INTELECTUAIS NEGRAS NO BRASIL: INCORPORANDO TRADIÇÕES AFRO-BRASILEIRAS NA ACADEMIA 1

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INTELECTUAIS NEGRAS NO BRASIL: INCORPORANDO TRADIÇÕES AFRO-BRASILEIRAS NA ACADEMIA 1 Agatha Silvia Nogueira e Oliveira University of Texas at Austin 2 Resumo Neste artigo, analisa-se como a presença da mulher negra e a introdução de tradições de matriz africana nos estudos de teatro e dança podem contribuir para problematizar o eurocentrismo e a hegemonia de gênero e racial na academia brasileira. Baseia-se aqui em teóricas feministas negras para revelar como o sexismo e racismo atuam construindo mitos que afastam a mulher negra do reino do intelecto e, consequentemente, do meio acadêmico e inspira-se nos trabalhos desenvolvidos pelas artistas, teóricas, e educadoras Inaicyra Falcão dos Santos e Evani Tavares Lima nas Escolas de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Campinas -UNICAMP e Universidade Federal da Bahia -UFBA respectivamente, a fim de demonstrar as contribuições que metodologias alternativas baseadas nas tradições de matriz africana podem trazer para o artista em formação e para a academia. Palavras chave: Eurocentrismo. Mulher negra. Academia. Metodologias alternativas. Tradições Abstract In this paper, I analyze how the presence of black women and the introduction of African traditions in studies of theater and dance can contribute to problematize Eurocentrism and the hegemony of gender and race in Brazilian academia. Fostered by black feminist theorists I seek to reveal how sexism and racism operate building myths that keep black women distant of the realm of the intellect and hence academia. This article is also inspired by the work undertaken by artists, theorists, and educators Inaicyra Falcão dos Santos and Evani Tavares Lima in the 1 Trabalho apresentado no Congresso de Pesquisa em Dança -Riverside/CA ( November/2013 ). 2 Doutoranda no programa de Estudos da Performance como Prática Pública no Departamento de Teatro e Dança da University of Texas at Austin. Mestra em Artes pelo Departamento de Estudos da Africa e da Diáspora Africana da University of Texas at Austin. Mestra em Ciência das Artes pela Universidade Federal Fluminense. 136

Schools of Performing Arts at the State University of Campinas UNICAMP and Federal University of Bahia -UFBA respectively, to demonstrate the contributions that alternative methodologies based on the traditions of African origin can bring out the artist in training and the academia. Key words: Eurocentrism. Black women. Academia. Alternative Metodologies. Traditions Introdução Para pesquisadores, que estão continuamente investigando e revisitando suas próprias práticas acadêmicas, não é raro um interesse especial em filosofias pedagógicas e metodologias de ensino. Um olhar atento para identificar quando conteúdos e métodos precisam ser reavaliados e reelaborados é fundamental no processo de atualização da estrutura do ensino superior. No intuito de tornar o conhecimento acessível a diferentes grupos sociais e de contemplar a diversa gama de informação que circunda o universo acadêmico busca-se decentralizar estudos, e, para tanto, revela-se necessário questionar hierarquias e hegemonias no ensino elaborando-se estratégias mais plurais e que dialoguem com a cultura na qual a academia está imersa. Nesse sentido, o ensino torna-se uma ferramenta importante para problematizar pensamentos fundamentados em teorias exclusivistas que ao reforçar estruturas binárias dificultam a inclusão de indivíduos historicamente e socialmente marginalizados bem como de filosofias e conteúdos não ocidentais. O ensino revela-se um importante veículo de informação e formação de consciência política que desafia e transcende hierarquias raciais, de gênero, de classe, e sexuais. Inspirados pelo olhar sensível das intelectuais, artistas, e educadoras Inaicyra Falcão dos Santos e Evani Tavares Lima, neste artigo analisa-se como a introdução de uma filosofia de educação que busca unir conhecimentos científicos e empíricos e de tradições de matriz africana nos estudos de teatro e dança podem contribuir para problematizar o eurocentrismo e a hegemonia de gênero e racial na academia brasileira. No Brasil, as escolas de artes em geral ainda priorizam e universalizam os estudos das danças de matriz europeia. Em consequencia, as técnicas de treinamento corporal e preparação física mais usadas na academia seguem padrões europeus seja em relação à dança 137

