ANDRÉIA SCHURT RAUBER INVESTIGAÇÃO EM FONÉTICA EXPERIMENTAL: ESTUDOS E APLICABILIDADES. nº1 Maio 2008 ATELIER CENTRO DE ESTUDOS HUMANÍSTICOS



Documentos relacionados
3. MÉTODO 3.1 PARTICIPANTES

PERCEPÇÃO DAS PLOSIVAS ALVEOLARES FINAIS NA INTERFONOLOGIA DE BRASILEIROS APRENDIZES DE INGLÊS

Exp 8. Acústica da Fala

ANÁLISE!ACÚSTICA!DA!VIBRANTE!MÚLTIPLA!/r/!NO!ESPANHOL!E!EM! DADOS!DE!UM!APRENDIZ!CURITIBANO!DE!ESPANHOL!COMO!LÍNGUA! ESTRANGEIRA!

Indicamos inicialmente os números de cada item do questionário e, em seguida, apresentamos os dados com os comentários dos alunos.

3 Método 3.1. Entrevistas iniciais

PED ABC Novembro 2015

Áudio. GUIA DO PROFESSOR Síndrome de Down - Parte I

3 Qualidade de Software

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA REABILITAÇÃO PROCESSO SELETIVO 2013 Nome: PARTE 1 BIOESTATÍSTICA, BIOÉTICA E METODOLOGIA

Transição para a parentalidade após um diagnóstico de anomalia congénita no bebé: Resultados do estudo

Cadernos do CNLF, Vol. XVI, Nº 04, t. 3, pág. 2451

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA CURSO DE GESTÃO PÚBLICA

MANUAL DO ALUNO DO CURSO DE INGLÊS EF

CURSO: Desenvolvimento Web e Comércio Eletrônico DISCIPLINA: Gestão da Qualidade Professor: Ricardo Henrique

da Computação Experimental

BOLSA FAMÍLIA Relatório-SÍNTESE. 53

COMO ENSINEI MATEMÁTICA

Portal do Projeto Tempo de Ser

Perfil Educacional SEADE 72

Organização. Trabalho realizado por: André Palma nº Daniel Jesus nº Fábio Bota nº Stephane Fernandes nº 28591

Artigo publicado. na edição Assine a revista através do nosso site. maio e junho de 2013

Reconhecimento de Padrões Utilizando Filtros Casados

Aula 1 Dados & Informações & Indicadores

Inteligibilidade em Voz Sintetizada

Evolução da população do Rio Grande do Sul. Maria de Lourdes Teixeira Jardim Fundação de Economia e Estatística. 1 - Introdução

4. Tarefa 16 Introdução ao Ruído. Objetivo: Método: Capacitações: Módulo Necessário: Análise de PCM e de links

paradigma WBC Public - compra direta Guia do Fornecedor paradigma WBC Public v6.0 g1.0

Campus Capivari Análise e Desenvolvimento de Sistemas (ADS) Prof. André Luís Belini prof.andre.luis.belini@gmail.com /

O Planejamento Participativo

A PRÁTICA DA CRIAÇÃO E A APRECIAÇÃO MUSICAL COM ADULTOS: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA. Bernadete Zagonel

Aula 4 Estatística Conceitos básicos

Os gráficos estão na vida

ADMINISTRAÇÃO I. Família Pai, mãe, filhos. Criar condições para a perpetuação da espécie

Aluno: Carolina Terra Quirino da Costa Orientador: Irene Rizzini

AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO

O vídeo nos processos de ensino e aprendizagem

A educação no Rio de Janeiro

COMO COMEÇAR 2016 se organizando?

ANÁLISE DAS CARACTERÍSTICAS DOS SITES QUE DISPONIBILIZAM OBJETOS DE APRENDIZAGEM DE ESTATÍSTICA PARA O ENSINO MÉDIO 1

1. Explicando Roteamento um exemplo prático. Através da análise de uns exemplos simples será possível compreender como o roteamento funciona.

