EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E ENSINO DE HISTÓRIA: POSSIBILIDADES E DESAFIOS NETA, Rosa Lina de Jesus (UFG) 1 NOVAIS, Sandra Nara da Silva (UFG) 2 Resumo: Ensinar História tendo como instrumento apenas o livro didático tem contribuído para empobrecer, limitar, restringir o conhecimento e negar o aluno/a como sujeito histórico. Os conteúdos apresentados pelos manuais didáticos por serem uniformizantes, não levam em consideração as particularidades regionais, as especificidades locais e a diversidade étnico/cultural brasileira. Buscando contraporse a esse ensino de história factual, cronológico e desarticulado da vivência e das experiências de grande parte dos alunos/as, entendemos que a Educação Patrimonial, por ser um processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado no Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento individual e coletivo, permite construir uma proposta de ensino de história interdisciplinar com ênfase nos aspectos da história e cultura local. Partindo da experiência e do contato direto com as evidências e manifestações da cultura em seus múltiplos aspectos, sentidos e significados o aluno/a será capaz de fazer a leitura do mundo que o rodeia compreendendo o universo sociocultural e a trajetória histórico-temporal em que está inserido. Também é uma maneira de assegurar que a escola possa ser um espaço de encontro entre as diferentes formas de ser, de pensar e de sentir, de valorizar, de viver e de conhecer. Palavras chave: Educação Patrimonial Ensino de História - Identidade O conceito de patrimônio histórico, no decorrer dos últimos anos, vem sendo analisado e compreendido sob uma perspectiva mais ampla em relação à compreensão positivista que predominou até a década de 1930 no Brasil 3. Desconsiderando o contexto em que os bens culturais são produzidos, coube aos museus inicialmente a sacralização de determinados objetos em detrimento de outros. Hoje se considera que há uma diversidade de patrimônios se estendendo a todos os lugares e abrangendo as diversas atividades culturais, elaboradas pelos mais variados grupos sociais. Essa compreensão ampliada do que implica o termo patrimônio possibilitou considerar como nos mostra Soares (2003, p. 20-21) que o patrimônio cultural pode ser percebido como pertencente à natureza (clima, vegetação), às técnicas (o saber fazer) e aos artefatos. De acordo com Horta (1999), devemos entender que: 1 - Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e pós-graduanda em História Cultural: narrativas e linguagens pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Professoras das rede Municipal e Estadual de Ensino. 2 - Graduada e mestre em História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e doutoranda em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professora assistente do curso de História da Universidade Federal de Goiás - UFG/Jataí. novaisnara@hotmail.com 3 - No Brasil considerando-se desde a Constituição de 1824 as leis pouco disseram sobre a preocupação com os bens culturais até a década de 1930 quando foi criado o IPHAN (Instituto de Preservação do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Órgão este que esteve ligado à figura de Mario de Andrade. 1
(...) artesanatos, maneiras de pescar, caçar, plantar, cultivar e colher, de utilizar plantas como alimentos e remédios, de construir moradias, a culinária, as danças e músicas, os modos de vestir e falar, os rituais e festas religiosas e populares, as relações sociais e familiares, revelam os múltiplos aspectos que pode assumir a cultura viva e presente de uma comunidade. (HORTA, 1999, p. 07) As relações que os indivíduos estabelecem com os diferentes patrimônios são fundamentais para a preservação da memória, possibilitam pensar outros tempos, compreender outros modos de vida, conhecer outras técnicas, pensar a diversidade de fazeres e saberes que permeiam o cotidiano das múltiplas culturas. Ao pensar o conceito de patrimônio Soarez (2003) nos adverte que: Na construção de um conceito de patrimônio, seja ele histórico, artístico, cultural, seja emocional, estamos ante situações nas quais a contextualização é fundamental para a existência do objeto, dado o perigo de serem realizadas coleções museológicas desprovidas de qualquer sentido na preservação da memória. (SOAREZ, 2003, p. 21) Frente ao exposto faz-se necessário buscarmos alternativas para a preservação do patrimônio histórico/cultural pensando na necessidade de se educar para preservar. Nesse contexto consideramos que a Educação Patrimonial se desponta como uma possibilidade de educação para a preservação