A GÊNESE DA MULHER NO PROCESSO ENTRE SIGNOS



Documentos relacionados
Concurso Arte na Capa 2011

Dia 4. Criado para ser eterno

Carta de Paulo aos romanos:

claudia houdelier - maternidade maternidade

DESIGN DE MOEDAS ENTREVISTA COM JOÃO DE SOUZA LEITE

A formação moral de um povo

18/11/2005. Discurso do Presidente da República

Transcriça o da Entrevista

O céu. Aquela semana tinha sido uma trabalheira!

** O texto aqui reproduzido é de propriedade do MUD - Museu da Dança e não pode ser copiado ou reproduzido sem a autorização prévia.

Nem o Catecismo da Igreja Católica responde tal questão, pois não dá para definir o Absoluto em palavras.

COMUNIDADE TRANSFORMADORA UM OLHAR PARA FRENTE

A IMPORTÂNCIA DE SE TRABALHAR OS VALORES NA EDUCAÇÃO

Da Árvore ao Rizoma: proposta de um percurso

Paletas. Autorretratos Rembrandt Van Rijn

TRIBUTO AOS MAÇONS. uma cerimônia aberta emitida pelo. Supremo Conselho da Ordem DeMolay para a República Federativa do Brasil

O que é uma instalação?

Construção, desconstrução e reconstrução do ídolo: discurso, imaginário e mídia

como a arte pode mudar a vida?

Os dois foram entrando e ROSE foi contando mais um pouco da história e EDUARDO anotando tudo no caderno.

muito gás carbônico, gás de enxofre e monóxido de carbono. extremamente perigoso, pois ocupa o lugar do oxigênio no corpo. Conforme a concentração

Volte a ter o corpo que tinha antes da gravidez em 60 dias...

Sticker Art: Uma ferramenta de inclusão e conscientização do valor da arte

Os Quatro Tipos de Solos - Coração

1 O que é terapia sexual

JONAS RIBEIRO. ilustrações de Suppa

GOVERNO DO ESTADO DO AMAZONAS TEXTO DE APOIO

SÉRIE 6: MODOS DE VIDA

RECUPERAÇÃO DE IMAGEM

X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador BA, 7 a 9 de Julho de 2010

Deus o chamou para o ministério da palavra e do ensino também. Casou-se aos 21 de idade com a ministra de louvor Elaine Aparecida da Silva

O QUE SIGNIFICA CRIAR UM FILHO

1.000 Receitas e Dicas Para Facilitar a Sua Vida

Meu nome é Rosângela Gera. Sou médica e mãe de uma garotinha de sete anos que é cega.

Assunto: Entrevista com a primeira dama de Porto Alegre Isabela Fogaça

Professora Sandra Bozza, você é a favor da alfabetização através do método fônico?

Guia Prático para Encontrar o Seu.

Semana de Arte Moderna

Porque Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna.

Anexo F Grelha de Categorização da Entrevista à Educadora Cooperante

A origem dos filósofos e suas filosofias

- Tudo isto através das mensagens do RACIONAL SUPERIOR, um ser extraterreno, publicadas nos Livros " SO EM DESENCANTO ". UNIVER

Juniores aluno 7. Querido aluno,

Educação Patrimonial Centro de Memória

Arte Cristã Primitiva

4Distribuição de. freqüência

Jesus declarou: Digo-lhe a verdade: Ninguém pode ver o Reino de Deus, se não nascer de novo. (João 3:3).

Colégio Sagrado Coração de Maria - Rio. Arca de Noé

INVESTIGAÇÃO DOS SENTIDOS NARRATIVOS ENCONTRADOS NO DISCURSO DE AFÁSICOS PARTICIPANTES DE GRUPO DE CONVIVÊNCIA

Eclipse e outros fenômenos

Objetivo principal: aprender como definir e chamar funções.