TONALIDADE X FREQUÊNICA

Introdução ao icare 2

Cristina Fernandes. Manual. de Protocolo. Empresarial

Casos de uso Objetivo:

Fina Flor Cosméticos obtém grande melhoria nos processos e informações com suporte SAP Business One

Nesta seção apresentamos protótipos que desenvolvemos com o objetivo de levantar os requesitos necessários para um sistema para apresentações

ORIENTAÇÕES PARA O PREENCHIMENTO DO QUESTIONÁRIO POR MEIO DA WEB

Implementando uma Classe e Criando Objetos a partir dela

Atenção ainda não conecte a interface em seu computador, o software megadmx deve ser instalado antes, leia o capítulo 2.

CORRENTE CONTÍNUA E CORRENTE ALTERNADA

A CONSTRUÇÃO DA ESCRITA POR CRIANÇAS COM SÍNDROME DE DOWN. FELDENS, Carla Schwarzbold ¹; VIEIRA, Cícera Marcelina ²; RANGEL, Gilsenira de Alcino³.

ENSINO A DISTÂNCIA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE EDUCAÇÃO BÁSICA DO ESTADO DA PARAÍBA

Design de superfície e arte: processo de criação em estamparia têxtil como lugar de encontro. Miriam Levinbook

CURRÍCULO 1º ANO do ENSINO UNDAMENTAL LINGUAGEM

Q-Acadêmico. Módulo CIEE - Estágio. Revisão 01

4 Metodologia de Pesquisa com Usuários

III. Projeto Conceitual de Banco de Dados. Pg. 1 Parte III (Projeto Conceitual de Banco de Dados)

PLANO DE SAÚDE REAL GRANDEZA - ELETRONUCLEAR PERGUNTAS & RESPOSTAS

Imagens de professores e alunos. Andréa Becker Narvaes

A PRÁTICA DE JOGOS PARA A INTERIORIZAÇÃO DOS NOMES DE CAPITAIS E ESTADOS DO BRASIL NO ENSINO FUNDAMENTAL II

O Gerenciamento de Documentos Analógico/Digital

Efeitos das ações educativas do Curso de Qualificação Profissional Formação de Jardineiros na vida dos participantes.

O desafio das correlações espúrias. Série Matemática na Escola

Aula 9 ESCALA GRÁFICA. Antônio Carlos Campos

Dicas para você trabalhar o livro Mamãe, como eu nasci? com seus alunos.

NCE/15/00099 Relatório preliminar da CAE - Novo ciclo de estudos

A presente seção apresenta e especifica as hipótese que se buscou testar com o experimento. A seção 5 vai detalhar o desenho do experimento.

UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ CÂMPUS CURITIBA CURSO DE ENGENHARIA DE CONTROLE E AUTOMAÇÃO

Comunicações Digitais Manual do Aluno Capítulo 7 Workboard PCM e Análise de Link

Professora Sandra Bozza, você é a favor da alfabetização através do método fônico?

Como vender a Gestão por Processos em sua organização?

Áudio GUIA DO PROFESSOR. Idéias evolucionistas e evolução biológica

ORIENTAÇÕES BÁSICAS PARA COMPRA DE TÍTULOS NO TESOURO DIRETO

ERU Especificação de Requisitos do Usuário Bolsa de Serviços na Web

O que é coleta de dados?

convicções religiosas...

Sistema Integrado CAPES - Programa de Apoio a Eventos no País

4Distribuição de. freqüência

Meu nome é José Guilherme Monteiro Paixão. Nasci em Campos dos Goytacazes, Norte Fluminense, Estado do Rio de Janeiro, em 24 de agosto de 1957.