da memória coletiva. Como propõe Soarez (2003, p. 24) a Educação Patrimonial pode ser entendida como um programa que busca a conscientização das comunidades acerca da importância da criação, da valorização e da preservação dos patrimônios locais. Ou seja, é uma tentativa de se preservar e valorizar a diversidade de patrimônio histórico-culturais existentes em uma região, sociedade ou nação, a fim de assegurar e manter as identidades individuais e coletivas dos diversos grupos sociais no contexto da diversidade de expressões que lhes são próprias. Partindo das considerações apresentadas, este trabalho tem por objetivo discutir a possibilidade de se trabalhar Educação Patrimonial e ensino de História no processo educativo escolar numa proposta de ensino com ênfase nos aspectos da história local, como uma forma de se contrapor à memória da classe dominante que sempre buscou negar e excluir do processo histórico as contribuições que nos foram deixadas pelos índios, negros e demais minorias étnicas. Partimos do seguinte questionamento: A Educação Patrimonial pode ser como propõe Paulo Freire, em seu método educacional, um instrumento-chave para a leitura do mundo e para a comunicação com o outro? Pode ser ainda uma maneira de assegurar que a escola possa ser um espaço de encontro entre as diferentes formas de ser, de pensar e de sentir, de valorizar e de viver? Programas de Educação Patrimonial se encontram ainda em fase inicial em alguns países da América Latina com destaques para o Chile e o Uruguai. Nos últimos anos, essa proposta tem se transformado em um desafio para pesquisadores de várias áreas do conhecimento como a Arqueologia, Antropologia, História, Arquitetura, Arquivologia, Museologia, Artes entre outras. No ano de 2000, foi editado o primeiro livro sobre Educação Patrimonial pela Corporación del Património Cultural del Chile com o título El Baúl de mis tesoros, elaborado pela 2
psicopedagoga Beatriz García-Huidobro, pela psicóloga Neva Milicic e pelo arqueólogo Francisco Mena Larraían. Esse livro destina-se ao público infantil e traz orientações sobre a valorização do patrimônio. Existem também projetos referentes ao tema, como o Projecto piloto en escuela de lo Cartagena, onde o trabalho de Educação Patrimonial tem sido desenvolvido através de oficinas pedagógicas e ações que incentivem os educadores a trabalhar de forma concreta com os educandos. No Brasil, algumas iniciativas podem ser apontadas como referência de trabalhos na área da Educação Patrimonial. Dentre elas cita-se o trabalho do Museu Imperial do Rio de Janeiro, que tem como organizadora a museóloga Maria de Lourdes Parreiras Horta. No ano de 1983, aconteceu o 1º Seminário de Educação Patrimonial no Brasil, evento realizado no Museu Imperial, em Petrópolis RJ, inspirado no trabalho pedagógico desenvolvido na Inglaterra sob a designação de Heritage Education, a partir do qual se desenvolveu uma metodologia específica para o trabalho educacional em museus e monumentos históricos, a qual pode ser encontrada no Guia Básico de Educação Patrimonial (2006) 4. Outra contribuição significativa é a de Berenice Corsseti: Neoliberalismo, memória histórica e educação patrimonial (1999). Em suas considerações, essa autora enfatiza os reflexos da política neoliberal no campo educacional procurando mostrar como a Educação Patrimonial pode se contrapor a esse processo, ao promover a ativação da memória e da preservação dos bens culturais locais. Segundo Horta (2006), a Educação Patrimonial é: (...) um processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado no Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento individual e coletivo. A partir da experiência e do contato com as evidências e manifestações da cultura, em todos os seus múltiplos aspectos, sentidos e significados, o trabalho da Educação Patrimonial busca levar crianças e adultos a um processo ativo de conhecimento, apropriação e valorização de sua herança cultural, capacitando-os para um melhor usufruto destes bens, e propiciando a geração e a produção de novos conhecimentos, num processo contínuo de criação cultural. (HORTA, 2006, p. 6) Ensinar História tendo como instrumento apenas o livro didático é uma atitude que contribui para empobrecer, limitar e restringir o conhecimento. Os conteúdos apresentados pelos manuais didáticos são, na maioria das vezes, uniformizantes, não levando em consideração as particularidades regionais e as especificidades locais. Bittencourt (2008) nos adverte que o livro didático é: (...) um importante veículo portador de um sistema de valores, de uma ideologia, de uma cultura. Várias pesquisas demonstram como textos e ilustrações de obras didáticas transmitem estereótipos e valores dos grupos dominantes, generalizando temas, como família, 4 - HORTA, Maria de Lourdes Parreiras. Guia Básico de Educação Patrimonial / Maria de Lourdes Parreira Horta, Evelina Grunberg, Adiana Queiroz Monteiro. Brasília: Instituto do Patrimônio e Artístico Nacional, Museu Imperial, 2006. 3