clássica, moderna ou contemporânea. Em geral, as informações que vem de fora, são assumidas como fundamentais restringindo as possibilidades de experimentações e práticas dialógicas que contemplem também traços das culturas locais. As principais questões levantadas aqui são: Como filosofias pedagógicas e metodologias de ensino podem contribuir para descentralizar teorias e práticas na academia brasileira? Como a inclusão ou negação de tradições e técnicas alternativas podem limitar ou ampliar possibilidades no processo de construção de identidade e estética artística? Nesse trabalho, argumenta-se que as metodologias alternativas podem abrir espaços para a produção de um corpo de conhecimento mais plural na academia e que dialogue com o universo cultural e as experiências vividas. Ao reconhecer a necessidade de flexibilização dos métodos de ensino e formação artística, e estimulando a valorização de elementos de matriz africana nos estudos de corpo e movimento as criações e produções artísticas refletem universos pessoais e coletivos, história, memória, e ancestralidade. Aqui explora-se inicialmente, como o sexismo atua construindo mitos que afastam a mulher, e principalmente a mulher negra do reino do intelecto e consequentemente da academia (HOOKS, 2010; PACHECO, 2011). Como resquícios da escravidão a mulher negra ainda é vista como só corpo, sem mente (PACHECO, 2011, p. 1). Tal fato aliado ao pensamento cartesiano dominante na academia contribui para a escassez de intelectuais negras nos cursos de teatro e dança, apesar de nestes cursos a presença feminina superar a masculina. Dois outros fatores associados ao afastamento da mulher negra da academia brasileira são: o eurocentrismo, e a folclorização das manifestações de matriz africana. Num segundo momento, a partir da consideração feita por Joy James (1993) em relação ao uso de narrativas individuais como fontes de estudo que representam história de resistência, atuação política, e memória comun revela-se como Inaicyra Falcão dos Santos e Evani Tavares Lima descentralizam estudos de dança e corpo nas Escolas de Artes Cênicas da UNICAMP entre os anos de 1996 e 2010 Santos - e da UFBA entre os anos de 2000 e 2002 - Lima. Santos e Lima têm trabalhado para revelar novas possibilidades estéticas na dança e no teatro e, ao fazê-lo, têm também desvendado a hierarquia do conhecimento que prioriza métodos pedagógicos ocidentais europeus na academia brasileira. Além disso, a presença destas duas intelectuais negras na 138

academia brasileira serve de estímulo para outras mulheres negras interessadas em ocupar esse espaço afirmando-se enquanto intelectuais, artistas e educadoras capacitadas para atuar e contribuir para a formação de indivíduos e construção de um corpo de conhecimento mais amplo. Santos, atualmente vinculada à Escola de Dança da UFBA, é Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Paulo, Brasil, e Mestra em Artes Teatrais pela Universidade de Ibadan, na Nigéria. Professora de dança, artes cênicas, coreógrafa, dançarina e cantora lírica, Santos investiga as tradições africanas e afro-brasileiras como elementos fundamentais para a composição de um método de "dança- arte- educação pluricultural (SANTOS, 2006). Ela também estudou na Universidade Obafemi Awolowo em Ifé, na Nigéria, e no Instituto Laban em Londres, Inglaterra. Sua metodologia de ensino baseia-se na tradição Iorubá e na mitologia dos Orixás, a fim de facilitar a conexão dos atores e dançarinos com sua memória ancestral afrobrasileira. Em seu trabalho, Santos defende o reconhecimento