III Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e IX Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental - 2008 TEMA LIVRE: Violência psíquica, violência manifesta e novas ofertas culturais: algumas reflexões Vanuza Campos Postigo Em nosso momento histórico, a cultura vem sendo atravessada por incessantes transformações nos planos econômico, político, ético, tecnológico, religioso que vêem provocando uma série de rupturas de fronteiras, limites, hierarquias e valores sociais. Estas mudanças estariam afetando diretamente o modo de funcionamento do mundo ocidental e não podemos absolutamente desprezar a importância desta influência nos processos de subjetivação. Nos novos parâmetros estabelecidos pelo contemporâneo, a exteriorização, o espetáculo, a imagética seriam dimensões valorizadas em detrimento a uma interiorização das vivências subjetivas. Compreendemos que vivemos época extremamente exposta ao traumático, com respostas subjetivas permeadas por este modo de funcionamento, advindo desta perda de referenciais e parâmetros súbita e violentamente modificados. A quebra de paradigmas, a perda de valores, a porosidade dos limites, fronteiras frágeis e pouco delimitadas também vem sendo exploradas como um fator de alto impacto nas subjetividades contemporâneas. Encontramos uma afinidade desse pensamento em Zygmunt Bauman (2001) que lida, entre outros temas, com a globalização que traz em seu aporte um horror à diferença e um intenso combate à ambivalência em todos os níveis (político, social e mental), às voltas com um sujeito assolado pela falta de garantias - de posição, títulos e sobrevivência -, pela incerteza - em relação à sua continuação e estabilidade futura - e pela insegurança - do corpo, do eu e de suas extensões: posses, vizinhança, comunidade. (Op. cit,, p. 184).
Bauman fala de um sujeito desapossado, digamos assim, de si mesmo e do outro. Podemos nos voltar para o social e perceber estas perdas, rupturas e mudanças nas mais diversas instâncias. A família, instituição tão importante na construção da sociedade burguesa, metamorfoseou-se de tal maneira que pouco reconhecemos sua estrutura modelar concebida pelos higienistas do século XIX. Nos deparamos hoje com as mais diversas constelações familiares, biparentais, monoparentais, heretossexuais, homossexuais, com uma composição de padrastos, madrastas, enteados, meio-irmãos, enfim, assumindo diversas estruturações. Não podemos deixar de mencionar a questão do declínio da função paterna e todas as questões que vêm nesse bojo já amplamente discutidas nos últimos tempos. Outro exemplo destas vertiginosas mudanças encontramos na importância que o consumo assumiu na construção de uma identidade subjetiva, como vem sendo apontada por diversos autores (Castro, 2001, Rocha, 1995) - e destacamos aí uma construção de subjetividade mais do que nunca calcada no imediatismo e efemeridade alimentadas pela mídia. Freud já nos apontada o quanto o sujeito é sobredeterminado em suas identificações, porém mais do que uma pluralidade de modelos identificatórios, evidencia-se uma fragilidade e fluidez que não mais sustentam o sujeito em termos de ideais e de sustentação subjetiva. Parece que questões arcaicas na construção do sujeito, tal como Freud tão bem apontou, como o ser e o ter, ganham hoje novas dimensões mediadas por um ter que se torna imperativo. Por outro viés, observamos como a tecnologia vem ensejando novas modalidades de relação com o social, como corpo e com a própria subjetividade. Partindo de um exemplo singelo, imaginemos que outrora uma comunicação entre pessoas separadas geograficamente poderia levar semanas para se realizar como uma simples carta transportada a outro continente por navio da década de 20! Agora, em milésimos de segundos, a mensagem chega pela internet em qualquer lugar do mundo com conexão virtual. Um exemplo simples de como o tempo de hoje existe de uma maneira bem diferente de algumas décadas atrás. Imaginemos explicar a alguém com menos de 20 anos como antes deixávamos recados com as pessoas e
