SAUDOSA MALOCA E O PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL CONSTITUÍDO POR ADONIRAN BARBOSA.



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SAUDOSA MALOCA E O PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL CONSTITUÍDO POR ADONIRAN BARBOSA. Airton José Cavenaghi (Doutor em História Social FFLCH-USP; Professor Mestrado em Hospitalidade, Universidade Anhembi Morumbi UAM-SP. Contatos: cavenagh@usp.br ; cavenaghi@anhembimorumbi.edu.br) RESUMO Este trabalho pretende abordar a análise do Patrimônio Cultural Imaterial existente na obra musical Saudosa Maloca de autoria de Adoniran Barbosa. Pretende -se, entre outros aspectos, resgatar o imaginário cultural existente na interpretação da cidade de São Paulo pelos seus habitantes, entre as décadas de 1950 e 1960, época da produção da música por Adoniran. Nesta música é possível observar uma leitura da cidade em transformação pelo olhar de seu autor. Questiona-se, se o modelo descrito, referencia uma realidade imaginada ou vivenciada por ele? A qual cidade refere-se Adoniran, e quais são, seus reais interlocutores? Neste espaço de interpretação de Adoniran, o quê se percebe é o modelo de resgate de um imaginário do autor, ou seja, aquilo que se projeta vai além daquilo que é historicamente constituído. Palavras-Chave: Adoniram. Patrimônio. São Paulo. Urbanização. A Saudosa Maloca Adoniran Barbosa, pseudônimo artístico de João Rubinato (1910-1982), era filho de imigrantes italianos da primeira leva a chegar ao Brasil, nas décadas finais do século XIX. Sua história e trajetória artística foram muito bem retratadas em cinco importantes obras biográficas. A primeira, realizada no ano de 1985 (KRAUSCHE), pode ser considerada uma escrita do calor da hora, ou seja, produzida logo após a morte do artista mas fundamental ao dar ao mesmo a expressão história necessária a identificá-lo como personagem cotidiano da cidade de São Paulo. A segunda, que sai do prelo poucos anos

depois, em 1987 (GOMES), retrata a visão do samba paulista e a expressão de Adoniran. A terceira escrita em 2002 (MOURA; NIGRI), já esclarece a formação da mentalidade lúdica de Adoniran, embora não tenha buscado momentos e inserções do artista no meio do qual fazia parte. Na quarta obra escrita em 2003 ( MUGNAIRI JUNIOR), é mostrada efetivamente uma obra biográfica do cantor. Ricamente ilustrada, pecar por afirmar de forma categórica, situações que podem possuir outro víeis de análise. Neste artigo optou-se por muitas das informações processadas por Mugnairi Junior, embora se tenha buscado outros elementos analíticos para corroborar, ou não, as informações existentes. A quinta obra biografia, talvez tenha sido a mais completa. Realizada em 2004 (CAMPOS JUNIOR), mostra um artista vinculado à seu tempo, além de relatar com detalhes encontros de Adoniran com outros personagens importante da Musica Popular Brasileira do período, entre eles Elis Regina. O livro chega a ser triste, ao demonstrar o sentimento de perda do poeta, embora, pela sua publicação, reforce o amadurecimento da importância de Adoniran Barbosa e de suas canções, para a interpretação da história paulista. A representação cultural articulada na música Saudosa Maloca ; originalmente gravada em 1951 pelo selo Continental, em um compacto de 78 rpm com o título Saudades da Maloca ; tornou-se um ícone de interpretação da cidade em transformação. A cidade de São Paulo em transição estrutural, amparada nas reformas urbanísticas iniciadas desde o início do século XX. A pergunta que se estabelece de imediata seria: Na música Saudosa Maloca, havia efetivamente a experiência vivenciada por Adoniran, ou apenas o músico representa aquilo que naquele momento era o cotidiano vivido? Diniz (2006, p. 84), argumenta que, a história da música Saudosa Maloca simboliza o olhar do cronista. Saindo de casa com seu cachorro de estimação, Peteleco, Adoniran encontrou Mato Grosso, amigo de bate-papo. Apovoradíssimo, Mato Grosso relatou que o prédio onde morava seria demolida. A partir da comoção com as dores do amigo, Adoniran teria composto a canção.