Saíram da sinagoga e foram logo para a casa de Simão e André, junto com Tiago e João. A sogra de Simão estava de cama, com febre, e logo eles

*Doutora em Lingüística (UNICAMP), Professora da Universidade Federal de Viçosa (UFV).

O passageiro. 1.Edição. Edição do Autor

Escola Secundária Ferreira Dias. Trabalho de pesquisa realizado por: Jéssica Brissos. Curso técnico de vitrinismo. Disciplina: TIC

POR QUE O MEU É DIFERENTE DO DELE?

Copos e trava-línguas: materiais sonoros para a composição na aula de música

Edison Mendes. A realidade de uma vida

SINCRETISMO RELIGIOSO, NATAL FESTEJA IEMANJÁ 1

Presidência da República Casa Civil Secretaria de Administração Diretoria de Gestão de Pessoas Coordenação Geral de Documentação e Informação

Curso: Diagnóstico Comunitário Participativo.

Estórias de Iracema. Maria Helena Magalhães. Ilustrações de Veridiana Magalhães

SÉRIE 7: Trabalho. para olhar. pensar, imaginar... e fazer. Jean-François Millet As respigadeiras 1857 Óleo sobre tela.

OS MEMORIAIS DE FORMAÇÃO COMO UMA POSSIBILIDADE DE COMPREENSÃO DA PRÁTICA DE PROFESSORES ACERCA DA EDUCAÇÃO (MATEMÁTICA) INCLUSIVA.

ATIVIDADE 02 A PRESERVAÇÃO DO NOSSO PATRIMÔNIO CULTURAL

ISSN ÁREA TEMÁTICA: (marque uma das opções)

MÍDIA, MUSA E ARTE: O PAINEL DE DI CAVALCANTI

Filosofia Prof. Frederico Pieper Pires

Uma volta no tempo de Atlântida

AMOR, TRANSFERÊNCIA E DESEJO

O princípio multiplicativo

Modos de vida no município de Paraty - Ponta Negra

Ser humano e saúde / vida e ambiente. Voltadas para procedimentos e atitudes. Voltadas para os conteúdos

A GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA

A GLOBALIZAÇÃO UM MUNDO EM MUDANÇA

Dicas para você trabalhar o livro Mamãe, como eu nasci? com seus alunos.

TRABALHO VOLUNTÁRIO VISITA AO LAR DA TERCEIRA IDADE DONA VILMA

Lição 9 - Ansiedade (Parte 02) De pais para filhos

CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO AMAPÁ CURSO DE ADMINISTRAÇÃO CURSO: COMO FALAR CORRETAMENTE E SEM INIBIÇÕES

Daniele Renata da Silva. Maurício Carlos da Silva

trata de um problema com a cor. Se você examinar cuidadosamente as 24 peças, verá que as quatro reconstruídas têm outro tipo de madeira.

TÓPICOS DE REVISÃO PARA A PROVA DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA

REFLEXÕES SOBRE A PRODUÇÃO DE SIGNIFICADO NA MATEMÁTICA ESCOLAR

A PERCEPÇÃO DE JOVENS E IDOSOS ACERCA DO CÂNCER

CURIOSOS E PESQUISADORES: POSSIBILIDADES NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO BÁSICA

Avaliação da Aprendizagem no Ensino Superior Prof. Dr. Dirceu da Silva

CRIANÇAS DA EDUCAÇÃO INFANTIL EXPLORANDO GRÁFICOS DE BARRAS

Viajar é bom! Melhor ainda trazendo boas fotos.

Grupo 5 Volume 3 Unidade 5: Um pouco daqui, um pouco dali, um pouco de lá.