O ENSINO DE INGLÊS NA ESCOLA NAVAL Profa. Dra. Ana Paula Araujo Silva Escola Naval

ENSINO DE VOCABULÁRIO DE LÍNGUA INGLESA À LUZ DOS ASPECTOS INTERCULTURAIS

PNAD - Segurança Alimentar Insegurança alimentar diminui, mas ainda atinge 30,2% dos domicílios brasileiros

O PAPEL DAS FRONTEIRAS PROSÓDICAS NA RESTRIÇÃO DO PROCESSAMENTO SINTÁTICO

Sistemas de Numeração

HABILIDADES INFANTIS RELACIONADAS À PRÁTICA DE LEITURA E SUAS IMPLICAÇÕES ORTOGRÁFICAS NA ESCRITA

A Visão das Educadoras Sobre a Inclusão de Pessoas com Necessidades Especiais na Rede Regular de Ensino do Município do Rio de Janeiro.

AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA DA ESCRITA COMO INSTRUMENTO NORTEADOR PARA O ALFABETIZAR LETRANDO NAS AÇÕES DO PIBID DE PEDAGOGIA DA UFC

O Princípio da Complementaridade e o papel do observador na Mecânica Quântica

E Entrevistador E18 Entrevistado 18 Sexo Masculino Idade 29anos Área de Formação Técnico Superior de Serviço Social

Metadados. 1. Introdução. 2. O que são Metadados? 3. O Valor dos Metadados

INFORMATIVO. Novas Regras de limites. A Datusprev sempre pensando em você... Classificados Datusprev: Anuncie aqui!

SIGNIFICADOS ATRIBUÍDOS ÀS AÇÕES DE FORMAÇÃO CONTINUADA DA REDE MUNICIPAL DE ENSINO DO RECIFE/PE

MANUAL DE UTILIZAÇÃO. Produtos: Saúde Pró Faturamento Saúde Pró Upload. Versão:

O ENSINO E APRENDIZAGEM DE LEITURA EM LÍNGUA INGLESA NO CURSO TÉCNICO EM MECÂNICA NA ESCOLA TÉCNICA ESTADUAL 25 DE JULHO DE IJUÍ/ RS 1

Transcrição:

ANDRÉIA SCHURT RAUBER INVESTIGAÇÃO EM FONÉTICA EXPERIMENTAL: ESTUDOS E APLICABILIDADES nº1 Maio 2008 ATELIER CENTRO DE ESTUDOS HUMANÍSTICOS

Investigação em Fonética Experimental: Estudos e Aplicabilidades Andréia Schurt Rauber Instituto de Letras e Ciências Humanas, Universidade do Minho Introdução A aplicabilidade da fonética tem crescido rapidamente nos últimos anos. A procura por foneticistas ou por profissionais que tenham conhecimento de fonética tem se tornado recorrente, tanto na academia, como nos serviços públicos e na iniciativa privada. Estudos sobre distúrbios da fala, aquisição de língua materna e/ou estrangeira, bilingüismo, investigação forense, dentre outros, utilizam-se da fonética acústica para lograr resultados. Já na iniciativa privada, é comum a procura por engenheiros e lingüistas que tenham conhecimento sobre fonética para trabalharem no aprimoramento da relação homem-máquina, desenvolvendo conversores texto-voz e software para reconhecimento da fala. Para abordar a importância da fonética em diversos setores, este artigo está dividido em duas seções. Na Seção 1, escreverei sobre a fonética em termos acadêmicos, reportando os resultados de um experimento na área de aquisição de sons da segunda língua. Na Seção 2, abordarei algumas aplicabilidades da fonética, tanto na iniciativa privada como na esfera pública. 1. Fonética para fins acadêmicos: Estudo sobre a aquisição de sons de uma língua estrangeira Falantes de português brasileiro (PB) tendem a ter dificuldades para pronunciar algumas vogais do inglês 1. Observando-se a diferença entre os inventários vocálicos das duas 1 Neste artigo, refiro-me sempre ao inglês americano.

