Narração e drama em Aristóteles Luisa Severo Buarque de Holanda 1

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Transcrição:

Narração e drama em Aristóteles Luisa Severo Buarque de Holanda 1 A Poética de Aristóteles se inicia pela afirmação de que o tema a ser abordado pelo tratado que se seguirá, a saber, a arte poética, pode ser definido, de um modo geral, da seguinte forma: a poesia é uma arte mimética cujas espécies se diferenciam umas das outras, não por serem imitações (já que isso é justamente o que as aproxima), mas por se utilizarem, ou de meios distintos, ou de modos distintos, ou por tratarem de objetos distintos. Meios, modos e objetos constituem três critérios de diferenciação elaborados por Aristóteles para dar conta da diversidade dos tipos de poesia. O primeiro dos três critérios diz respeito aos elementos utilizados: ritmo, linguagem e harmonia. O segundo diz respeito à diferença entre narração e drama, e o terceiro diz respeito ao tipo de ação representada e aos caracteres das personagens envolvidas nas ações. De posse desses três critérios, o autor pode aproximar e afastar as espécies poéticas umas das outras de acordo com o ponto de vista adotado. Pois bem, o que nos interessa aqui é, especificamente, o segundo critério de diferenciação, que diz respeito aos modos poéticos narração (apangelía) e drama, e que é responsável por distinguir, acima de tudo, a poesia épica das poesias trágica e cômica. Ao que parece, esse critério de diferenciação terá fortes conseqüências no que diz respeito a uma das principais questões tematizadas por Aristóteles no tratado, a saber, a comparação entre epopéia e tragédia, e o privilégio desta em detrimento daquela. Mais do que isso, essa questão ajudará a compreender por que o tratado que anuncia uma investigação da poesia acaba por se tornar quase que exclusivamente um tratado sobre a poesia trágica. Isso não significa que a distinção entre narração e drama seja o único motivo para que Aristóteles privilegie a tragédia. Já no quinto capítulo, por exemplo, ele explicará que tragédia e epopéia têm em comum muitas partes, mas outras são próprias só da tragédia, o que acarreta o fato de que quem quer que seja capaz de julgar da qualidade e dos defeitos da tragédia tão bom juiz será da epopéia 2. Isso justificaria, por si só, uma análise mais detalhada da tragédia. Entretanto, Aristóteles fornece outras justificativas para defender a superioridade da tragédia, e algumas delas derivam precisamente da especificidade de seu modo poético, a saber, o modo dramático. Retornemos, então, ao raciocínio desenvolvido pelo autor nos primeiros capítulos do tratado. Analisando-o, é possível afirmar que, no momento em que Aristóteles estabelece os critérios de distinção entre as espécies poéticas, estabelece simultaneamente uma espécie de hierarquia entre elas. As principais delas, poesia épica, poesia trágica e poesia cômica, são postas lado a lado e, de acordo 71 1 Doutoranda em Filosofia pela UFRJ 2 Poética, 1449 b 17.

72 Luisa Severo Buarque de Holanda 3 Poética, 1448 a 20. 4 Poética, 1448 a 28. 5 Poética, 1460 a 5-12. 6 Se, dentro do conjunto das artes miméticas, Aristóteles se propõe a analisar a poesia, ainda assim continua a caracterizá-la pelo fato de ser mimética. A definição de poesia proposta na Poética não privilegia a versificação, como era comum na época, mas, ao contrário, a mímesis como aquilo que a caracteriza. Se, no entanto, é também a mímesis que definirá a pintura, por exemplo, devemos compreender que a característica em comum, que faz com que ambas pertençam ao sub-grupo das artes miméticas, não pode ser responsável pela confusão dos temas. Ela permite que, na Poética, a pintura seja amplamente utilizada como ponto de comparação para o tema abordado, que é propriamente a poesia, e ainda assim as duas técnicas se distinguem claramente pelos métodos e elementos utilizados, a saber, de um lado, formas e cores, de outro lado, palavras e ritmo, dentre outros. com os critérios arrolados, são comparadas entre si e classificadas. A poesia cômica é a menos nobre das três espécies porque, de início, já trabalha com um objeto menos elevado, a saber, personagens envolvidas em ações inferiores. As duas espécies restantes, em contrapartida, podem representar as mesmas personagens, envolvidas nas mesmas ações. O que as distingue mais fortemente é, portanto, precisamente aquele critério que nos interessa: a poesia épica se utiliza da narração, enquanto que a poesia trágica é inteiramente dramática, ou seja, apresenta, segundo as palavras de Aristóteles, todas as pessoas imitadas, operando e agindo elas mesmas 3, ou ainda, pessoas que agem e obram