Desafio para a família

Estética, Filosofia, Cultura e outras Linguagens. Felipe Szyszka Karasek

Mito, Razão e Jornalismo 1. Érica Medeiros FERREIRA 2 Dimas A. KÜNSCH 3 Faculdade Cásper Líbero, São Paulo, SP

Cultura Juvenil e as influências musicais: pensando a música afro-brasileira e a sua utilização entre os jovens na escola

Meu Grande Amigo. Como Escolher O Cão Ideal Para Você E Sua Família. Paulo I. S. Doreste

5 Considerações finais

Nome do Aluno: nº 2013 Turma: 3 série Ensino Médio Data:

Objetivos. Introdução. Letras Português/Espanhol Prof.: Daniel A. Costa O. da Cruz. Libras: A primeira língua dos surdos brasileiros

Transcrição:

A GÊNESE DA MULHER NO PROCESSO ENTRE SIGNOS Eliane Patrícia Grandini Serrano 1 Guiomar Josefina Biondo 2 Nelyse Ap. Melro Salzedas 3 A proposta deste artigo é buscar a gênese da mulher na arte, do espaço bi e tridimensional, vendo-a como objeto. Para tal, destacamos na escultura: a Vênus de Willendorf e a Estatueta de Cibele, ambas pré-históricas; na pintura: Vênus e Mulheres de Giorgione, Tintoretto, Ticiano, Manet e Andy Warhol; e no cinema: o filme O Sorriso de Monalisa, dirigido por Mike Newell. O texto cinematográfico servirá de introdução aos diálogos intertextuais. O filme, protagonizado por Julia Roberts, representa uma professora de História da Arte em um colégio feminino, conservador e elitizado dos Estados Unidos. A sua docência corre, de certa forma, tranquilamente até que projeta através de slides algumas obras de Andy Warhol cuja temática é a mulher, trajando apenas roupas íntimas, exibindo um corpo escultural. Inegavelmente é a mulher do prazer e isca para a sexualidade. A reação das alunas foi agressiva, desdobrando-se em atitudes de represália à professora: um jornal feito por elas denunciando o sentido da aula e uma ideologia contra a boa tradição americana. Parece-nos ter havido um choque visual, ético e moral. Porém o que se percebe é que houve também um descompasso de tempo e cultura no referido colégio. Voltando ao tempo perguntamos o que teria acontecido se a professora projetasse a Vênus de Willendorf ou as mulheres vistas no Museu das Civilizações Anatolianas (Viena, Áustria), as quais são verdadeiras matronas simbolizadas pela Estatueta de Cibele, sentada numa imensa cadeira de pedras, parindo? Tais imagens femininas, tanto de Warhol quanto as pré-históricas possuem diferenças formais, porém estão muito próximas quanto á função de objeto. Se entendermos a mulher de Warhol como uma Vênus sensual e objeto de propaganda, onde a sexualidade fica em evidência, as Vênus pré-históricas seriam também objeto, porém dentro de um outro prisma: da reprodução humana. Basta confrontar as medidas do: braço, busto, ventre e 1 UNESP FCT Presidente Prudente SP. Auxílio recebido da Fundação para o Desenvolvimento da UNESP - FUNDUNESP 2 UNESP FAAC Bauru - SP 3 UNESP PG FAAC Bauru SP Congresso Internacional da Associação de Pesquisadores em Crítica Genética, X Edição, 2012 528