esperávamos o retorno do telefonema, pois não dispúnhamos do acesso imediato a uma pessoa proprietária de um celular. Um trabalho psíquico e tanto esse de espera, de adiamento que o adolescente imediatista de hoje tem que se deparar... Estes breves recortes refletem algumas dentre as inúmeras mudanças na cultura e de sua repercussão na subjetividade humana. Mas iremos aqui problematizar como essas transformações modificaram a forma de relação do sujeito consigo e com o mundo, à medida e, que esse outro da família, da mídia, do social não sustenta, não ampara o sujeito devido a toda a sua fragilidade, fluidez e pelo próprio desamparo. Como coloca Lipovestky, estimula-se uma emancipação individual estendendo a todas as categorias de idade e de sexo (2005, p.05), abandonando o sujeito em seu vazio. De maneira mais contundente, Charles Melman (2003), afirma que estamos assistindo ao fim de uma era, radicalizando a idéia de que estaríamos em um período de mutação, passando de uma cultura fundada no recalque dos desejos que chama de uma cultura da neurose para uma outra que promove a perversão, acrescentando que o sujeito de outrora caracterizado por uma economia psíquica organizada pelo recalque estaria sendo substituído por uma nova economia psíquica organizada pelo gozo. Em sua compreensão, vivemos o abandono de uma cultura, que obrigava os sujeitos a uma religião, ao recalque dos desejos e às neuroses para nos dirigirmos a uma outra que propagandeia o direito à livre expressão de todos os desejos e sua plena e imediata satisfação. Nessa sociedade contemporânea, uma mutação tão radical derruba vertiginosamente valores que as tradições moral, política, religiosa e sociais transmitiam: o céu está vazio, tanto de Deus quando de ideologias, de promessas, de referências, de prescrições, e que os indivíduos têm que se determinar por eles mesmo, singular e coletivamente (p.16). Nesse vazio, compreendemos a representativa proliferação de quadros clínicos cuja problemática envolve a apresentação de um discurso esvaziado em sua interioridade e até mesmo em sua afetividade, com um sujeito convocando o corpo e as passagens ao ato em detrimento de um trabalho de representação e simbolização. Nestas configurações clínicas, a precariedade
na elaboração de um trabalho psíquico é correlata à insistência do apelo do sujeito à dimensão compulsiva e disruptiva, resposta possível ante a fragilidade de seus recursos egóicos, em um modo de funcionamento marcado pelo traumático. Na compreensão do sujeito contemporâneo que adentra a clínica psicanalítica, um autor que vem em nosso auxílio é Figueiredo (2003) que busca articular os determinantes históricos e culturais dos processos de subjetivação contemporâneos e os mecanismos metapsicológicos predominantes em algumas modalidades de funcionamento psíquico - referidas à clínica do traumático ou catastrófico - presente em nossos dias. Ele vai afirmar que a Idade Moderna é uma época extremamente exposta ao traumático, vendo a explicação no fracasso reiterado da tarefa moderna, a convivência inevitável com seus produtos involuntários e indomáveis o ambíguo, o contingente e as ambivalências (...) (p.13). Daí sua preocupação em analisar a clínica contemporânea numa perspectiva historicizada, pois entende que as metapsicologias são: construções teóricas nas quais se expressam e se articulam modos de relação historicamente determinados com o outro e consigo próprio, com a doença e com a saúde, com os indivíduos e com as coletividades, com os espaços e os tempos. (p.43) A partir do que viemos apresentando, nessa era do traumático estamos às voltas com aquilo que no percurso clínico de Freud o levou a postular a existência de uma pulsão de morte (1920) funcionando no aparelho psíquico, trazendo a figura do trauma, ressignificada agora como sendo de origem interna e pulsional. Apontando para um modo de funcionamento psíquico, além do princípio do prazer e para os limites da representação a partir da força de uma pulsão que não se inscreve no aparelho psíquico. Freud traz assim a violência psíquica para o centro da constituição e funcionamento do psiquismo.