diretamente 4. É importante notar que, ainda que a poesia épica possa apresentar momentos de discurso direto, isto é, momentos em que as palavras da própria personagem são apresentadas, ainda assim tais momentos fazem parte de uma estrutura narrativa, o que significa que o simples fato de que os discursos das personagens sejam certas vezes imitados na epopéia não faz com que esta contenha partes dramáticas. Em conseqüência disso, podemos afirmar que não é apenas o discurso direto que caracteriza o drama, nem apenas o indireto que caracteriza a narração. Por outro lado, a utilização do discurso direto por parte do poeta épico faz com que a epopéia, num certo sentido, se aproxime tanto mais do drama quanto mais apresente tais tipos de discurso. É ao menos o que nos autoriza concluir a passagem da Poética em que Aristóteles elogia Homero porque só ele não ignora qual seja propriamente o mister do poeta. Porque o poeta deveria falar o menos possível por conta própria, pois, assim procedendo, não é imitador. Os outros poetas, pelo contrário, intervêm em pessoa na declamação, e pouco e poucas vezes imitam, ao passo que Homero, após breve intróito, subitamente apresenta varão ou mulher, ou outra personagem caracterizada nenhuma sem caráter, todas as que o têm 5. O argumento apresentado na passagem acima defende que, se a principal característica da poesia é a mímesis 6, tanto melhor o poeta quanto mais ele conseguir assumir a personalidade das suas personagens por meio dos discursos. Foi isso que fez Homero, tendo sido ele por tal motivo o pai da tragédia já que, além de apresentar os principais temas posteriormente desenvolvidos pelos poetas trágicos, lhes ensinou também o caminho da imitação direta das personagens. Entretanto, ainda assim os poemas de Homero não deixam de ser épicos e, nos vários momentos em que ele assume os caracteres de suas personagens, o faz como um apangélontas, um narrador que, em dados momentos, se torna uma personagem dizendo o que ela disse e, portanto, não deixando de lado seu papel de mediador. Na estrutura dramática, por sua vez, não é um autor se tornando uma personagem que devemos ver, mas um autor dando voz e vida a uma personagem e mostrando como ela age em certas circunstâncias, de acordo com a verossimilhança. Por isso, no primeiro caso vemos um narrador que conta um caso, ou seja, que se interpõe ainda que apresente as falas das personagens nos momentos cruciais de sua narração e no segundo caso vemos a

própria personagem agindo diretamente, isto é, somos testemunhas de suas ações, e é nisso que reside a principal diferença entre os dois modos poéticos. Na narração, é apresentado um narrador que supostamente testemunhou os acontecimentos narrados e agora os reconta para os presentes, enquanto que no drama vemos as personagens operando diretamente, diante de nossos olhos. No primeiro caso, portanto, alguém se posiciona entre a ação e o ouvinte, servindo como uma espécie de mediador. No segundo caso, há um espectador que presencia os fatos, podendo vir a se tornar um narrador dos acontecimentos presenciados. Disso decorre que, de modo geral, a narração trabalha com fatos passados; quando elabora um relato, o narrador deixa claro que já conhece o fim de sua história, de modo que o que ocorreu não poderá ser modificado. Portanto, mesmo que, para contar ou expor os fatos, o narrador deva evidenciá-los e fortalecê-los, de certa forma diminuindo seu aspecto de passado remoto, ainda assim seu caráter de acontecimento que já se desenrolou não pode ser negligenciado. Em contrapartida, quando compõe um drama, o dramaturgo deve arranjá-lo de modo que o espectador tenha a impressão de que tudo está se desenrolando naquele momento e de que o curso dos acontecimentos ainda não está inteiramente determinado. Deve, portanto, tornar presentes os acontecimentos. A narração, conseqüentemente, trabalha com o tempo passado e o drama trabalha com a presentificação do tempo representado 7. Essa principal diferença, por sua vez, acarreta outras que serão decisivas para o julgamento que Aristóteles faz da tragédia. A primeira delas é a seguinte: para que apresente a própria ação da personagem num dado momento, o autor da tragédia precisa saber escolher esse momento, ou seja, precisa saber selecionar o ponto crucial de uma ação quando ela se inicia e quando ela se encerra e encená-la do modo o mais unificado possível. Essa necessidade levou Aristóteles a formular a célebre questão das três unidades que caracterizam a tragédia: a unidade de tempo, de lugar e de ação. Para que os espectadores sejam testemunhas da ação da personagem é preciso que tudo possa se apresentar num mesmo lugar, em um