pernas. Enquanto a mulher de Warhol apresenta-se com uma forma veneziana quase virginal, a outra apresenta-se como uma matrona, criadora de uma sociedade matriarcal. Estamos chegando a uma gênese da mulher como objeto artístico do prazer e da produção do crescer e multiplicai-vos. Cada uma dentro de suas culturas religiosas e sociais. Entre elas, pelo meio do percurso artístico e histórico, tivemos outras Mulheres que vieram de Giorgione (Vênus de Dresden); Tintoretto (Vênus e Marte), Ticiano (Vênus de Urbino); Manet (Olympia) e ainda Di Cavalcanti (série Gabriela). Todas essas telas protagonizadas pela Mulher/Vênus, sempre nuas não abrigam o mesmo sentido, pois os contextos são os responsáveis por esses desvios. A de Ticiano (1538) em um leito, contígua em um quarto, onde estão as servas que buscam roupas em um baú; a de Giorgione (1510), sobre a relva, na natureza; a de Tintoretto (1550), com vulcano desvelando ou velando o órgão genital da protagonista e Manet (1865), sem perspectiva composicional, apresenta uma mulher despida, e uma serva ofertando-lhe um ramalhete. Inegavelmente a Vênus de Urbino (Ticiano), segundo Arasse, matrizou o erotismo: seria uma mulher objeto sexual, uma mulher despida que lança um convite à excitação sexual, feita para ser enganchada ou pregada em uma parede de um quarto matrimonial. Sob o ponto de vista iconográfico, a Vênus de Urbino é rodeada por atributos significativos: a mirta sobre a janela, as rosas à mão direita, os baús evocam o casamento; o cão um símbolo de fidelidade ou de luxúria. A mão esquerda sobre o órgão sexual recebe o olhar e o ponto forte da perspectiva. Toda essa composição faz da tela de Ticiano um quadro erótico da pintura clássica, mais do que isso, a sua Vênus pelo gesto passa do tocar para o ver, faz do ver um quase tocar, mais para ver, não para tocar, ver, somente, ver, pois o espectador vê, mas não toca, só olha. É no fogo do olhar e do tocar que reside toda a magia dessa tela, cujo objeto é o corpo feminino construído e visto pela cultura veneziana do século XVI. Já se acordou que em 1510 Giorgione pintou a sua Vênus de Dresden e que Ticiano, como seu discípulo, acompanhou todo o processo realizador; acordou-se igualmente que a posição horizontal da Vênus e sua gestualidade são semelhantes, mas também convém lembrar a diferença do olhar, dos atributos da tela, e do desvio contextual. Congresso Internacional da Associação de Pesquisadores em Crítica Genética, X Edição, 2012 529

Outro pintor veneziano, Tintoretto, manipula seus pincéis para, dentro de um tema mitológico, criar a sua tela Vênus e Marte (1550). Nela Vênus posiciona-se verticalmente em um leito, tem ao seu lado Vulcano arrumando ou desarrumando uma tira de tecido transparente sobre os órgãos genitais da deusa do amor, em um ato performativo gerando ambigüidade ante o olhar inquisitivo do espectador. Surgem as perguntas: o gesto de Vulcano quer ver o órgão genital para que? Ou a Vênus estava nua e ele, o marido, quer vê-la coberta? No espelho colocado sobre a parede, Vulcano está de costa para ela, o que reflete e completa ao espectador a gestualidade do deus do fogo. Não há mirta, servas, cachorro, apenas em um pequeno leito, está Cupido, o deus do amor. Além do erotismo, essa tela sugere o adultério tão discutido por Arasse no artigo Cara Giulia, em On n y voit rien (2000). Alega o articulista que símbolos de fidelidade não existem na tela, só Cupido e Marte, esse oculto abaixo do leito do amor, e Vulcano procurando buscar o véu entre as coxas de sua mulher. Uma outra tela vista como erótica mais perto da modernidade é a Olympia (1865) de Manet. Tanto Ticiano como Tintoretto criam um fetiche erótico, a mulher nua ou despida, na tela do primeiro, um convite ao ato performativo do sexo, na tela do segundo uma possível descoberta do adultério entre Vênus e Marte. Então, o que Manet buscou em Ticiano? O século XIX acreditava que a Vênus de Urbino era uma cortesã. Entre o tempo de Manet e o do veneziano não existiram outros nus? Outras telas eróticas? Talvez visse na Vênus de Urbino uma mulher ideal, uma tela perfeita para tomá-la como modelo ao pintar a sua prostituta que não esperava roupas, que não tinha ao seu lado o ícone cão da fidelidade, que não tinha a mirta, mas uma serva negra, a entregar-lhe um ramalhete, presente de um cliente à sua espera. Essa pintura agitou os críticos de arte e os freqüentadores de galerias e salões, pois o artista atreveu-se a pintar uma prostituta, dessacralizando o mito da mulher ideal, sem a presença da fidelidade canina substituída por um gato, com uma carga de sentido diversa como desconfiança, sedução, indo do bem para o mal, com o preto maculado pelo carvão. Olympia era carvoeira, talvez o gato preto que deixara marcas negras no lençol fosse um complemento da condição social da prostituta pintada por Manet. Outros complementos, a orquídea nos cabelos que substitui a rosa de Ticiano, e é um símbolo da fecundação, e a fita do pescoço, preta, também fogem daqueles da Vênus de Urbino. Congresso Internacional da Associação de Pesquisadores em Crítica Genética, X Edição, 2012 530