e valorização da pluralidade dos corpos brasileiros. Desse modo ela inspira e estimula novas produções no meio acadêmico. Lima está atualmente realizando Pós-doutorado na Escola de Artes Cênicas da UFBA. Ela foi orientada por Santos durante seu Doutorado na UNICAMP (2006-2010) no qual desenvolveu pesquisa sobre O Tearo negro do Teatro Experimental do Negro e do Bando de Teatro Olodum. Nesse período, Lima também realizou uma pesquisa na Universidade de Michigan entre os anos de 2007-2008. Durante o seu mestrado em Artes Cênicas na UFBA (2000-2002), Lima começou a desenvolver sua pesquisa com foco no uso da Capoeira Angola como treinamento para o ator 3, tendo ministrado cursos para alunos da graduação da escola de Artes Cênicas na UFBA como parte prática da sua pesquisa. O propósito de Lima nessa investigação era incorporar a Capoeira Angola como método de treinamento do ator com o objetivo de capacitá-lo para desenvolver e investigar novas estéticas no palco. A IMPORTÂNCIA DE DESCENTRALIZAR ESTUDOS NA ACADEMIA BRASILEIRA 3 Título do seu primeiro livro editado pela Fundação Pedro Calmon em 2008. 139

Ao observar a atuação de intelectuais negras na academia brasileira, entende-se que este é um espaço em que a voz delas tem sido subalternizada pelos projetos colonialista, imperialista, escravista, miscigenista, e nacionalista. Ana Claudia Lemos Pacheco observa: Nas ultimas décadas do século XX e nesta primeira década do século XXI, o desenvolvimento de estudos e pesquisas na academia sobre as mulheres negras cresceu significativamente. Entretanto, numa análise bastante realista, o reconhecimento e a legitimação das intelectuais negras nas academias brasileiras ainda continuam marginalizadas (PACHECO, 2011, p. 5) A autora reconhece as recentes conquistas de intelectuais ativistas negras e as trasnformações na academia brasileira, no entanto, enfatiza o fato de que a produção de intelectuais negras ainda é amplamente ignorada, silenciada e invizibilizada nos cânones acadêmicos. Diante das dificuldades encaradas por uma intelectual negra baiana, ativista do Movimento Negro Brasileiro 4 observada por ela, Pacheco direciona a questão de Gayatri Chakravorty Spivak (2010) às intelectuais negras. Pode o subalterno falar? Para pensar tal questão, Pacheco considera a interseccionalidade nos modos de opressão em relação não só à raça e gênero, mas também em relação à classe ou à condição econômica que neste caso relega o Brasil a um país subdesenvolvido e de terceiro mundo. A realidade da intelectual negra brasileira que resolve investir na sua carreira enquanto teórica é que ela tem que enfrentar diversos obstáculos como, por exemplo, o não reconhecimento como teórica, mas usualmente apenas como ativista (JAMES, 1997, p. 42), as oposições políticas internas, os conflitos e questionamentos nos movimentos sociais, além do isolamento emocional. (PACHECO, 2011) Tanto como objeto de estudo ou como pesquisadora, a mulher negra ainda carrega heranças históricas sendo genericamente conectada à funções de servitude e afastada do mundo das ideias e da capacidade de contribuição não só intelectual mas também política. De acordo com Bell Hooks, é clara a desvalorização sexual da mulher negra e noções sexistas racistas que sugerem que as mulheres negras não são capazes de pensamento racional" (HOOKS, 1995, p.468; tradução nossa 5 ). No Brasil, tais noções foram reafirmadas pelo discurso Freyriano da 4 A autora utiliza nome fictício ao descrever a trajetória de tal intelectual. (PACHECO, 2011, p.6 ) 5 sexual devaluation of black womanhood and racist sexist notions that black women are not capable of rational thought (HOOKS,1995, p. 468) 140