línguas, pode-se perceber que, no que concerne as vogais orais em posição tônica, o inglês possui 11 vogais (/i, I, e, E, Q,,, A,, o, U, u/) e o PB apenas 7 (/i, e, E, a, o,, u/). As vogais do inglês que causam mais dificuldades para serem pronunciadas por brasileiros são /I, Q, A, U/, exatamente as inexistentes no PB. Como o número de categorias fonológicas no inglês é maior do que no PB, o que acontece muito frequentemente é o aprendiz de inglês perceber duas categorias como uma e, consequentemente, ter dificuldades para produzir determinados sons. Vários estudos apontam para a influência da percepção na produção dos sons (e.g., Bion et al., 2006; Escudero, 2005; Flege, 1995; Kluge et al., 2007; Rauber et al., 2005), constatando através de suas análises que os sons que são mais bem percebidos são os mais bem pronunciados, já quanto menor a percepção, mais comprometida a produção. Exemplificando, a Figura 1 mostra a assimilação típica de /i/ e /I/ do inglês como /i/ do PB, /E/ e /Q/ do inglês como /E/ do PB, e /u/ e /U/ do inglês como /u/ do PB, ou seja, duas categorias da segunda língua (L2) são percebidas como uma da língua materna (L1). L2 L1 L2 L1 L2 L1 Inglês PB Inglês PB Inglês PB /i/ /E/ /u/ /i/ /E/ /u/ /I/ /Q/ /U/ Figura 1. Freqüente assimilação de vogais do inglês (L2) por falantes nativos do português brasileiro (L1) Para investigar como falantes proficientes de inglês como língua estrangeira (ILE) pronunciam as vogais do inglês, Rauber (2006) investigou a produção de três pares de vogais (/i/-/ /, / /-/æ/, / /-/u/) por professores de inglês para verificar qual(is) par(es) provocariam maiores dificuldades e seriam pronunciados de forma menos semelhante à de falantes nativos do inglês. Os detalhes sobre os participantes, a coleta de dados e os resultados serão descritos nas subseções seguintes. 2

1.1 Participantes Participaram do experimento onze mulheres e sete homens brasileiros, cujas idades variaram de 22 a 47 anos (média de 32,6 anos) no grupo das mulheres, e de 26 a 41 anos (média 32 anos) no grupo dos homens. Nenhum deles havia passado mais de dois meses em país cuja língua falada predominantemente fosse o inglês. Todos os participantes eram professores de inglês e o seu tempo de experiência no ensino de ILE variava de um a quinze anos (media de 8,1 anos). Também foram analisadas as produções de falantes nativos do inglês americano. O grupo de americanos era formado por quatro mulheres (idades entre 25 e 44 anos, média 33,5 anos) e cinco homens (idades entre 18 e 36 anos, média 26,6 anos). Todos os participantes haviam residido em Sacramento (Califórnia) durante a maior parte de suas vidas. Os americanos não falavam línguas estrangeiras e não tinham contato com falantes de outros idiomas em sua rotina diária. 1.2 Material e procedimento Para garantir que as vogais-alvo fossem produzidas em determinados contextos fonológicos, os participantes leram 66 frases, seis para cada uma das onze vogais do inglês /i, I, ei, E, Q,, A,, ou, U, u/, que foram inseridas nas seguintes estruturas: bvt, pvt, svt, tvt, tvk e kvp. Devido à impossibilidade de se formar palavras reais utilizando-se destas estruturas para todas as vogais, houve a necessidade de se incluir uma palavra inventada, cinco palavras com uma obstruinte diferente em posição de códa, e uma sem ataque (veja a Tabela 1). 3