Reflexo do vivido ou percepção do cotidiano? A famosa maloca, teria existido, ou apenas foi projetada em memórias absorvidas pelo músico? Em um São Paulo do início dos anos de 1950, o quê se podia observar era a transformação brutal de suas estruturas urbanas. A cidade caminhava para se tornar o centro das atenções e palco das comemorações eloqüentes de seu IV centenário que se aproximava. Estas transformações eram alardeadas e difundidas em propaganda em revistas e rádio. Meios de comunicação que penetravam todas as camadas da população local, aquilo que Lofego (2006, p.33) definiu como um momento em que: a propaganda se destaca, ocupando um papel essencial para o sucesso das comemorações quatrocentonas, além de contribuir de forma decisiva para a cristalização das imagens sobre a história e a memória de São Paulo. Seria esta a São Paulo que Adorian vivenciava? Provavelmente sim, embora acompanhasse de perto as idéias propagadas pelo rádio, no qual trabalhava desde o final da década de 1930, primeiro na Rádio São Paulo e após pela Difusora. A Saudosa Maloca da qual falava Adoniran, poderia ter sido as antigas edificações do Hotel Albion, na rua Alegre, atual Brigadeiro Tobias. (MUGNAIRI JUNIOR, 2003, p.79). Uma das informações referentes ao hotel diz que já figurava como um meio de hospedagem desde 1878, e pertencia a James Porter, ficando localizado no n.º 03 da própria Rua Alegre (MARQUES, 1878, p. 186). Há, também a indicação que o Hotel Albion teria iniciado suas atividades após 1890, nas dependências da antiga residência de Antonio Alves Penteado. Esta última referência parece ser a mais correta, fato que não desqualifica a informação anterior de Marques (1878). Provavelmente o Hotel tenha sido transferido de endereço, aproveitando-se das amplas dependências existentes na antiga casa dos Álvares Penteado.

Figura 01_Casa de Antônio Álvares Leite Penteado. Fotografia anônima (1929).Acervo da Biblioteca da FAU/USP. Reprodução de José Rosael. (CAMPOS, 2005, p. 51). A Rua Alegre, tornou-se importante por ser ponto de trânsito em direção a Estação Ferroviária da Luz, inaugurada em 1867. As reformas urbanísticas ocorridas no local ganharam destaque após a década de 1930, quando muito da política urbanística da cidade voltou-se para o mercado imobiliário. O país, e principalmente São Paulo, enfrentava os reflexos da Crise de 1929, e com a queda das exportações cafeeiras, após a ascensão de uma nova elite política advinda da Revolução de 1930, o capital financeiro disponível foi aplicado em novas áreas. O mercado imobiliário na cidade de São Paulo ganhou força e passou a ser o investimento de maior rentabilidade e liquidez até início da década de 1960. (DI MONACO, 2007.p.322). Em Saudosa Maloca é isto que Adoniran visualiza e canta, embora romantizando, talvez, a cidade palco de suas andanças e sentimentos de memória.

A identidade do Patrimônio Na memória de Adoniran, a Saudosa Maloca adquire a noção de Monumento: uma identidade coletiva. Chaoy ( 2001, p.18), assim se expressa nesta caracterização, na qual, o sentido original do termo [monumento] é aquilo que traz à lembrança alguma coisa. A natureza afetiva do seu propósito é essencial: não se trata de apresentar, de dar uma informação neutra, mas de tocar, pela emoção, uma memória viva. A memória que é produzida aproxima as idéias; lembranças e significações cotidianas; e representa a identidade necessária a fomentar no autor a recepção de significados próprios ao seu universo vivido. Isto pode ser percebido pela própria recepção que a música Saudosa Maloca teve com seu suposto público consumidor. De imediato a música não alcançaria o sucesso desejado, observando que Adoniran teria vendido apenas duas cópias da gravação original. O sucesso esperado por ele, em relação a sua música, só viria com a interpretação e gravação de Saudosa Maloca, pelo conjunto dos Demônios da Garoa, em 1955. Esta gravação vendeu cerca de 90 mil cópias, trazendo para Adoniran o sucesso desejado.(mugnairi JUNIOR, 2003, p.80). Nesta análise é possível perceber o mecanismo de identificação dado ao objeto, que adquire significado quando ele passa a ser a representação de uma memória coletiva. Seria importante, neste mecanismo de propagação, a música chegar as ondas do rádio para ser reconhecida como um veículo propagador daquilo que o receptor vivenciava. Nesta linha de interpretação a música, por exemplo, seria o elemento motivador do programa radiofônico Histórias das Malocas, transmitido pela então Rádio Record, e no qual o próprio Adoniran interpretava um personagem: Charutinho. Os valores envolvidos, na divulgação do programa, certamente beberam da fonte de Adoniran, embora a recepção por parte do público só tenha sido possível após a formação de uma memória de

