. Destarte, percebe-se, à luz da metódica principiológica, a insuficiência do novo Código Civil como instrumento modelador da igualdade material (art. 3º, III, da Constituição Federal 17 ), que verdadeiramente só poderá ser alcançada numa perspectiva integradora com os princípios da cidadania e da dignidade da pessoa humana, conferindo a cada um e a todos a plena realização dos atributos inerentes à personalidade. 18 Nesta esteira, Perlingieri 19 fala em pari dignità sociale, na qual a igualdade seria meio e fim para se alcançar a cidadania: Uma das interpretações mais avançadas é aquela que define a noção de igual dignidade social como o instrumento que confere a cada um o direito ao respeito inerente à qualidade de homem, assim como a pretensão de ser colocado em condições idôneas a exercer as próprias aptidões pessoais, assumindo a posição a estas correspondentes. A propósito, cabe analisar, neste ponto, os significados de igualdade formal e material (substancial) e a pretensa dicotomia entre ambas: [...] l eguaglianza formale: il destinatario 16 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 73. 17 Art. 3. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] III erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. 18 DONEDA, Danilo. Os direitos da personalidade no novo código civil. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A parte geral do novo código civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 45 e ss. 19 PERLINGIERI, Pietro. Ob. cit., p. 37.

12 delle norme giuridiche è un soggetto astratto. La legge non può distribuire privilegi o discriminare legalizzando una differenza. La differenza non deve essere confusa con la diseguaglianza: la differenza è un dato fattuale [...], la diseguaglianza è un giudizio di valore [...]. [...] l eguaglianza sostanziale: la garanzia del divieto di discriminazioni è insufficiente a realizzare il principio costituzionale di tutela della persona e di pari dignità sociale. [...] Il principio di eguaglianza è unitario. La eguaglianza formale e quella sostanziale sono in funzione reciproca; entrambe esprimono un unico principio, quello dell eguaglianza nella giustizia sociale. 20 Perlingieri 21 esclarece ainda que a igualdade não pode ser confundida com o igualitarismo, bem como não se restringe a mera paridade de tratamento: Eguaglianza, non egualitarismo Eguaglianza non significa egualitarismo: non si pretende l eguaglianza di tutti in tutto, a prescindere dai meriti e dalle competenze. Si richiede invece che ogni disparità di trattamento debba essere giustificata come attuazione dei princípi costituzionali. [...] Eguaglianza, non mera parità di trattamento In tal modo si perde di vista il nesso tra eguaglianza, pari dignità e sviluppo della persona, e la centralità nell ordinamento del rispetto dei diritti fondamentali [...]. Da maneira como concebido, o recente diploma civil não está apto para absorver, no sentido de buscar soluções, a exclusão e as disfunções sócio-econômicas provenientes da dominação histórica, o que resultará na extensão da distância entre incluídos e excluídos, entre os que têm muito e os que nada têm, numa profusão do caos social. Lorenzetti 22, na busca de resposta à indagação Como legislar sobre aquilo que é diferente?, evidencia que a codificação, desde seu início nos chamados códigos oitocentistas, significou uma abstração da idéia de cidadão, eliminava as singularidades para dispor sobre 20 Idem; FEMIA, Pasquale. Nozioni introduttive e principi fondamentali del diritto civile. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2000. p. 73 e ss. 21 Ibidem. Ob. cit., p. 74. 22 LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 55.

13 um conceito único, ao qual se aplicavam as conseqüências jurídicas. Face à heterogeneidade e à diferença, não possuímos conceitos análogos ou abrangentes. O Direito Civil, nos dias que se seguem, deverá apartar-se dos interesses ensejados pelas elites política e econômica que o manipulam em proveito de si próprias e primar por uma igualdade substancial, atuando como fator decisivo na distribuição horizontal da riqueza e na consolidação do pleno exercício dos direitos atrelados à afirmação da cidadania. Não obstante relembrar a presença da igualdade nas legislações a partir do século XVIII, Fachin 23 assinala três momentos deste princípio na seara jurídica, sendo o último deles, bastante diferenciado dos demais, correspondente ao estágio em curso, no qual a consideração abstrata está cedendo lugar ao preenchimento da moldura que o princípio da igualdade acabou por estabelecer. Esse corresponde à confirmação da crise e à superação do mero reconhecimento da dignidade do princípio da igualdade. No direito que inspira o sistema, emerge a idéia [...] de que os desiguais devem ser desigualmente tratados para se tornarem iguais. Não é tudo, porém. Esse terceiro momento também começa a ser superado, apresentando-se os traços de um novo modelo que, todavia, ainda não está plenamente delineado. Campos e aspectos denotam essas perspectivas. Desconhecendo o ideal de democracia procedimental e o respeito às minorias, o que se exprime, entre outros motivos, pelas inúmeras matérias e situações fáticas não abarcadas em seu contexto normativo, o novo Código Civil brasileiro demonstra-se impotente diante da questão da cidadania. A comunidade jurídica ou, ao menos, a fração desta realmente comprometida com a consolidação da democracia mediante a concretização de uma cidadania inclusiva, deverá atuar incisivamente, na perspectiva do status processualis, a fim de fazer prevalecer na sociedade brasileira os postulados democráticos, inseridos na Constituição vigente, os quais 23 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 285.