pequeno intervalo de tempo e de modo que todos os acontecimentos se encaixem perfeitamente e levem uns aos outros, para que nada de excessivo ou de supérfluo interfira na apresentação da ação. Apenas o essencial para a compreensão do tema e para o desenrolar dos fatos; apenas aquilo que justifique as palavras, os gestos e as ações principais. Assim sendo, podemos concluir que o fato de um gênero poético ser narrado e o outro ser dramatizado leva a enormes diferenças quanto às questões da unidade e da apresentação formal e conteudística, o que, no julgamento de Aristóteles, justifica a superioridade da tragédia sobre a epopéia. Há uma segunda distinção a ser mencionada, que igualmente deriva do fato de que a poesia épica é narrada e a poesia trágica é dramatizada e que, para a compreensão do aspecto que aqui queremos ressaltar, se torna essencial. Essa diferença diz respeito ao efeito específico da tragédia. As considerações expostas anteriormente dão 73 7 Não podemos deixar de mencionar o fato de que esse é igualmente, para Aristóteles, um dos principais motivos pelos quais a poesia é superior à pintura: aquela organiza uma experiência temporal, coisa que esta, segundo ele, não é capaz de fazer. Isso se explicita na comparação entre epopéia e tragédia, toda baseada na ruptura temporal entre narrador e fato narrado, realizada na primeira, e a presentificação dos fatos operada pela segunda.

74 Luisa Severo Buarque de Holanda a entender que o fato de presenciar uma ação, em vez de apenas ouvir falar dela por alguém que a presenciou e que agora a relata, produz no ouvinte (ou leitor, ou espectador) um efeito de outra ordem. Segundo o sexto capítulo da Poética, esse efeito seria o de engendrar o medo (fóbos) e a compaixão (eleós) (ou o terror e a piedade, segundo cada tradução) em seus espectadores, gerando a catarse. Independentemente do sentido atribuído ao fenômeno da catarse, queremos ressaltar que o fato de a tragédia ser dramatizada contribui diretamente para que suscite as emoções a ela ligadas. Dito de outra forma, não seriam essas as emoções relacionadas ao efeito próprio da tragédia caso ela fosse narrada. Devemos ressaltar que é a própria forma dramática, e não a encenação, que contribui decisivamente para tal efeito, embora a encenação possa ser de grande auxílio. Ainda que apenas com palavras e não com pessoas atuando, o drama, ao tornar presentes os acontecimentos, mostra ao invés de descrever ou contar, e é esse caráter de fenômeno presente que se torna capaz de suscitar as emoções que lhe são peculiares. A especificidade da forma dramática, segundo esse raciocínio, tem ligação com a geração de reações determinadas, a saber, as emoções de medo e de compaixão nos espectadores que, envolvidos com os acontecimentos e tocados pelo sofrimento da personagem, sentem-se, por um lado, ameaçados por tal sofrimento e, por outro lado, identificados com a personagem que, humana como eles, passa por certas provações. Segundo a Retórica que trata dessas mesmas emoções, dentre outras, a partir de um ponto de vista diverso, analisando os casos em que elas serão mais provavelmente suscitadas, o medo relaciona-se a alguma ameaça em um futuro próximo e a compaixão ao sofrimento de um outro ser humano. Medo e compaixão seriam paralelos, de acordo com a Retórica, no sentido de que um se direciona para a própria pessoa que o sente (ou seja, quem teme, teme por si) e o outro se direciona para uma outra pessoa ou, mais especificamente, para um semelhante. O medo, por conseguinte, seria uma espécie de compaixão por si mesmo e a compaixão seria uma espécie de medo pelo outro. Além disso, ambos se posicionam a meio caminho entre a proximidade e o distanciamento. Uma ameaça muito distante não provoca verdadeiro medo, e uma ameaça muito próxima provoca uma sensação muito mais forte do que o mero medo. Um sofrimento ocorrido a alguém muito distante não nos toca suficientemente para sentirmos compaixão, enquanto que um sofrimento ocorrido a alguém próximo demais causa, mais do que compaixão, repugnância. Logo, o medo é um sentimento intermediário, e que se relaciona a fatos que ameaçam de modo não tão forte nem tão fraco, ou seja, a fatos de certa forma intermediários; e a compaixão é um sentimento para com pessoas intermediárias, isto é, para com pessoas próximas o suficiente para que possamos nos identificar com elas, mas distantes o suficiente para que não possamos nos sentir pessoalmente atacados pelo mesmo sofrimento. No caso da poesia trágica, portanto, deve haver uma identificação forte, mas não total, com as personagens, de modo que tenhamos medo de ser atacados pelo mesmo sofrimento que atualmente as flagela.