identificação, propagada e absorvida pela divulgação radiofônica, conforme afirmado anteriormente, da canção de Adoniran na interpretação dos Demônios da Garoa. (nesta linha de análise ver: VESENTINI, 1997, p.65). O patrimônio intangível de Saudosa Maloca manifesta-se nestas intersecções entre aquilo que existia; miséria, especulação imobiliária, etc; com aquilo que se usava como fator de resistência coletiva. A música e sua recepção reforçam a chamativa de uma espécie de hino de louvor deste público excluído, que se identifica e cria a memória necessária a sua própria manutenção como grupo. Afinal no linguajar errado das estrofes musicais, além de seu suposto aceite pelas elites administrativas, afirmava-se aquilo que era vivenciado nas ruas, entre os membros das classes menos favorecidas. Em função desta análise, é perceptível que Saudosa Maloca faça tanto sucesso em uma época na qual se exaltava a cidade de São Paulo como a que mais crescia no mundo. As comemorações do IV Centenário mostravam-se pertinentes aos olhos destes mesmos especuladores imobiliários, e desta forma a canção de Adoniran representava a resistência popular aos apelos do poder dominante. É claro que esta suposta resistência não se manifesta na forma de algo tangível, ela é percebida como memória e desta forma adquire a significação necessária a sua sobrevivência e uso, ou seja, A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva (...). (LE GOFF, 2003, p.469). A letra de Saudosa Maloca : imaginário e percepção Na análise da letra da música é possível observar que os valores que lhe são atribuídos vivenciam realidades pertinentes a um modelo lúdico para a compreensão e propagação do imaginário citadino. Qual é a maloca a ser lembrada? Se o senhor não tá lembrado Dá licença de eu contar (...) ;

Nesta estrofe a imagem que é referenciada é aquela que apresenta uma idéia de submissão a um suposto poder maior, embora o privilégio da lembrança esteja com aquele que narra o fato. De fato, para que possa haver esta lembrança é necessário que as diferenças sociais sejam evidenciadas de forma a manter a sutil percepção daquilo que alguns autores classificam com malandragem ou resistência social.(matos, 2001). Aparentemente, neste caso específico, é apenas o gesto de uma lembrança que produz uma espécie de satisfação a quem a evoca. Ali onde agora está Este adificil arto Era uma casa veia, um palacete assobradado(...) ; Neste momento a edificação materializa a lembrança, servindo de fio condutor da narrativa que só consegue se estruturar a partir de um referencial material identificável para ambos os interlocutores. Casa veia, um palacete assobradado, são estrutura tangíveis desta São Paulo em transformação. Ninguém sabe quem lá morou apenas a identifica-se pelas características comuns necessárias a representação do poder, ou seja, palacete assobradado. Foi aqui seu moço Que eu, Mato Grosso e o Joca Construímos nossa maloca(...) Nesta etapa da letra os personagens ganham identidades e seus nomes evocam a realidade e a proximidade de Adoniram com os tipos populares. O interlocutor, classificado como moço demonstra novamente a idéia de um poder sutilmente classificado. A experiência de vida é apenas para o exercício da memória, no caso quem escuta a narração ou seja, seu moço, pode ser aquele que em sinal de respeito e submissão seria chamado de Doutor. Mas um dia Nóis nem pode se alembrá

Veio os home com as ferramenta E o dono mandô derrubá(...) O que se observa neste momento refere-se a amplitude estrutural da letra. Aquele que lembra, no caso o narrador, é enfático na percepção da cena. Os home e sua técnica acabam por demolir a edificação. Observa-se a perda do local, que por meio de sua tangibilidade, oferecia a memória necessária à manutenção do grupo. Há a manifestação de um poder invisível, mas perceptível e reconhecível. Peguemos todas nossas coisas E fumos pro meio da rua Apreciá a demolição Que tristeza que nóis sentia Cada táuba que caía Doía no coração(...) Nota-se que o elemento de tangibilidade manifesta-se novamente a cada parte da estrutura que era destruída. Observa-se um apelo sentimental, no caso a tristeza pela perda daquilo que dava certa identidade ao grupo, que embora expulso continua a apreciá a demolição. Qual a razão da permanência? Que sentido pode ser atribuído a este comportamento? Matogrosso quis gritar Mas em cima eu falei Os home tá cá razão nóis arranja outro lugar Só se conformemos Quando o Joca falou Deus dá o frio conforme o coberto (...). Nesta etapa da letra da música há o conformismo com o poder constituído embora se perceba a possibilidade, de seus atores, de sobrevivência em outro local. A cidade, neste