democracia racial 6 ou de uma excepcionalidade brasileira em relação à raça, e são reatualizadas no imaginário social a cada vez que - em eventos como Carnaval, por exemplo - clama-se por uma união popular, multicutural e multiracial. Lélia Gonzales (1995) descreve claramente como a mulata é a rainha durante o Carnaval. Gonzales afirma que através da figura da mulata, símbolo da miscigenação, na performance da democracia racial a mulher negra desempenha novamente o papel principal de reprodutora, o que implica na exposição do seu corpo para consumo visual e indiretamente a induz à manter relações sexuais com o homen branco para cumprir sua função no projeto da miscigenação. No entanto, fora desse parênteses, no caso o Carnaval, as histórias de discriminação, racismo, e desvalorização intelectual e cultural negra tém-se revelado parte de um amplo esforço ideológico criado para justificar o autoritarismo e oligarquia no Brasil (ANDREWS, 1996, p. 484) no qual a mulher negra continua exercendo papel coadjuvante servindo a casa e a família branca e cumprindo funções que vão do serviço doméstico à fornicação. Além do modo como sexismo e racismo contribuem para a ausência de mulheres negras no imaginário social como intelectuais, as teorias determinista também contribuem para a inferiorização da mulher negra à medida em que entende que as funções ligadas ao corpo e espírito são inferiores às funções ligadas ao raciocínio. De acordo com Audre Lorde: Nós mulheres temos sido induzidas a desconfiar do poder que emerge de um conhecimento profundo e não-racional. Nós temos sido advertidas contra isso toda vida pelo mundo masculino que valoriza este sentimento profundo o suficiente para mater as mulheres exercitando esse poder em benefício dos homens, mas que teme demais essa mesma profundidade para examinar as possibilidades desta beneficiar elas próprias. (LORDE, 2007, p. 53-54; tradução nossa) 7. 6 Uma identidade nacional singular, ou raça brasileira como resultado de uma relação "harmônica" entre brancos, negros e indígenas, ou, mais especificamente, entre o senhor - homem branco e a escrava - uma mulher negra ou indígena. Este modelo de relação relega a mulher negra ao reino da servitude e de objeto. Ao descrever a miscigenação como resultado de uma relação " harmônica ", o cientista social Gilberto Freyre legitima a dominação sexual dos homens brancos sobre mulheres negras, mesmo que este ocorresse através da violência e estupro. (MUNANGA, 1999; GONZALES, 1995) O argumento de Freyre mercantiliza tanto a mulher negra quanto a mulata, fruto da miscigenação; a mulher negra como a trabalhadora reprodutora e a mulata como o símbolo da fornicação (BAIRROS, 1991). 7 As women, we have come to distrust that power which rises from our deepest and nonrational knowledge. We have been warned against it all our lives by the male world, which values this depth of feeling enough to keep women around in order to exercise it in the servisse of men, but which fears this same depth too much to examine the possibilities of it within themselves. (LORDE, 2007, p. 53-54) 141

Lorde explora um potencial erótico feminino como fonte de transformação e autoempoderamento da mulher negra. Para a autora a sexualidade e o erótico afloram de um eu profundo e de uma relação íntima inicialmente consigo mesma e com seus sentimentos e desejos. Nesse sentido, o reconhecimento e valorização da sexualidade feminina tornam-se um ato espiritual, físico, intelectual e político. Lorde afirma que ela está falando da necessidade de reacessar a qualidade de todos os aspectos de nossas vidas e trabalhos, e de como nos movemos em direção a e através destes aspectos (LORDE, 2007, p.55; tradução nossa 8 ) comumente suprimidos no sistema capitalista. O sistema estimula indivíduos a priorizar as necessidades materiais de sobrevivência e trabalho suprimindo certas necessidades físicas e emocionais e rouba nosso trabalho do seu valor erótico (LORDE, 2007, p. 55; tradução nossa 9 ) O trabalho deve ser um ato de prazer e de completude. Santos, por exemplo, revela que viveu o conflito entre seguir seu o desejo profundo de trabalhar como profissional da dança e a cobrança por um retorno financeiro requerido pelo sistema. Ao completar sua graduação, Santos se deparou com a dificuldade de obter um retorno financeiro no Brasil, mas afirma: dançar era a minha única emoção