Ainda durante a análise das emoções do medo e da compaixão na Retórica, Aristóteles faz um breve comentário em relação às representações trágicas, no qual, para exemplificar a questão da proximidade e da distância necessárias para engendrar as emoções supracitadas, afirma que a mímesis trágica é responsável por aproximar eventos muito distantes no tempo; eventos que de tão distantes talvez não nos concernissem. Da mesma forma, a mímesis trágica é capaz de aproximar personagens que, caso não fossem representadas desse modo, não poderíamos comparar a nós mesmos. Assim, faz nascer compaixão e medo por meio da aproximação de pessoas e acontecimentos que, caso contrário, não nos diriam respeito. Ou que, caso apenas narrados, poderiam surpreender, causar admiração ou outras reações específicas, mas não gerariam as particulares emoções do medo e da compaixão. Por outro lado, é possível também afirmar que a mímesis trágica precisa distanciar os acontecimentos e as personagens representadas. Isso deve ocorrer porque, embora nos sintamos envolvidos com a representação de tal forma que pensamos estar presenciando os fatos, ao mesmo tempo sabemos que tais acontecimentos estão sendo representados, e por isso não nos sentimos compelidos a atuar. Somos apenas observadores. Podemos refletir sobre os fatos representados, sobre as ações das personagens, sobre as desgraças reservadas aos seres humanos, sobre características da vida e da existência humana, mas não nos encontramos no campo da ação e da prática, e sim da especulação. Logo, é possível dizer que a poesia trágica deve realizar um duplo movimento de aproximação e de distanciamento. Quanto mais cada tragédia em particular conseguir reproduzir essa característica trágica geral, tanto melhor realizará as emoções próprias ao seu gênero poético. Dito de outra forma, tais emoções são tanto mais suscitadas quanto mais se pensa, por um lado, em aproximar aquilo que não nos concerne e, por outro lado, em distanciar aquilo que nos concerne por demais. Distanciamento e aproximação ou, em outras palavras, abrandamento e intensificação são os movimentos próprios da tragédia. Atenuar o que é demasiadamente violento, distanciar o que está próximo demais e, por outro lado e simultaneamente, intensificar o que é demasiadamente fraco e disperso, aproximando o que está distante. Por conseguinte, a aproximação faz com que o espectador se envolva e se emocione, e o distanciamento faz com que observe e reflita, e ambos os movimentos devem acontecer a um só tempo. Emoção e pensamento não são, pelo menos no caso trágico, excludentes. A poesia trágica engendra medo e compaixão, mas não faz agir em relação à causa dessas emoções, e sim faz pensar nela, faz observá-la e faz compreendê-la. Todavia, o que ainda nos falta explicitar é que esse duplo movimento de aproximação e de distanciamento não é peculiar apenas à poesia trágica. O que lhe é peculiar é a proporção em que ambos estão misturados. Sejamos mais claros: se Aristóteles analisa especificamente a tragédia e destaca seu efeito próprio, é provavelmente porque este está ligado a uma maior capacidade de nos aproximar das ações retratadas, embora também deva, em certa medida, 75

76 Luisa Severo Buarque de Holanda 8 Poética, 1448 b 9. 9 Poética, 1448 b 15. nos distanciar. É como se a medida do distanciamento, na tragédia, fosse proporcional apenas à necessidade de que os espectadores se comportem como observadores, isto é, não interfiram na cena, mas somente pensem e sintam coisas relacionadas a ela. Levando em consideração essa necessidade de não-interferência, a aproximação deve ser a maior possível. Pois bem, se retornarmos à comparação com a narração, poderemos afirmar ainda que, na poesia épica, a medida da aproximação e do distanciamento é distinta da medida reservada a cada um deles na tragédia. É como se a epopéia também devesse realizar esse duplo movimento, mas dentro de seu domínio próprio, que é o de tratar as ações como passadas, o que faz com que o distanciamento seja proporcionalmente maior do que a aproximação. A poesia épica deve aproximar os eventos do ouvinte até o