Tabela 1. Palavras-alvo lidas pelos americanos e brasileiros Vowel bvt pvt svt tvt tvk kvp/kvt [i] Beat Pete Seat Teat Teak Keep [ ] Bit Pitt Sit Tit Tick Kit [e ] Bait Pate Sate Tate Take Kate [ ] Bet Pet Set Tet Tech Kept [æ] Bat Pat Sat Tat Tack Cat [ ] But Putt Shut** Tut tuck Cut [ ] Bot Pot Sot Tot tock Cot [ ] Bought ought** Sought Taught talk Caught [o ] Boat Poach Soak** Tote toke Coat [ ] book** Put Soot -- took cook** [u] Boot poop** Suit Toot tuke* Coot * Palavra inventada. ** Contexto fonológico difrente. As palavras-alvo foram inseridas na frase veículo: CVC. CVC and CVC sound like CVC (CVC = consoante, vogal, consoante). Assim, os participantes leram frases como: Beat. Beat and Pete sound like seat. Devido ao fato de algumas palavras serem um tanto incomuns (e uma inclusive inexistente no inglês), informou-se aos participantes que as três palavras da frase veículo deveriam rimar com a palavra isolada. Apenas as três palavras-alvo da frase veículo foram analisadas. A estrutura bvt foi lida, mas não analisada, uma vez que é a única estrutura formada por uma consoante vozeada. As 22 frases-alvo foram aleatorizadas e cada uma foi lida três vezes (66 frases), resultando em 162 palavras analisadas (11 vogais x 5 contextos fonológicos x 3 repetições = 165, menos as três repetições da palavra inexistente /tut/ = 162). Preferiu-se descartar /tut/ durante a análise devido à dificuldade em produzi-la, uma vez que é uma palavra inexistente. O total de vogais analisadas foi de 4.374: 1.458 (162 x 9 participantes) produzidas pelos americanos e 2.916 (162 x 18 participantes) produzidas pelos brasileiros. Os dados foram gravados com um minidisk Sony MZ-NHF800, com um microfone condensado Sony ECM-MS907, com a configuração de amostragem 22 khz, 16-bit, mono. 4

As frases foram gravadas em uma sala silenciosa e, caso houvesse algum ruído durante a gravação, a frase era relida pelo participante. A leitura foi feita em ritmo de fala normal. Caso fosse muito rápida ou muito lenta, o item deveria ser relido. Para minimizar a influência da ortografia, uma gravura contendo uma palavra monossilábica com a vogal-alvo era exibida antes das frases. Conforme ilustrado na Figura 2, o participante veria a figura de um gato e diria cat e então saberia que todas as vogais das palavras isoladas e da frase que apareceriam no slide seguinte deveriam rimar com cat. (Primeiro slide) Bat Pat Bat and Pat sound like sat. Sat (Segundo slide) Figura 2. Exemplificação da leitura do corpus. 5

Para que houvesse um número significativo de amostras das vogais, os participantes liam a primeira palavra isolada e a frase, em seguida a segunda palavra isolada e a frase e finalmente a terceira palavra isolada e a frase. 1.3 Análise de dados As propriedades acústicas analisadas para investigar a produção das vogais do inglês por americanos e brasileiros foram a duração e os dois primeiros formantes das vogais (F1 e F2). Os dados foram analisados no software Praat, versão 4.4 (Boersma & Weenink, 2006). O primeiro passo foi segmentar todas as vogais manualmente para então rodar um script no Praat e obter os valores das propriedades acústicas automaticamente. Como os contextos fonológicos nos quais as vogais estavam inseridas eram formados por consoantes surdas, a identificação dos pontos de início e fim das vogais foi facilitada. Estes pontos eram identificados de acordo com o primeiro e último pulsos periódicos da vibração das pregas vocais, visualizadas na forma de onda, que tivessem uma amplitude considerável e fossem semelhantes ao período da vogal. Tanto o início como o fim da seleção eram feitos próximos a um cruzamento zero, isto é, quando a onda atravessa a amplitude zero (veja a Figura 3). sise1 sise 96.035 96.2 Time (s) Figura 3. Exemplo de segmentação de um /i/ na palavra sisse. 6