momento retratado pela canção, deveria possuir ainda inúmeras edificações na mesma situação de abandono, retratadas pela letra de Adoniran. O uso de um conformismo religioso passa a ser a unidade a identificar o grupo que acredita que terá amparo mesmo sobre uma situação de opressão não possível de ser controlada naquele momento específico. E hoje nós pega a paia Nas grama do jardim E pra esquecer nois cantemos assim: Saudosa maloca, maloca querida donde nóis passemos os dias feliz de nossa vida. Finalizando esta análise, observa-se na música que o resultado possível encontrase na possibilidade de se encontrar outro local, mas enquanto isto não ocorre fica-se em algum gramado, em espaços não cobiçados pelo poder privado, pois, aparentemente, remetem a idéia de praças e jardins públicos A lembrança do antigo local serve de elemento de identidade e memória, aglutinando o comportamento coletivo necessário a sua manutenção com estrutura social. A percepção da letra da música demonstra uma das possibilidades de compreensão da identidade de Adoniran. Mesmo narrado de forma quase trágica, o samba Saudosa Maloca, seria visto como um samba humorístico em oposição aquilo que a crítica carioca no perído chamava de samba puro com um tipico sabor de morro.(fernades, 2009). Considerações Finais Na letra de Saudosa Maloca é possível de identificar elementos cotidianos da história de vida de seu autor, metamorfoseados em mensagem de proximidade com seu público comsumidor. Torna-se importante ser lembrado que a música não nasce diretamente das camandas populares, mas sim é incorporada por elas como elemento de

representação coletiva. Embora as situações descritas sejam objeto de referência e análise, sua letra pode ser vista como uma espécie de apelo mercadológico de seu autor, na época um profundo conhecedor dos mecanismos de comunicação oferecidos pela radiodifusão. A cidade de São Paulo descrita é real na memória coletiva do cronista, embora seja apenas um recorte retirado de uma saturação cotidiana observada. Há a descrição mostrada que pode ser observada como um instrumento de resistência, mas ela é também produto de uma bagagem cultural de seu autor. Nesta memória existente a identidade necessária só se manisfesta conforme há um acordo não visível de seus interlocutores. O patrimônio que é narrado torna-se a memória cosntituidora do grupo que se sustenta nestes mecanismos de interpretação e narração que são propostos e, conseqüentemente, propagados. Seminário Temático n.19: MÚSICA EM LIBERDADE - CINCO CENTENARIOS BRASILEIROS (ADONIRAN BARBOSA, CUSTÓDIO MESQUITA, HAROLDO LOBO, NÁSSARA E NOEL ROSA). Coordenadores: MARCOS ANTONIO DA SILVA (Pós Doutor(a) - Universidade de São Paulo (FFLCH)) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÀFICAS CAMPOS, Elder. Nos caminhos da Luz, antigos palacetes paulistanos. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 13. n.1. jan.- jun. 2005.p. 11-57. CAMPOS JÚNIOR, C. de. Adoniran: uma biografia. São Paulo, Globo, 2004;

DI MONACO, Flavio Eduardo. O banquete do Leviatã: direito urbanístico e transformações da zona central de São Paulo (1886-1945). São Paulo : Tese de Doutoramento. FAU-USP, 2007; DINIZ, André. Almanaque do Samba. A história do samba, o que ouvir, o que ler, onde curtir. Rio de Janeiro : Zahar, 2006. FERNADES, Dmitri Cerboncini. Adoniran Barbosa e as metamorfoses do samba paulista: uma interpretação. ArtCultura, Uberlândia, v. 11, n. 18, p. 207-226, jan.-jun. 2009. Disponível em: http://www.artcultura.inhis.ufu.br/pdf18/d_fernandes_18.pdf ; KRAUSCHE, V. Adoniran Barbosa: pelas ruas da cidade. São Paulo : Brasiliense, 1985; GOMES, B. Adoniran: um sambista diferente. Rio de Janeiro : Martins Fontes; Funarte, 1987; LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas-SP : Editora UNICAMP, 2003; LOFEGO, Silvio Luiz. A construção da memória no IV Centenário da cidade de São Paulo. UNESP FCLAs CEDAP, v.2, n.2, 2006 p. 32-51. Disponível em: http://www.assis.unesp.br/cedap/patrimonio_e_memoria/patrimonio_e_memoria_ v2.n2/silvio%20lofego.pdf MARQUES, Abílio A. S. Indicador de São Paulo: administrativo, judicial, industrial, profissional e comercial. São Paulo : Typographia de Jorge Seckler, 1878; MATOS, Maria Izilda Santos de. A cidade que mais cresce no mundo. São Paulo território de Adoniran Barbosa. São Paulo, São Paulo Em Perspectiva, 15(3), 2001. MOURA, F. & NIGRI, A. Adoniran: se o senhor não tá lembrado. São Paulo : Boitempo Editorial, 2002;

MUGNAINI Junior, Ayrton. Adoniran: dá licença de contar São Paulo : Editora 34, 2002. VESENTINI, Carlos Alberto. A teia do fato: uma proposta de estudo sobre a Memória Histórica. São Paulo : HUCITEC, 1997.