DE LEITOR A TURISTA NA ILHÉUS DE JORGE Por AMADO mares nunca dantes navegados Maria de Lourdes Netto Simões* Eu vim de longe, vim ver Gabriela Camões Considerações iniciais Jorge Amado imagens apreciar Vivenciando como novas aquelas concepções de outrora. de Deixaram espaço, o de leitor existir destes as experiências tempos mais que recentes as cidades não traz oportunizavam: no seu repertório metrópoles, as ruas, pessoas o sentar-se não mais na praça, convivem o caminhar com a cidade a esmo, enquanto o perder-se elemento nos bairros. de intimidade, No cotidiano lazer, das o cumplicidade. elegeu bem os shoppings Elas (as como cidades) os centros tornaram-se de comércio, sinônimo lazer, de insegurança ponto de encontro e violência. e deslumbramentos. O mundo globalizado para observa multifocal. Canclini Mudou (1997), a concepção perdeu-se do a experiência urbano, atrelada do conjunto. que está A cidade às questões deixa globalização. ser centralizada, Como Nesse para literário, conhecer contexto, um habita mundo o leitor não familiar. que, ao interpretar Movido pela o imaginado vontade de ficcional ver a paisagem tem a sua que curiosidade inspirou o aguçada com "passeia" pela cidade que a ficção oferece. Assim nasce o leitor-turista. Não satisfeito, texto ficção. a mobilidade ficcional somente, ele quer "ler"/ver, ao vivo a cores, os locais reais tomados porém, leitor, viajando De leitor para a turista re-conhecer é um passo: e observar aquele as que re-significações a mobilidade e daquelas o trânsito cidades, permitem. antes Torna-se "visitadas" turista- pela da leitura. através Certamente, além da curiosidade instigada por aquela interpretação, move, também, esse leitor especial o
sentimento valorização mais do regional, recente do de local. desterritorialização Ou, mesmo, ele (provocado vê cidade pelas como interações densidade globais) histórica e, ainda, (Canclini, a Realizo essas considerações iniciais para sustentar a idéia de que a leitura textos ficcionais contribui 1997). livro leitor, para o instiga-o fluxo turístico a se tornar cidades um leitor-turista, ficcionalizadas. que "passeia" Nesse raciocínio, pela cidade-ficção, o efeito (Iser, através 1996) das do páginas texto sobre que o nesse lhe leitor, oferece; assume-se posteriormente, em turista-leitor, os passeios quando imaginados viaja, deslocando-se não mais o satisfazem para conhecer e o turista, a cidade que real, existe o inspiradora Para desenvolver daquela esse ficcionalizada. cacaueira Inicialmente, observo Jorge Amado, a raciocínio, relação como entre sabemos, foco a Ilhéus, sua obra escritor cidade (percurso brasileiro situada produtivo) no mais litoral divulgado, e sul o leitor. baiano, traduzido Depois, centro progressivamente, e do lido palco no exterior. da saga ocupo-me ressignificações pelas interações das incursões (novas entre o acepções) turista-leitor realizadas e pelo as e o reconfigurações habitante leitor-turista do e local. pelo (novas turista-leitor. formas), inclusive Finalmente, aquelas analiso provocadas as 1 - A Obra e o Leitor É livros vieses mais Cacau, diferentes, que sabido Terras fazem que do Jorge Sem-Fim, povoar Amado o imaginário Gabriela ultrapassa Cravo de leitores fronteiras e Canela, de nacionais imagens São Jorge das e ocupa dos terras Ilhéus, o do mundo Cacau Tocaia com da Grande, a Bahia, sua obra. por sua Os São Amado cultura, Jorge pintou sua dos gente. o Ilhéus. seu Contam universo, Valendo-se ficcionalmente deu da perfil sua e memória ambientou a história e da das os vigorosa seus vivências personagens, nação do menino grapiúna, fazendo grapiúna que o habita contraponto que foi, as terras Jorge com de História da Região. a depois, Se neo-realista a obra atentos amadiana (anos ao 30), relato tem que vários fácil concretiza e agradável momentos sentidos e fases, contador, centrados o seu a movimentação leitor na problemática caminha com da social, cidade elas. na Primeiro, de relação Ilhéus, sob de a sua classe; um foco