14 nortearão e darão vida ao novo Código Civil: O novo código não nasce pronto; [...] uma lei se faz código no cotidiano concreto da força construtiva dos fatos, à luz de uma interpretação conforme os princípios, a ética e os valores constitucionais. [...] O grande desafio é superar um velho problema, a clivagem abissal entre a proclamação discursiva das boas intenções e a efetivação da experiência. [...] Compreendê-lo corresponde a fazer de uma lei instrumento de cidadania na formação para o direito, nas salas de aula e de audiências, no acesso democrático ao Judiciário, e nos espaços públicos e privados que reclamam por justiça, igualdade e solidariedade. 24 Por conseguinte, pontifica Neves, é inegável que a renovação e a funcionalização do Direito Civil [...] não prescindem da teoria dos princípios como marco teórico, nem da Constituição como repositório primaz destes princípios. Em uma ordem constitucional que admita uma interpretação pluralista e aberta, como a nossa, o conhecimento do papel dos princípios por parte dos operadores do direito é imprescindível. Apenas assim poderemos dar correto atendimento aos objetivos fundantes de nosso Estado Democrático de Direito, que são compromissórios, amplos, flexíveis e normativos, e, portanto, princípios. 25 Pode-se afirmar que a exclusão social está introjetada no novo Código Civil, ao privilegiar apenas os status e o senso comum reconhecidos por toda a sociedade. Os institutos e a sistematização, consubstanciados no novo Código Civil, não conseguiram, pois, se libertar do estigma da exclusão social. Ou seja, condicionados por fatores ideológicos e econômicos, os instrumentos concernentes à igualdade, incorporados à nova legislação civil, demonstram-se incapazes de conferir a cada um o que lhe é devido consoante uma sociedade mais justa e igualitária, que estabelece os pilares da cidadania plena e coletiva. 24 Idem. Código civil: lei nova e velhos problemas. Revista Del Rey Jurídica, Belo Horizonte, n. 11, p. 18, abr./jun. 2003. p. 18. 25 NEVES, Gustavo Kloh Muller. Os princípios entre a teoria geral do direito e o direito civil constitucional. In: RAMOS, Carmem Lúcia Silveira et al. (Orgs.). Diálogos sobre direito civil: construindo a racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 16.

15 3 Referências bibliográficas ARENDT, Hannah. O sistema totalitário. Tradução Roberto Raposo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1978. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984. BARBALET, J. M. A cidadania. Tradução M. F. Gonçalves de Azevedo. Lisboa: Editorial Estampa, 1989. BOFF, Leonardo. Depois de 500 anos: que Brasil queremos? 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. COMPARATO, Fábio Konder. A nova cidadania. 14ª CONFERÊNCIA NACIONAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Anais... Vitória, 1992. DONEDA, Danilo. Os direitos da personalidade no novo código civil. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A parte geral do novo código civil: estudos na perspectiva civilconstitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 35-58. FACHIN, Luiz Edson. Código civil: lei nova e velhos problemas. Revista Del Rey Jurídica, Belo Horizonte, n. 11, p. 18, abr./jun. 2003. FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. KRIELE, Martin. Introducción a la teoría del estado: fundamentos históricos de la legitimidad del estado constitucional democrático. Traducción Eugenio Bulygin. Buenos Aires: Depalma, 1980. LEIBHOLZ, Gerhard. La rappresentazione nella democrazia. Milano: Giuffrè, 1989. LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. NEVES, Gustavo Kloh Muller. Os princípios entre a teoria geral do direito e o direito civil constitucional. In: RAMOS, Carmem Lúcia Silveira et al. (Orgs.). Diálogos sobre direito civil: construindo a racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 3-21. PAULSEN, Leandro; CAMINHA, Vivian Josete Pantaleão; RIOS, Roger Raupp. Desapropriação e reforma agrária: função social da propriedade, devido processo legal, desapropriação para fins de reforma agrária, fases administrativa e judicial, proteção ao direito de propriedade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução do direito civil constitucional. Tradução Maria Cristina De Cicco. 1. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. PERLINGIERI, Pietro; FEMIA, Pasquale. Nozioni introduttive e principi fondamentali del diritto civile. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2000.

16 REALE, Miguel. O estado democrático de direito e o conflito das ideologias. 2. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 1999. REALE, Miguel. O projeto do novo código civil. 2. ed. reform. e atual. São Paulo: Saraiva, 1999. REALE, Miguel. Visão geral do projeto de código civil. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 752, jun. 1998. SOARES, Mário Lúcio Quintão. Direitos fundamentais do homem nos textos constitucionais brasileiro e alemão. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 115, p. 85-138, jul./set. 1992. SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do estado. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. Referência: BARROSO, Lucas Abreu; SOARES, Mário Lúcio Quintão. A dimensão dialética do novo código civil em uma perspectiva principiológica. In: Lucas Abreu Barroso (Org.). Introdução crítica ao código civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 1-14.