Vale lembrar, ainda que sucintamente, como no ressurgimento do trauma na teoria Freud desenvolve a idéia de uma alteridade interna advinda de um pulsional excessivo e disruptivo, que submete e apassiva o ego do sujeito. Estamos assim diante da violência de uma pulsão que insiste no psiquismo e submete o ego do sujeito ao traumático, deixando-o numa posição de passividade pulsional. Observamos aí a precariedade no estabelecimento de fronteiras e limites agora referentes ao plano intrapsíquico, entre as instâncias. Observamos um social onde o outro não se oferta como um continente pra a o traumático que a violência psíquica do pulsional mortífero, do traumático, não encontra simbolização, significação em uma era tão cambiante e frágil em suas mutações. Munidos deste referencial teórico, podemos conjecturar como este cenário contemporâneo enseja a incidência das violentas expressões psicopatológicas na clínica, assim como diversas manifestações auto e hetero violentas no social. Automutilações, violentos distúrbios alimentares, explosões psicossomáticas, relações compulsivas e violentas com diversos objetos, nos remetem à construção e manutenção de uma subjetividade próprio ao traumático. Isso sem mencionarmos as violências manifestas nos social que nos remetem à barbárie, como vemos exaustivamente nos noticiário, ouvimos de nossos pacientes, pares ou da qual somos ás vezes vítimas e testemunhas. Em uma paradoxal situação de fragilidade psíquica, o sujeito age a violencia transitando num eixo atividade/passividade. Por um lado, o sujeito se encontra atravessado pelo excesso pulsional transbordante que o submete a uma violência psíquica advinda de seu próprio pulsional não-ligado, passividade pulsional que se encontra na base de seu funcionamento psíquico. Por outro lado, a ação violenta auto ou hetero - se apresenta como uma resposta, agida, com o sujeito respondendo elementar e precariamente ao traumático. Estamos atravessando um momento histórico atravessado pela manifestação das mais diversas formas de violência. Buscamos aqui destacar como esta violência manifesta encontra suas origens num modo de funcionamento psíquico apresentado por Freud a partir da concepção de um aparelho psíquico inundado pela pulsão de morte e da violência psíquica
inerente ao sujeito desde sua constituição. Ou seja, a partir de um encontro com um outro que media, simboliza e dá continente a este violento pulsional mortífero. Questionamos como neste momento histórico, subseqüente ás mais diversas formas de rupturas e quebra de paradigmas, leis, valores ideológicas, políticas, tecnológicas, sociais o sujeito se encontra se um aporte no Outro que possa ligar, conter essa violência pulsional, de modo em que o sujeito, incapaz de internalizar esse pulsional, o expele do aparelho psíquico de forma precária. O trabalho, possível sim ao nosso ver, do analista é o de escutar, acolher esse sujeito e do espaço analítico uma possibilidade de historicização da trajetória desse sujeito, ajudar a criar um lugar próprio na vida pessoal e social do sujeito, sustentar condições para a fantasia e a representação, forjar um tempo para a angústia, para o desprazer. Esse é nosso desafio, acolher a violência com a escuta. BIBLIOGRAFIA BAUMAN, Zygmunt (2001) Modernidade líquida, Rio de Janeiro, Zahar. CASTRO Lúcia Rabello de (Organizadora) (2001) -. Crianças e jovens na construção da cultura. Rio de Janeiro, Nau. FIGUEIREDO, Luis Cláudio (2003) Psicanálise: elementos para uma clínica contemporânea, São Paulo, Escuta. FREUD, Sigmund (1920) - Além do princípio de prazer, v. XVIII in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Rio de Janeiro: Imago, 1987. LIPOVETSKY, Gilles (2005 - A era do vazio: Ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri, Manole. ROCHA, Everardo (1995) - A sociedade do sonho: Comunicação, cultura e consumo. Rio de Janeiro: Mauad, 1995.