Os valores formânticos foram determinados automaticamente através da mediana dos valores medidos nos 40% da porção central de cada vogal (análise LPC Linear Predictive Coding). Esta área central das vogais é, na grande maioria das vezes, a porção mais estável, ou seja, a menos afetada pelas consoantes que as precedem e sucedem. Após a medição dos formantes, os gráficos foram plotados no Praat em Hertz (escala logarítmica). Para analisar a distância entre as vogais de cada par, a distância Euclidiana foi calculada. A distância Euclidiana mostra o quanto os valores de F1/F2 de uma vogal se distanciam dos valores de F1/F2 de outra vogal (veja Figura 4). Figura 4. Distância Euclidiana entre as vogais /i/ e /e/. 1.4 Resultados e conclusão Para analisar o quanto a produção das vogais do inglês por brasileiros se aproxima (ou se distancia) da produção dos americanos, a diferença entre a distância Euclidiana dos valores de F1/F2 foi computada. Para que os espaços vocálicos dos dois grupos fossem comparáveis, 7

a produção dos brasileiros foi normalizada baseando-se nos valores mínimos e máximos de F1 e F2 dos americanos para cada gênero (feminino e masculino). As análises revelam que a distância Euclidiana entre os pares de vogais do inglês produzidos pelos brasileiros é menor, tanto para as mulheres como para os homens, do que a distância Euclidiana entre as vogais dos americanos. Embora os dois primeiros formantes das 11 vogais do inglês tenham sido medidos, apenas as distâncias Euclidianas entre as vogais dos pares (/i/-/ /, / /-/æ/, / /-/u/) foram analisadas. A distância Euclidiana entre as vogais dos americanos é significativamente maior que a dos brasileiros, conforme constataram as análises estatísticas de variância (ANOVA). O par de vogais / /-/æ/ foi o produzido com a menor distância Euclidiana pelos brasileiros, seguido por /i/-/ / e / /-/u/ (veja Figuras 5 e 6). 300 i i u F 1 (Hertz) 400 500 600 I e e I 2 U o u U o 800 æe E æ 2 A O AO 1000 3000 2000 F 2 (Hertz) 1500 1000 Figura 5. Vogais normalizadas produzidas pelas americanas (em cinza) e pelas brasileiras (em preto) 8

300 i i u F 1 (Hertz) 400 500 600 ei e I E Eæ æ 2 2 U u U o o A A O O 800 1000 3000 2000 1500 F 2 (Hertz) 1000 800 Figura 6. Vogais normalizadas produzidas pelos americanos (em cinza) e pelos brasileiros (em preto) Com relação à duração das vogais produzidas pelos brasileiros, ANOVAs revelaram que as vogais /I/, /E/ e /U/ foram significativamente mais curtas do que /i/, /Q/ e /u/, respectivamente, seguindo a tendência americana. No entanto, as vogais curtas produzidas pelos brasileiros não chegaram a ser tão curtas como as dos americanos. Comparando-se a distância Euclidiana e a duração entre a produção das vogais dos americanos e brasileiros, os resultados revelam que /i/-/i/ é o par de vogais que mais se aproxima à produção dos americanos tanto em termos espectrais como de duração. Já com relação aos pares /U/-/u/ e /E/-/Q/, a distinção entre as vogais é feita através da duração e não da qualidade espectral Portanto, os resultados permitem concluir que os brasileiros não fazem uso apenas da qualidade espectral ou da duração para fazer a distinção entre os pares de vogais, já que a preferência entre as pistas acústicas (duração ou qualidade espectral) se dá de acordo com o par de vogal a ser pronunciado. As duas pistas parecem ser usadas de forma similar para distinguir entre as vogais altas, enquanto que a duração é a principal pista acústica para 9