criança, etnia, de acordo com os preceitos da sociedade branca burguesa. (BITTENCOURT, 2008, p 72) 5 Como uma alternativa ao uso do livro didático é que vemos a Educação Patrimonial como uma possibilidade para ampliar as questões que permeiam o ensino de história nas salas de aula do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. A Educação Patrimonial busca despertar o senso crítico e a tomada de consciência para a importância da valorização do patrimônio cultural pelas comunidades, além da possibilidade de contribuir para a construção da identidade e da cidadania por meio de um trabalho educativo coletivo. Ao trabalhar com os bens culturais tangíveis aos educandos possibilita a ampliação das noções de valorização, resgate e preservação dos patrimônios histórico/culturais locais, de toda comunidade envolvida. (MACHADO; HAIGERT; POSSEL, 2003, p. 48). De acordo com Machado; Haigert; Possel (ibid., p. 52) é por meio da valorização e promoção da cultura local e regional que a história se torna mais próxima da realidade dos educandos e nesse contexto o educador deve ser a ponte entre o saber escolar e o comunitário (loc. cit.). Dessa forma é fundamental que os educadores partam da realidade dos educandos ao trabalharem os conteúdos de História visando tornar o ensino dinâmico e prazeroso, e que resulte em novas possibilidades pedagógicas de construção de conhecimentos e de transformação das condições de exclusão vivido por muitos alunos dentro da própria escola. Tendo em vista a necessidade de participação ativa dos educandos no processo de construção do conhecimento, os manuais didáticos que uniformizam e pressupõe a cultura como homogenia, dificulta esse processo reservando ao educando a função de apenas memorizar informações. Assim o educando ao assumir uma postura passiva frente ao conhecimento não se tona sujeito no processo ensino e aprendizagem e a escola segue reproduzindo o que Freire (2005) denominou de Educação Bancária, ou seja, a de depositar conteúdos, não tornando a aprendizagem significativa. Nesse modelo educacional o papel do educador se restringe a narrar, e o papel dos educandos consiste em memorizar o que está sendo narrado e reproduzir, repetir. Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante. (FREIRE, 2005, p. 66). Diante dessa atitude o conhecimento deixa de ser um processo de busca, indagações e questionamentos. Compartilhando das considerações propostas por DUSSEL (s/d p. 205) de que: A escola arroga-se assim o dever sublime de dar toda a cultura à criança, não valorizando os saberes e experiências vividas pelos educandos em seu cotidiano, acabam fazendo com que os conteúdos ministrados em sala de aula, por estarem desarticulados e fragmentados impeçam a compreensão da totalidade em que se insere o mundo. Nessa relação o saber é considerado uma dádiva dos que se julgam sábio frente aqueles que consideram nada saber, uns ignorantes. Assim, é importante ressaltar que a da Educação Patrimonial se apresenta como uma possibilidade que pode contribuir para mudar essa prática, permitindo que o aluno se perceba como sujeito histórico inserido em um processo coletivo de construção 5 - BITTENCOURT, Circe. Livro didático entre textos e imagens. In: O saber histórico na sala de aula / Circe Bittencourt (org.) 11. ed., 1ª reimpressão São Paulo: Contexto, 2008. (Repensando o Ensino). p. 72. 4
dessa história, onde este se faz sujeito com outros sujeitos com diferentes experiências e vivências. Ao proporcionar ao educando acesso a métodos, técnicas e práticas concretas que contribuam para estabelecer relação significativa entre os conceitos abordados e a realidade tendo em vista a complexidade de assimilação por meio do abstrato, o educador que estimula a manipulação de objetos concretos na construção do conhecimento permite uma melhor compreensão do tema pelos educandos, que passam a construir conhecimento em lugar de memorizá-lo, sendo incentivados na sala de aula a serem sujeitos da História, portanto efetivos cidadãos (MACHADO, 2003, p. 87). Ainda de acordo com Machado (2003): Despertar a curiosidade dos educandos e fazer com que eles procurem novas informações é incentivar que formulem e identifiquem, em conjunto com os educadores, novos