profunda, a minha religião, o meu prazer de ser. (SANTOS, 2006, p. 28). Mesmo diante do conflito a autora não se distanciou do valor erótico do seu trabalho, persistiu trabalhando como dançarina e logo começou a viajar com companhias de dança brasileiras, se apresentar em diferentes países e equilibrar necessidades financeiras, espirituais, e emocionais. O conceito de erótico que Lorde propõe clama pelo reconhecimento e valorização de todos os diferentes aspectos que constituem o indivíduo para uma atuação deste no mundo enquanto ser inteiro e múltiplo. A autora enfatiza a importância e o real valor dos atributos ligados ao físico, espiritual e emocional, frequentemente mais associados à mulher e inferiorizados num sistema que segue o pensamento cartesiano. Tal fato explica a excessão, ao se tratar da presença de mulheres no meio acadêmico, quando se trata das escolas de dança. Associam-se as artes do corpo e movimento a valores intelectuais inferiores e admite-se assim uma maior aptidão das mulheres para exercer tal profissão. Desse modo justifica-se o elevado número de mulheres nas escolas de dança no ensino superior. No entanto, ao observar-se através do conceito de 8 I am speaking here of the necessity of reassessing the quality of all the aspects of our lives and of our work, and of how we move toward and through them. (LORDE, 2007, p. 55) 9 the principal horror of such a system is that it robs our work of its erotic value. (LORDE, 2007, p. 55) 142

intersecionalidade 10 (CRENSHAW, 1993), as formas de opressão e exclusão, percebe-se a excassez no número de mulheres intelectuais negras integrando o corpo docente nesses espaços por uma herança histórica que continua arraigada ao imaginário social. Além da herança histórica da mulher negra destacam-se dois outros fatores que contribuem para a ausência de mulheres negras compondo o corpo docente das escolas de dança no ensino superior: o eurocentrismo e a folclorização das danças de matriz africana. Apesar do fato de que "o Brasil é o segundo país com a maior população negra no mundo, ultrapassando-o apenas a Nigéria" (LEBON, 2007, p. 52; tradução nossa) 11 o eurocentrismo na academia brasileira ainda é um obstáculo para a implementação de pedagogias alternativas de origem afroameríndia. De acordo com James (1993), eurocentrismo não é necessariamente o resultado da presença de descendentes de europeus. "Em uma sociedade e cultura, onde o branco europeu representa tanto a manifestação ideal quanto universal da civilização, sem surpresa, tanto 'Negro' quanto 'Branco' adotam ou adaptam-se a este paradigma como visão de mundo" (JAMES, 1993, p. 119; tradução nossa 12 ). Em sua experiência em instituições majoritariamente brancas, a autora observa que existe uma intolerância em relação à negritude e feminilidade que os relega ao reino do selvagem, exótico, e à invizibilização. Em contraste, admite-se que branquitude e masculinidade são padrões supremos a serem imitados e seguidos. Como exemplo de como o eurocentrismo atua no campo da dança, Santos observa: Na Escola de Dança [UFBA], o contato com as experiências dos professores e coreógrafos, Clyde Morgan na interpretação e; Margarida Parreira na organização, disciplina e pesquisa direcionaram o meu trabalho artístico; todavia, o currículo de curso dava ênfase aos valores das técnicas corporais euro-americanas. Eu sentia a necessidade de algo mais profundo. A tradição cultural brasileira deveria fazer parte da formação profissional do bailarino, coreógrafo e intérprete. (SANTOS, 2006, p. 27) 10 Crenshaw utiliza o conceito de interseccionalidade para denotar os vários caminhos em que raça e gênero se cruzam e interagem produzindo as múltiplas dimensões nas experiências das mulheres negras. (CRENSHAW, 1993, p. 1244) 11 Brazil is the second only to Nigeria in the world in terms of the size of the black population (LEBON, 2007, p. 52). 12 In a society and culture where the white European represents both the ideal and universal manifestation of civilization, unsurprisingly, Black as well as white people adopt or adapt this icon as worldview (JAMES, 1993: 119). 143