Depois de venezianos e franceses, temos como objeto erótico feminino algumas Gabrielas de Di Cavalcanti, presentes no texto de Jorge Amado, Gabriela Cravo e Canela (1962). A partir de uma tese de doutorado (BIONDO, 1999) apresentaremos alguns tempos e ritmos de Gabriela. Aqui, selecionamos algumas a fim de cotejá-las com outras mulheres já vistas neste artigo. Observemos as diferenças com as Vênus dos venezianos e a Olympia de Manet: as Gabrielas estão sentadas e despidas; as mãos espalmadas estão cobrindo o rosto; o sexo a amostra; ao lado, uma forma do corpo, afigura-se a uma roupa a ser tomada; uma outra imagem de Gabriela revela-nos uma figura quase deitada, seios à amostra, coxas à amostra, e braços e tórax apoiados em um cotovelo do outro; compõe-se de cócoras, pernas à amostra, braços ocultando o rosto e amparados entre si. Em todas elas, nenhum adereço, nenhum complemento, apenas Gabriela, ora nua, ora despida, a não ser a sugestão de sapatos sociais que aparecem em duas delas. Contudo, uma das últimas Gabrielas do texto, mostra, ao contrário de Vênus e Olympia, uma flor sobre o sexo, parecenos nascida dele, sem características de rosa ou orquídea. Outra diferença, as Gabrielas aparecem sempre com o rosto semi-oculto pelas mãos ou pelos cabelos ou, ainda, pela sombra. Seus olhos não encaram o espectador, pois estão ocultos ou semi-ocultos e nem interrogativos. As pinturas de corpos femininos implicitamente eram convites ao sexo, contudo, hoje a mídia o faz explicitamente através de imagens femininas semidespidas, com isso, distanciam-se dos gestos promovidos pelas Vênus e Olympia; porém alguns outros aspectos aproximam-se como por exemplo: por que o corpo feminino em sua nudez ou quase nudez, desde os tempos de Ticiano, Tintoretto, Manet, Di Cavalcanti, na narrativa ficctícia do filme Um Sorriso de Monalisa e atualmente na mídia; é objeto lúdico sexual? Comecemos um recall a Veneza de Ticiano e Tintoretto. Segundo Arasse, até os espectadores do século XIV, viam no quadro de Ticiano um traço vil jamais observado. Ao descrevê-lo, ignoravam a mão esquerda sobre o sexo, detinham-se na direita que segurava uma rosa. Outra informação nos é dada por Rona Goffen: no século XVI a masturbação feminina era, em um contexto preciso, aceita e recomendável. A ciência dizia que as mulheres deviam se preparar para a união sexual. Tais telas seriam, pois, um quadro destinado ao quarto matrimonial. Congresso Internacional da Associação de Pesquisadores em Crítica Genética, X Edição, 2012 531