distinguir entre as vogais baixas. O grau de dificuldade para a produção dos pares de vogais investigados é, do mais para o menos difícil, /E/-/Q/ > /U/-/u/ > /i/-/i/. Este estudo permitiu ilustrar o uso da fonética experimental para a análise de dados de aquisição de língua estrangeira, ou seja, uma investigação acadêmica. A próxima seção abordará a importância da fonética para fins comerciais, clínicos e forenses. 2. Fonética e suas aplicabilidades Com os avanços tecnológicos, a fonética tem estado cada vez mais presente na vida cotidiana. Torna-se comum consultar o saldo bancário ou acessar as mensagens de correio eletrônico por telefone, ou deslocar-se para um endereço desconhecido ouvindo as instruções de um navegador GPS. Para que fosse possível disponibilizar estas conveniências, empresas e universidades desenvolveram e desenvolvem conversores texto-voz. No entanto, para que um conversor texto-voz seja desenvolvido de forma satisfatória para transmitir naturalidade da voz sintetizada ao usuário, é importante empregar lingüistas ou engenheiros que possuam conhecimentos de fonética. Para ilustrar tal importância, algumas etapas que envolvem o conhecimento fonético para o desenvolvimento de um conversor texto-voz serão mencionadas nesta seção. Após a criação de regras e gramáticas que permitem que um texto seja normalizado, ou seja, que um texto torne-se pronto para que haja a conversão grafema-fonema (tarefas da etapa chamada front end), chega o momento de transformar o texto em voz (tarefas da etapa chamada back end). Para tal, dentre muitos procedimentos de engenharia e de lingüística, é necessário que se crie um banco de dados para disponibilizar os segmentos (fonemas) a serem utilizados no processo, ou seja, é necessário haver uma voz. Este banco de dados consiste de uma série de frases (geralmente de 6.000 a 10.000) que variam em tamanho (frases curtas, médias e longas) e conteúdo (domínios específicos como, por exemplo, notícias de trânsito, 10

endereços, nomes de pessoas e estabelecimentos, metereologia, finanças). As frases são gravadas por um locutor ou locutora profissional, os chamados voice talents. A leitura destas frases deve ser feita de forma natural e o ritmo de fala deve ser o mais constante possível durante a gravação de todo o corpus. Uma vez que as frases tenham sido gravadas, faz-se a transcrição fonética das mesmas de forma automática. No entanto, como é comum haver discrepâncias entre o que foi lido e a frase propriamente dita, um lingüista, preferencialmente com conhecimento de fonética, deve fazer uma revisão minuciosa da transcrição feita pela máquina. Terminada a revisão da transcrição fonética, todos os fonemas do corpus são segmentados de forma automática. No entanto, mais uma vez é importante que um lingüista faça a conferência do trabalho realizado pela máquina, já que a segmentação deve conter um número mínimo de erros. O trabalho do lingüista é o de mover as fronteiras de fonemas que foram segmentados de forma equivocada, conforme ilustrado nas Figuras 7 e 8. Figura 7. Segmentação automática contendo alguns erros 11

Figura 8. Segmentação revisada por um lingüista Após o processo de segmentação, os fonemas estão prontos para serem sintetizados de acordo com o sistema de conversão texto-voz. Um dos tipos de síntese é a concatenativa, ou seja, para formarem-se palavras e frases são concatenados demifones, fonemas, sílabas, palavras ou até mesmo pequenas frases do corpus. Por exemplo, para sintetizar a frase Atenção ao sinal!, o sintetizador pode (i) concatenar segmento por segmento, respeitando os contextos fonológicos e as posições de cada fonema; (ii) encontrar as três palavras gravadas em diferentes frases no corpus, ou (iii) encontrar a frase toda. Certamente ao encontrar a frase toda a síntese torna-se muito natural, já que não haverá a junção de segmentos advindos de diferentes doadores. Obviamente esta é uma descrição muito superficial de um conversor texto-voz, mas o principal objetivo nesta seção é o de mostrar a importância do conhecimento de fonética, de símbolos fonéticos, da interpretação de formas de onda e espectrogramas durante as etapas de desenvolvimento de um sistema de síntese de fala. 12