No depoimento de Santos evidencia-se que uma das implicações da perpetuação do eurocentrismo na academia brasileira é a negligência de tradições culturais afro-brasileiras. Mesmo com iniciativas que facilitaram o contato de Santos com o coreógrafo Clyde Morgan, que nos anos 1960 estimulou o intercruzamento entre a dança moderna e os elementos das danças populares e ritualísticas de matriz africana em trabalhos coreográficos desenvolvidos por ele ao dirigir o GDC- Grupo de Dança Contemporânea da UFBA, entre os anos 1960 e 1970, a grade curricular não contemplava as danças brasileiras e com o tempo, passaram a ser contempladas numa proporção pequena em relação ao que se vivencia no universo cultural baiano. Entre os anos 1990 e 2000 o currículo do curso incluia apenas a disciplina Dança Folclórica (I e II) que contemplava elementos das danças brasileiras de matriz africana, no entanto, a base técnica corporal da Escola continuava a ser euro-americana. Recentemente, outras disciplinas que foram incluídas e estão mais diretamente relacionadas com a cultura brasileira são optativas como é o caso de Dança Folclórica II, História da Dança Brasileira, Cultura Brasileira, Cultura Baiana e Antropologia do Folclore. O fato de essas disciplinas tratarem da cultura brasileira aponta para uma possível mudança, mas não significa necessariamente que tais disciplinas tenham foco nas manifestações de matriz africana. Partindo da premissa de que as danças de tradição africana são entendidas como folclórico ou baixa arte, observa-se a reminiscência de um olhar folclorista que posiciona alta cultura e cultura popular, subalterno e hegemônico, tradicional e moderno como polos opostos e excludentes (CANCLINI, 1989, p. 207 ). Neste cenário, as manifestações e danças populares de matriz africana tendem a ser vistas como práticas isoladas no tempo e no espaço e que devem ser investigadas apenas como práticas de grupos específicos em determinadas regiões que conseguem manter-se alheias às transformações tecnológicas e culturais decorrentes da combinação da microeletrônica com a telecomunicação (CANCLINI, 2008, p. 215). O que Canclini afirma é que as culturas tradicionais estão transformando-se e acompanhando os avanços da contemporaneidade, portanto não correm risco de serem suprimidas pelo processo de modernização porque elas fazem parte de um mesmo universo. Do mesmo modo, Marilena Chauí (1986) observa numa perspectiva gramisciana que a cultura popular não deve ser vista como oposta e desconectada da cultura dominante ou hegemônica, mas é parte dela (OLIVEIRA, 144

2012, p. 21). Nesse sentido não existiria motivo para separar e minimizar o potencial técnico corporal, expressivo, criativo e cênico das danças de matriz africana, nem para categorizá-las. O que Santos e Lima fazem é aliar o conteúdo filosófico, histórico, político e social adquiridos nas suas vivências com a cultura Iorubá e a Capoeira Angola, a elementos técnico- corporais e expressivos estudados no campo da dança e do teatro para ampliar as possibilidades de atuação artística. Os estudos do corpo e do movimento desenvolvidos por Rudolph Laban 13, por exemplo, servem de referencial para Santos repensar o gestual e os movimentos presentes nas danças dos Orixás, mais especificamente na dança Batá, e outras danças afro-brasileiras como o Samba de roda, maculelê, capoeira, dentre outras. Como sua aluna afirma: Não pesquisamos o samba enquanto objeto folclórico, mas sim enquanto instrumento enriquecedor do nosso fazer artístico. Que juntemos às seculares técnicas americanas e européias, a sabedoria presente na arte da dança popular, que é a própria caracterização do ser brasileiro (SANTOS, 2006, p. 112 ). No caso de Lima, os estudos de Eugênio Barba sobre uma Antropologia Teatral informaram sua investigação da Capoeira Angola. Lima pensa numa pré-expressividade da capoeira e identifica princípios apontados por Barba como o equilíbrio