sociedade, étnicas, história os seus e costumes; formação a da seguir, nação buscando, grapiúna. na obra, o entendimento da cultura, das questões Puderam trabalhadores imperialista os dos leitores rurais, exportadores acompanhar em Cacau, (São em as Jorge 1932; injustiças dos a conquista Ilhéus, sociais, 1944), a feudal prepotência a (Terras demonstração dos Sem-Fim, coronéis, da força 1942), a servidão política conquista (Grabiela, dos Cravo de saga conhecer e Canela, outra 1958). ótica Quarenta do acontecido anos quando, depois, esses em Tocaia mesmos Grande leitores (1983), (e outros recebem mais) a versão têm a oportunidade próprio do cacau, através da visão daqueles que foram esquecidos, injustiçados - a face obscura não-oficial (segundo da 1993) Jorge Amado), através do olhar de sergipanos, prostitutas, comerciantes, jagunços... (Simões, o Assim da coronéis conquista é que aquele das terras, mesmo da luta leitor de que classes leu os (coronel livros produzidos X trabalhador nos rural), anos 30, a ação que dos se deparou jagunços com (ajudando a época deliciou-se a enriquecerem com os bolinhos pela da força Gabriela, da sua acompanhou ambição), também as negociações divertiu-se políticas com as da noitadas mudança do do Bataclan, porto de os Ilhéus, grapiúna formadores a exportação já outra do ótica, cacau, que a foca sua comercialização. identidade, reconhece Depois, sergipanos, acompanhou negros a formação e turcos dessa como civilização panorama cultural dessa cultura. local. Conhecem Mostra como a história as classes contada menos por outro aquinhoadas viés. contribuíram e enriqueceram elementos o 2 - O leitor - turista estando livros Devido da ao em saga alcance locais cacaueira. os da mais recepção diversos, da sua "visitam" obra, Jorge a cidade Amado de Ilhéus, ganha apresentada leitores de múltiplas nas páginas nacionalidades dos vários que, Tal teatro, recentemente, recepção televisão, aumenta rádio e, expressivamente até mesmo, para devido a história às várias em quadrinhos. adaptações Assim do texto é que literário o leitor-turista, para o cinema, cinema. Esses realiza vários apelos a "viagem", somam-se também, e instigam através o das turista novelas, que existe dos filmes no leitor, exibidos quando na televisão a obra ultrapassa mais e no
Milagres, por a arte Ilhéus literária Renascer), toma e novas ganha fazendo cores. a tela do Aguça-lhes espectadores-turistas cinema e a da curiosidade televisão nos (Gabriela) de vários conhecer cantos ou a inspira do cidade país novelas palco e do exterior. de (Gabriela, tantos O interesses, Porto dos de Se, tantas num primeiro lutas, tanta momento, vida, tanta o leitor miscigenação é tomado pelo cultural. e mais a trama políticas que e é de urdida exigências nesse cenário), culturais, depois, discussão além contato do identitária, espaço, com o suscitam relacionadas espaço (as o seu ruas, principalmente interesse as praças, outras à formação questões fazendas, da Instigado nação pelas grapiúna: ressignificações a presença do literárias, sergipano, o leitor-turista a influência é do impulsionado negro, as raízes a visitar turcas o local, (Simões, conviver 1999). gente, perceber a cultura; poder sentir, da sua perspectiva de leitor, aquela realidade ficcionalizada. com a 3 - O turista-leitor Passando páginas de de Jorge leitor Amado. a turista, o tornado turista-leitor desloca-se em busca de reconhecer a região das depois Se turístico o fluxo de realizar turístico "viagens" da cidade através de Ilhéus do cresce livro é movido devido à a ação visitar da o local obra sobre palco da o leitor ficção - que, - esse como mesmo eu disse, nacional aumenta e internacional. quando a repercussão e aceitação da obra amadiana torna-se alvo de maior atenção fluxo Dessa por na re-conhecer forma, a obra Gabriela, do escritor o Vesúvio, grapiúna o Bataclan... tem trazido Provar às terras o fruto dos do "frutos cacau, de o ouro" bolinho um turista-leitor da Gabriela. ávido Ansioso praça por da catedral, "ler" a cidade ou andar como nas texto ruas cultural. estreitas da cidade por onde passavam Malvina e Gerusa. Sentar De à relacionando Ilhéus. todos Vindo os livros, as das suas Gabriela, várias concretizações partes Cravo do e Brasil Canela de sentido e é, exterior, sem à realidade dúvida, ele chega encontrada o maior à responsável cidade na paisagem com exigências pelo real. fluxo do pontuais, turista-leitor