Outro exemplo da importância da fonética acústica é a sua aplicação para fins clínicos em casos de distúrbios de fala. Através da análise de espectrogramas, fonoaudiólogos podem complementar o seu diagnóstico e examinar os sinais de perturbação da voz. Os espectrogramas também podem auxiliar o acompanhamento do progresso (ou não) da produção de sons problemáticos pelo paciente. Já o uso da fonética para fins legais é no que consiste a fonética forense. Esta aplicação da fonética acontece, por exemplo, quando se quer (i) investigar as chances de que a gravação de uma dada voz seja de uma certa pessoa; (ii) transcrever uma gravação que seja difícil de entender (por haver muito ruído de fundo, por exemplo); (iii) assegurar a confiabilidade de uma transcrição; (iv) verificar se uma gravação é verdadeira ou tenha sido falsificada de alguma forma; ou (v) detectar o provável local de origem de um determinado locutor através da identificação de seu sotaque. Em resumo, nesta seção foram apresentadas algumas das diversas aplicações da fonética que se converteram em ferramentas de uso pelo cidadão comum. A seção seguinte tratará de breves conclusões sobre o tema do artigo. Conclusão Neste artigo, procurou-se ilustrar a importância do conhecimento da fonética não só para estudos acadêmicos, mas para o desenvolvimento de produtos que nos rodeiam no dia-adia. Para ilustrar uma das utilizações da fonética experimental em termos acadêmicos, foram reportados os resultados de um estudo da aquisição de sons de uma língua estrangeira. Para ilustrar a importância da fonética em termos comerciais, foi apresentada uma breve descrição sobre um conversor texto-fala. Por fim, mencionou-se como a fonética pode ser uma ferramenta útil nas áreas clínica e forense. 13

Embora nem sempre nos demos conta, a fonética nos rodeia. A iniciativa privada, principalmente, utiliza estudos fonéticos para desenvolver ferramentas que automatizem determinados serviços, facilitando o acesso a informações ou comodidades ao cidadão comum. É também válido lembrar da aplicabilidade de estudos fonéticos para o desenvolvimento de ferramentas que possibilitem o acesso à informação e comunicação de pessoas com deficiência ou diminuição de visão (conversores de texto-voz) e audição (reconhecimento de voz). Os exemplos deste artigo demonstram que o conhecimento sobre fonética é aplicável em diferentes áreas, fato que tende a ser pouco explorado nos cursos de graduação e pósgraduação em Letras ou Lingüística. O objetivo deste artigo foi o de justamente relembrar ou ilustrar algumas de suas aplicabilidades e de, quem sabe, motivar os alunos de Letras a olharem para a disciplina de Fonética de forma curiosa e atraente. Bibliografia Bion, Ricardo Augusto Hoffmann / Paola Escudero / Andréia Schurt Rauber / Barbara Oughton Baptista (2006), Category formation and the role of spectral quality in the perception and production of English front vowels, in Proceedings of INTERSPEECH 2006, Pittsburgh, pp. 1363-1366. Boersma, Paul / David Weenink (2006), PRAAT: doing phonetics by computer (Version 4.4.23) (Computer program), retrieved 12 June 2006, from http://www.praat.org. Escudero, Paola (2005), Linguistic perception and second language acquisition (Vol. 113). Utrecht: LOT. Flege, James Emil (1995), Second language speech learning theory, findings, and problems, in Winifred Strange (ed.), Speech perception and linguistic experience: Issues in cross-language research, Timonium, MD: York Press, pp. 233-277. Kluge, Denise Cristina / Andréia Schurt Rauber / Mara Silvia Reis / Ricardo Augusto Hoffmann Bion (2007), The relationship between the perception and production of English nasal codas by Brazilian learners of English, in Proceedings of INTERSPEECH 2007, Antuérpia, pp. 2297-2300. Rauber, Andréia Schurt (2006), Perception and production of English vowels by Brazilian EFL speakers. Unpublished doctoral dissertation. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina. Rauber, Andréia Schurt / Paola Escudero / Ricardo Augusto Hoffmann Bion / Barbara Oughton Baptista (2005), The interrelation between the perception and production of English vowels by native speakers of Brazilian Portuguese, Proceedings of INTERSPEECH 2005, Lisboa, pp. 2913-2916. 14