e o equilíbrio precário, a dilatação, e o princípio da equivalência presentes no treinamento da Capoeira. A Capoeira aborda tais princípios de modo diferenciado do utilizado por Barba, ampliando as possibilidades de exploração do ator em relação ao corpo e movimento. Um fator fundamental para a profundidade dos trabalhos desenvolvidos por Santos e Lima é o conhecimento empírico das práticas ou a vivência como pesquisadoras praticantes mais do que como pesquisadoras observadoras. Santos encontra na cultura Iorubá uma riqueza mitológica que lhe fornece subsídios para a elaboração de uma proposta de preparação corporal e artística inspirada pela tradição transmitida por seus ascendentes no Brasil e com a qual conviveu durante 13 Rudolph Van Laban criou um Sistema de Análise de Movimento hoje conhecido como Análise Laban de Movimento ou Labananálise. Tal Sistema nasceu da vontade de encontrar uma maneira de manter vivas e arquivar obras de dança que, a partir de então, poderiam ser escritas numa linguagem universalmente compreensível. O Sistema Laban de Análise do Movimento é formado por quatro pilares: estudos do corpo, esforço, espaço e forma. Laban identifica tais componentes como fundamentais para a realização do movimento, e aprofunda sua pesquisa em três vertentes que denomina: Notação ou Labanálise ligada ao registro do movimento; Corêutica ou Coreutics voltada para a orientação do corpo-movimento no espaço; e Eucinética ou Eucinetics vinculada à energia aplicada para a execução do movimento. (OLIVEIRA, 2012, p. 38) 145

seis anos na Nigéria. Santos procura aliar técnica e história de vida para pensar a arte da dança. Ela afirma: Meu objeto de investigação tem sido a tradição cultural e a criatividade, porém devidamente compreendidas como expressão da diversidade corporal dos povos que vivem no Brasil e que tem colaborado para este tecido social complexo, colorido, belo, e tão mal compreendido. A homogeneidade de expressão é destruidora, sendo, por isso, indispensável compreender a pluralidade cultural brasileira. (SANTOS, 2006, p. 35) Ao tratar de pluralidade a autora enfatiza a necessidade de esclarecer e divulgar tradições de matriz africana que diz[em] respeito, direta e indiretamente, a todos que vivem no Brasil (SANTOS, 2006, p. 36). A autora encontra na cultura e mitologia Iorubá a possibilidade de reafirmar história pessoal na vivência da tradição através da recriação artística dos gestos e princípios revelando o quanto as autobiografias vão além de narrativas pessoais porque elas revelam através da história de um indivíduo a história de muitos e aponta questões, sociais, históricas e políticas que afetam uma comunidade como um todo e não só um indivíduo isolado (JAMES, 1993). Do mesmo modo, ao tomar a sua própria experiência com a Capoeira como base para o treinamento para a cena Lima procura aliar técnica às suas necessidades e especificidades culturais, o que possivelmente conduzirá a uma melhor compreensão de si, autocrítica, visão de mundo e diálogo com o universo circundante (LIMA, 2010, p. 19). James chama atenção para um risco no uso das tradições de matriz africana ou indígenas, o risco destas servirem apenas para auto-promoção ou em interesse próprio e desconectado de um saber empírico. Ao falar da introdução de tradições africanas na academia norte-americana, James afirma: Estórias Afro-americanas podem ser contadas, músicas cantadas e danças dançadas não em benefício da comunidade e dos ancestrais mas para a 146

