Aristóteles e a ecologia



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Transcrição:

Aristóteles e a ecologia A ecologia, como saber que especula sobre a relação entre as espécies animais e os factores ambientais que as rodeiam, era uma disciplina meramente subjacente a outras áreas de interesse cultural. Sem que se possa ainda falar de ecologia como uma ciência autónoma no mundo antigo, muitos dos conceitos e das questões colocadas pela ciência grega, desde o seu período arcaico e clássico, têm um sentido próximo do que hoje consideramos o cerne dessa área de conhecimento. Decerto que os geógrafos do século V a. C. (Ctésias, em particular), os filósofos pré-socráticos, os autores de tratados hipocráticos 1, bem como os historiadores (Heródoto, entre outros) e o próprio Platão 2, ao dedicarem uma parte relevante dos seus escritos à descrição de espaços distantes ou desconhecidos para o mundo grego, depois que a guerra rasgou, à penetração europeia, horizontes asiáticos e africanos, não deixaram de elencar-lhes a fauna e a flora e de estabelecer, 1 É, por exemplo, manifesto o conhecimento que Aristóteles detém do tratado Sobre os Ares, Águas e Lugares (século V a. C.), que formula teorias de natureza ecológica semelhantes às que encontramos disseminadas em História dos Animais. 2 Sobre a importância destas fontes de informação para a produção biológica de Aristóteles, cf. S. Byl, «Index géographique des traités biologiques d Aristote», Bulletin de l Association Guillaume Budé, 1 (2004), 109-119. 13

entre factores climáticos ou físicos e os recursos naturais, relações evidentes. Este tipo de interesse não deixou nunca de mobilizar a atenção de historiadores e filósofos, ao longo de toda a Antiguidade. No que a Aristóteles especificamente respeita, F. Borca 3 salienta como o passo mais célebre, nesta perspectiva, é o que, em Política, 1327b, pretende caracterizar, em função da posição geográfica que ocupa, a natureza do homem grego, por contraste com o asiático e o que ocupa a Europa centro-norte. Mas naturalmente que os tratados de natureza biológica, desde logo a História dos Animais, com particular relevância para os livros VII (VIII) e VIII (IX), alargam a perspectiva desta interacção às espécies animais em geral, dentro do espaço amplo onde Aristóteles situa a sua investigação 4. É relevante o número de situações observadas e a natureza dos fenómenos desencadeados, que uma avalanche significativa de exemplos torna incontestável; sobre as causas que os determinam é Aristóteles claramente mais parco, ora por desconhecimento ou por simples omissão 5. 3 «Animali e ambienti naturali: spunti deterministici in Aristotele, Historia Animalium, 8. 28-29», Aufidus, 43 (2001), 7. 4 Cf. M. F. Silva, Aristóteles. História dos Animais, I (Lisboa, 2006), 23-28. 5 P. Louis, Aristote. Histoire des Animaux, I (Paris, Les Belles Lettres, 1964), XII, recorda a metodologia confessa de Aristóteles, em Partes dos Animais, 646a8-12: depois de ter descrito, na História dos Animais, as partes que constituem os seres vivos, em Partes dos Animais propõe-se exami- 14

Um primeiro pressuposto teórico é estabelecido em 589a3-6, que define, como funções essenciais à vida animal, a reprodução e a alimentação: «Uma parte da vida dos animais é portanto consagrada ao processo da reprodução, enquanto outra se reporta à alimentação. De facto, é em relação a estes dois objectivos que todo o seu programa de vida se organiza.» Naturalmente que, por trás deste «programa de vida» que visa assegurar a sobrevivência e continuidade de cada espécie, está a relação possível com o meio ambiente como contexto que as condiciona e suporta. Por isso, Aristóteles acrescenta, como pressuposto seguinte (589a10-11): «As espécies dividem-se de acordo com o seu habitat. Assim há as terrestres e as aquáticas.» 6 Esta grande bipartição obedece a três critérios decisivos (590a13-16): se absorvem ar ou água, que temperatura corporal apresentam e que alimentação consomem. Se é fundamental, em matéria ecológica, estabelecer, em termos ainda gerais, as características e necessidades essenciais dos seres vivos, não é menos relevante, numa perspectiva paralela, definir um conjunto de factores que caracterizam cada habitat, como determinantes à existência de um certo tipo de fauna e de flora. Renar as causas que explicam a especificidade de cada uma dessas partes. Logo, o conteúdo de História dos Animais será uma recolha descritiva e exemplificativa, sendo a etiologia reservada para o tratado seguinte. 6 Platão (Sofista, 220a-b, Político, 264d-e) tinha já estabelecido repartição semelhante entre espécies aquáticas, terrestres e voadoras. 15

gistamos assim a insistência com que Aristóteles valoriza a relação entre o ambiente e as espécies que o habitam: «Para cada uma das espécies é importante o lugar onde vive» (602a16); «a própria natureza de cada espécie procura o habitat que lhe é mais conveniente» (615a25-26). Porque cada lugar reúne um conjunto de características próprias, torna-se de certa forma específico o que se reflecte na sua fauna e flora, como também nos seres humanos que nele residem e nos costumes que praticam. Aristóteles traduz esta singularidade em palavras particularmente breves e peremptórias: «A fauna varia conforme os lugares» (605b22). Pode mesmo estabelecer-se uma hierarquização, na relação habitat/espécies de vida animal, escalonada em três níveis: a existência, num determinado lugar, de uma espécie que obedece, em qualidade e quantidade, a um padrão normal ou regulamentar; ou então a existência residual de uma certa espécie, representada por um número de exemplares escasso e de uma qualidade ou tamanho inferior; ou, em caso limite, a inexistência pura e simples de uma espécie num determinado lugar. Mais difícil será encontrar, para esta verificação, uma justificação satisfatória, já que a enumeração e comparação de exemplos mostrará a existência de inconsequências nem sempre justificáveis. «Há casos» continua Aristóteles, 605b25- -27 «em que as diferenças na fauna se verificam em regiões entre si próximas.» Os exemplos que se seguem, na ausência de justificações, deixam a pairar sucessivas perplexidades, sem deixar de ser, na abundância com que são reunidos, a prova de uma verdade incontestável (605b27 e segs.): assim, por exemplo, em redor de Mileto há 16

ÍNDICE GERAL Agradecimentos... 9 Introdução, por MARIA DE FÁTIMA SILVA... 11 Aristóteles e a ecologia... 13 A alimentação... 29 A reprodução... 36 O clima... 38 A sexualidade humana... 50 Livro IX (VII) A reprodução humana... 50 Livro X Fertilidade e esterilidade humanas... 60 Bibliografia... 69 HISTÓRIA DOS ANIMAIS LIVRO VII (VIII)... 73 LIVRO VIII (IX)... 129 LIVRO IX (VII)... 203 LIVRO X... 227 Índice dos nomes de animais... 249 Índice português-grego dos nomes de animais (livros I-X)... 257 271