O contexto social de Ticiano mimetiza bem alguns detalhes do cotidiano do século XIV, como o baú em que as jovens casadouras levariam seu enxoval para a casa do esposo, que ficaria no quarto do casal. Formalmente, a tela do veneziano levanta uma questão: onde estava sua Vênus? Mais uma vez o contexto é um índice de lugar, pois os palácios daquela cidade no século XIV, não teriam um leito tão simples como aquele que aparece na tela, indigno de uma Vênus. Então, onde estaria ela? Em uma outra tela, teríamos pois uma dentro da outra, e o contexto socioeconômico-cultural ajudaria a responder a indagação. Em se tratando da Olympia de Manet, segundo T.J. Clark (2004), usou uma prostituta carvoeira como modelo para sua tela. Eliminou a mulher ideal, os baús, a mirta, o cão, as rosas. Entra a serva negra, o ramalhete de flores, a orquídea nos cabelos, o gato preto. Da leitura crítica de sua tela resultaram artigos violentos, e, recusada para ser exposta em salões, a tela de Manet foi objeto de muitas caricaturas. Ainda passando por T.J. Clark (2004) vale apenas anotar: Olympia era uma prostituta e esse fato por si só apresentaria dificuldade para o espectador de 1865, pois a prostituição era um tema delicado para a sociedade burguês porque nela a sexualidade e o dinheiro estavam misturados, isso para a burguesia contemporânea de Manet. Contudo, no Renascimento, o nu apreciado nas telas tinha por finalidade a intimidade sexual, presente nos dormitórios. O ludismo era íntimo tanto para a mulher como para os homens. No Brasil de Jorge Amado era o do coronelismo, da cultura do cacau, dos bordéis, das imigrantes de Itabuna. Para os coronéis, a mulher era manipulada pelo poder dinheiro, pela sobrevivência do dia-a-dia. Por isso, a Gabriela do escritor baiano era cozinheira amante senhora- amante cozinheira. Foi o que di Cavalcanti criou em suas ilustrações do romance Gabriela Caravo e Canela. Uma protagonista sempre de cócoras, poucas vezes sentada, quase nunca vestida, com coxas amostras, sexo explícito, rosto sombreado pela cor negra, olhos ocultos pelos cabelos, porém os seios, os braços, as coxas sempre iluminados. Adereços nenhum, Gabriela era corpo. A última delas apresenta-se de joelhos; bem ao estilo da mulher serva sexual dos coronéis. Congresso Internacional da Associação de Pesquisadores em Crítica Genética, X Edição, 2012 532

Hoje, o corpo feminino também seduz, mas a mulher quer ou não o sexo e pode também desejá-lo, tem autonomia sobre si, seduz, seduz e brinca. É uma pinup voluntariosa e dona de si. As poses femininas podem ser as de Ticiano, as de Tintoretto, as de Manet, as de Di Cavalcanti, mas, hoje a mulher é senhora de seu destino, dona de seu corpo. Implodiu o sentido do objeto sexual e mudou de comportamento. Para terminar, há uma fábula na cultura clássica grega chama Persona Trágica que representava a máscara da tragédia. Daí a nossa palavra personagem pode representar bem as mulheres aqui lidas, se as primeiras, aquelas pictóricas eram imóveis, estáticas; as outras, as midiáticas, agem e se transformam. Pensamos que de uma certa forma as mulheres representadas na arte, na forma de personagem, pensa e se transforma de acordo com sua cultura e seu tempo. Congresso Internacional da Associação de Pesquisadores em Crítica Genética, X Edição, 2012 533

REFERÊNCIAS AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela. São Paulo: Ed. Recordo, 1962. ARASSE, Daniel. Le sujet dans Le tableau. Paris: Flammarion, 2006.. On n y voit rien. Paris: Denoël, 2000. BIONDO, Guiomar Josefina. O tempero de Jorge Amado e Di Cavalcanti: Gabriela Cravo e Canela. 1999. 294p. Tese (Doutorado em Letras) - Faculdade de Ciências e Letras de Assis, UNESP, São Paulo, 1999. CHASTEL, André. Le Gest dans l art. Paris: Liana, 2001. CLARK, T. J. A pintura da vida moderna. São Paulo: Cia. Das Letras, 2004 GANDELMAN, Claude. Le regard dans le texte. Paris: Klincksieck, 1986. Congresso Internacional da Associação de Pesquisadores em Crítica Genética, X Edição, 2012 534