exibição e auto-promoção e para entreter empregadores. (JAMES, 1993, p. 42; tradução nossa) 14 James faz referência à produção e repercussão do documentário dirigido por Maya Deren Divine Horsemen: The Living Gods in Haiti, que promoveu Deren no meio artístico e acadêmico durante os anos 1980, mas revelava a inexistência de uma real ligação com aquelas comunidades, crenças e rituais.(james, 1993, p. 42) A formação de produtores culturais e profissionais que tém como objetivo a promoção e a venda de shows folclóricos, por exemplo, funciona como entrenenimento para a indústria de turismo e eleva os nomes dos que divulgam estes grupos, mas não trazem nenhum real benefício aos que perpetuam e praticam tais tradições. Como as tradições africanas fazem parte da história de vida e experiências diárias de um grande número de brasileiros, e, considerando-se que a produção cultural tem sido uma importante estratégia de sobrevivência para os afrodescendentes (AFOLABI, 2009, p. 1), a negação destas influências equivale a uma negação das identidades culturais e raciais Eurocentrismo na academia brasileira, certamente contribui para o seu isolamento. De acordo com Lima, o Teatro contemporâneo tem demandado uma heterogeneidade nos métodos de treinamento que contemplem a diversidade corporal, cultural, teórica e filosófica. Ela afirma: De fato, se olharmos em perspectiva, pode-se observar que são as orientações que primam pela heterogeneidade de abordagens que têm enriquecido a arte do ator ao longo de toda história. A diversidade das técnicas e os instrumentos para o ator têm sido, naturalmente, tão diversos quanto ele. Isso significa que a visão que restringe o olhar apenas para um referencial branco-europeu, por exemplo, segue na contra-mão do que poderia ser chamado de bom-senso. Por essa razão, enegrecer e indianizar essa visão será sempre uma maneira de ampliar e subverter esse olhar branco de mão única. (LIMA, 2008, p. 18) 14 African (American) stories can be told, songs sung, dances danced not for the benefit of the community and ancestors but for the purpose of exhibition and self-promotions to entertain employers. ( JAMES, 1993, p. 42) 147

Santos (2006) e Lima (2008) questionam os centrismos que limitam e estreitam tanto a atuação de mulheres negras na academia brasileira quanto a inclusão de elementos de matriz africana. Através da introdução de tradições e filosofia africanas e afro-brasileiras como ferramentas eficazes no treinamento do ator e do dançarino e na criação artística, elas criam a possibilidade da cultura popular afro-brasileira, relegada à esfera do primitivo e folclórico, ser entendida como epistemologia. INCORPORANDO TRADIÇÕES AFRICANAS: PROPOSTAS METODOLÓGICAS Santos e Lima operaram como o que James chama de "pensadores vivos" (1993, p. 34). Pensadores vivos são contadores de histórias que por via oral ou literal integram teoria e filosofia, o que significa a prática de "viver nossos pensamentos e contar nossas vidas, simultaneamente refletindo sobre isso" (1993, p. 35; tradução nossa 15 ). Ao descrever sua própria trajetória na dança, ressaltando a necessidade que sentia de estudar o corpo e os movimentos que faziam parte dos rituais afro-brasileiros, as autoras provocam reflexões sobre a hierarquia nos métodos de treinamento corporal, a necessidade de identificação dos artistas negros com os estudos de corpo na academia e sobre o vocabulário de movimento abordado nas escolas de dança, a tendência a tratar as manifestações culturais de matriz africana como folclóricas, e como pensar corpo-mente-espírito, sagrado e secular, indivíduo e coletivo como partes complementares de um único ser. No processo de desenvolvimento de sua proposta metodológica, Santos baseia-se em aspectos sociais e artísticos do ritual Batá, geralmente relacionado ao Orixa Xangô. Ao observar specificamente a dança do Batá a autora identifica qualidades de movimento como gestos rápidos, cortados e diretos, posturas que exploram flexão e extensão de joelhos, deslizar dos pés em contato com o solo, sapateado e inclinação do corpo da cintura para a frente. Santos também observa o uso do espaço, figurino e a relação entre ritmo e movimento ou entre o corpo e os tambores também chamados de Batá. Ela se inspira e incorpora tais elementos em sua prática em sala de aula incluindo no processo de preparação corporal exercícios físicos para o 15 Philosophizing and theorizing in autobiographical storytelling are practices, in which we live our thoughts and recount our lives, reflecting this. (JAMES, 1993, p. 35) 148