ponto em que causem admiração, assombro, espanto e até mesmo estímulo para agir do mesmo modo, mas não necessariamente até o ponto de gerar medo e compaixão. Finalmente, se levarmos em conta as diversas comparações feitas por Aristóteles ao longo da Poética das artes miméticas entre si, e especialmente entre as artes poéticas e a pintura, é possível ainda conduzir o mesmo raciocínio, inicialmente desenvolvido em relação à tragédia e posteriormente aplicado à epopéia, até a pintura. No quarto capítulo da Poética, Aristóteles afirma: nós contemplamos com prazer as imagens mais exatas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância, por exemplo, as representações de animais ferozes e de cadáveres 8. Se, portanto, analisarmos as relações de aproximação e de distanciamento no caso pictórico, poderemos afirmar que a imagem possui um alto grau de distanciamento, se comparada à poesia de modo geral. Animais ferozes e cadáveres, para repetirmos os exemplos aristotélicos, nos impelem a fugir ou a virar o rosto em gesto de repulsa, enquanto que as imagens dos mesmos nos causam curiosidade, admiração e até prazer, no sentido de que nos fazem melhor compreender aquilo que representam: efetivamente, tal é o motivo por que se deleitam perante as imagens: olhando-as, aprendem (mantánein) e discorrem (sullogízesthai) sobre o que seja cada uma delas 9. Não obstante, também são capazes, em certos casos, de produzir um efeito de aproximação e de provocar reações desagradáveis em seus observadores, mas em todo caso reações geradas por algum tipo de compreensão ligada à imagem. Conseqüentemente, distanciamento e aproximação também estão ambos presentes na pintura, mas de tal modo que aquele talvez seja tão predominante nesta quanto o é a aproximação na arte trágica, ou seja: a medida do distanciamento e da aproximação, na pintura, é inversamente proporcional à medida de ambos na tragédia. Por conseguinte, podemos observar que, se a tragédia tem, para Aristóteles, privilégio sobre as outras artes poéticas e até sobre as artes miméticas em geral, a grande proporção de aproximação que dela resulta é em larga escala responsável por isso, de modo que cada tipo de arte mimética tem tanto mais valor, ou ainda, ocupa uma posição tanto mais alta na hierarquia aristotélica quanto mais atingir um elevado grau de aproximação e de fortalecimento dos

fatos. E isso, desde que guarde uma certa proporção de afastamento e de atenuação, para que aquele que está entrando em contato com a representação não esqueça inteiramente de que está diante de uma obra mimética. Isso significa que o duplo movimento que aqui tentamos caracterizar é, em última instância, uma propriedade geral da mímesis, de modo que os produtos miméticos se encontram imbuídos dela, cada qual em maior ou menor grau de acordo com sua especificidade, mas sempre apresentando essa característica de aproximar e distanciar simultaneamente. Em outras palavras, esse duplo movimento de atenuação e de fortalecimento em relação às experiências não estéticas encontra-se de uma forma ou de outra em todas as artes miméticas e, portanto, na experiência estética como um todo. Bibliografia ARISTÓTELES. Poética. In: Os Pensadores, Aristóteles, Volume II, São Paulo; Ed. Nova Cultural, 1987.. Arte Retórica e Arte Poética. Coleção Universidade de Bolso, Rio de Janeiro; Ediouro, 1950. DESTRÉE, Pierre. Éducation Morale et Catharsis Tragique. In: Les Études Philosophiques, p. 536-541; 2003. DONINI, Pierluigi. Mimèsis Tragique et Apprentissage de la Phronèsis. In: Les Études Philosophiques, p. 436-451; 2003. GEFEN, Alexandre. La Mimèsis. Paris; Flammarion, 2002. HALLIWELL, Stephen. La Psychologie Morale de la Catharsis. In: Les Études Philosophiques, p.499-518; 2003. The Aesthetics of Mimesis. New Jersey; Princeton University Press, 2002. KLIMSIS, Sophie. Voir, Regarder, Contempler: le plaisir de la reconnaissance de l humain. In: Les Études Philosophiques, p. 466-483; 2003. VELOSO, Cláudio William. Aristóteles Mimético. São Paulo; Discurso Editorial, 2004. ZINGANO, Marco. Katharsis Poética em Aristóteles. In: Síntese, 76, p. 37-55; 1997 [a]. 77