conhecimentos e também que tomem contato com os patrimônios de suas localidades, no intuito de fundamentar uma identidade cultural (Machado, ibid., p. 89). Ao estudar objetos pertencentes ao cotidiano das comunidades, os indivíduos participam ativamente de um processo de valorização de sua herança cultural, dela se apropriam produzindo e adquirindo conhecimento, pois os objetos ganham forma quando relacionados ao cotidiano de educadores e educandos. Segundo Machado (ibid., p. 88), além de despertar a curiosidade dos educandos, a Educação Patrimonial objetiva fazer com que observem um objeto concreto da cultura material e, a partir dele, recolham informações para construir um conhecimento elaborado. O objeto real constitui fonte de informação sobre o contexto histórico em que foi produzido e utilizado, sobre a rede de relações sociais que o dotaram de significado. Um simples objeto do cotidiano, uma paisagem, uma cidade, uma manifestação festiva ou religiosa, contém um complexo sistema de relações que devemos interpretar a fim de ampliar nossa capacidade de compreensão do mundo (HORTA, 1999, p. 09). Considerando a multiplicidade de aspectos e significados presentes nos objetos culturais é que estes podem ser utilizados pelos educadores como elementos essenciais ao desenvolvimento dos currículos para o ensino de História visando tornar o ambiente da sala de aula propício a interação, ao debate, a novas descobertas, a troca de experiências e construção de conhecimento, pois: A Educação Patrimonial consiste em provocar situações de aprendizado sobre o processo cultural e seus produtos e manifestações, que despertem nos alunos o interesse em resolver questões significativas para sua própria vida, pessoal e coletiva (HORTA, ibid, p. 08). É nessa perspectiva que entendemos a Educação Patrimonial como uma possibilidade na construção da identidade cultural na medida em que promovem o diálogo entre educadores, educandos e comunidade mediante a participação e a ação coletiva. Acreditando que na troca de experiências se constrói aprendizado almejamos que essas reflexões possam, de algum modo, contribuir para o exercício 5
de uma prática pedagógica efetivamente construtora de saberes em um processo continuo de criação cultural. Acreditamos ser possível tornar o processo de ensino e aprendizagem em História mais atrativo e significativo para educadores e educandos por meio do diálogo entre esse campo do saber e a Educação Patrimonial. Enfim, é na busca de formas alternativas de se ensinar e aprender História que educadores e educandos podem se perceber como sujeitos ativos no processo de construção histórica e que, partindo de suas vivencias e experiências cotidianas possam ampliar as descobertas da sala de aula abrangendo a comunidade local e, assim, construir, valorizar e preservar a memória coletiva. BIBLIOGRAFIA BITTENCOURT, Circe. Livro didático entre textos e imagens. In: O saber histórico na sala de aula. (org.) 11. ed., 1ª reimpressão São Paulo: Contexto, 2008. (Repensando o Ensino). CORSETTI, Berenice. Neoliberalismo, memória histórica e educação patrimonial. Revista da Faculdade Porto Alegrense de Educação, Ciência e Letras, Porto Alegre, p. 49-57, 2000. DUSSEL, Enrique. (s/d). Cultura Imperial, Cultura Ilustrada e Libertação da Cultura Popular In: DUSSEL, Henrique D. Para uma ética da libertação latino americana III: erótica e pedagógica. São Paulo: Loyola; Piracicaba: UNIMEP. GRÜNBERG, Evelina. Educação patrimonial: utilização dos bens culturais como recursos educacionais. Cadernos do Centro de Organização do Oeste (CEOM), ano 12, dez. 2000. HORTA, M. L. P; GRUNBERG, E; MONTEIRO, A. Q. Guia básico de Educação Patrimonial. 3. ed. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Museu Imperial, 2006, 68 p. MACHADO, A. S; HAIGERT, C. G; POSSEL, V. R. Cultura material, Educação Patrimonial e ensino de História: uma parceria possível. In: SOARES, André Luis Ramos (org.) et al. Educação Patrimonial: relatos e experiências. Santa Maria: UFSM, 2003, p. 43-52. MACHADO, Alexander da Silva. A construção da cidadania a partir da Educação Patrimonial. In: SOARES, André Luis Ramos (org.) et al. Educação Patrimonial: relatos e experiências. Santa Maria: UFSM, 2003, p. 83-95. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2005. SOARES, André Luis Ramos (org.) et al. Educação Patrimonial: relatos e experiências. Santa Maria: UFSM, 2003, 120 p.. Educação Patrimonial: valorização da memória, construção da cidadania, formação da identidade cultural e desenvolvimento regional. In: educação Patrimonial: relatos e experiências. Santa Maria: UFSM, 2003, p. 15-32. 6