Evidentemente Nem estórias, a Gabriela, essa figura cidade sociedade alvo curiosidade ilheense, é turística, a Gabriela não de é Jorge aquela Amado. pintada Inspiradora pelo narrador contador de Gabriela. imaginou sim. através Tal distância da leitura se, ficcional; por vezes, por outras, surpreende chegou o turista mesmo, que num quer tempo, re-conhecer, a criar constrangimentos no real, o que de locais, turistas-leitores quando alguém curiosos da em comunidade aproximarem se reconhecia a ficção da em realidade. alguns dos personagens ou era procurado por Para processa-as realidade muitos, e não as adianta torna em a fingimento. explicação de Mentira? que o imaginário Não. Pelo menos apenas não capta na as sua suas concepção idéias da corriqueira. realidade, que isso imaginada, mais é aquela do capturada o processo do do vivido fazer e literário, constituída que nem sentido sempre - ou interessa seja, ficcionalizada. ao turista. Mas É claro se Mas e tanto enxergado imaginar a não mesma tivesse terra Jorge e a mesma Amado gente escrito por as outro suas viés, estórias, aquele como face poderia obscura? dado o "salto" do olhar de Um Jorge center outro Amado, globalizados lado como da expectativa e que busca parada a do cidade no turista-leitor tempo. viva, não O é turista encontrar artificializada. foge naquela dos Busca grandes cidade o centros, pacata, da da cidade, aquela mesmice a dos pracinha, dos olhos shoppings de paisagem ruas, peculiar que não existem nas metrópolis. Surpreende-se quando não mais encontra cavalos nas janelas, coronéis o Bataclan com seus fervilhando chapéus de de aba mulheres, larga, burros o mar com lambendo caçuás, a praia levando da o avenida cacau Soares para o porto, Lopes, moças a nas praia diferente, do Pontal também cheia porque de banhistas... o lugar-tempo Tudo do mudou. olhar está O tempo deslocado. é outro. Não somente porque a ótica é Sabemos arruado comerciantes; entreposto que o e tempo Ilhéus de vendas não e os é homens mais distrito a Ilhéus operaram de Ilhéus, do Gabriela, a reconfiguração não é Cravo mais a e Tabocas da Canela, região dos apesar sergipanos cacau. de a Itabuna, catedral e dos o estar turcos antigo mesmo lugar lugar. Até mesmo as disputas entre as cidades arrefeceram, cada uma assumindo o seu perfil: no shopping de "papa-jaca" center), a primeira; (Itabuna) de e "papa-caranguejo" centro turístico, a segunda. (Ilhéus), para o de centro comercial (inclusive com do 4 - Ressignificações, Reconfigurações
Agora Um catedral, Vesúvio, o turista-leitor transformado encontra em restaurante, um Bataclan um restaurado porto virado fisicamente Centro de e vendas ressignificado, de artesanato. para atrair O teatro, o turista. lavoura atingiu restaurados. a cidade. Não Os mais palacetes jagunços, dos não coronéis mais estão pelejas. desabitados São outras ou transformados. pelejas. A decadência Enquanto da o a turista exploração Ônibus busca turística. o reconhecimento, Pousadas, restaurantes, a presença da baianas obra amadiana de acarajés. se faz, O signo para o Gabriela local, reconfigurada está por toda em Grabriela urbanos, atrai pela lanchonetes, beleza, sensualidade, pousadas... cheiro Tipos (de sanduíche, cravo e canela), sorvetes, instituindo chocolates... o "tipo" O Grabriela. símbolo da a parte. Mas do lida texto na a expectativa ficção. ficcional, Os costumes procurando turista-leitor mudaram. locais, não hábitos, Ressignificada, descola tipos, do culinária. imaginado. a cidade Estranha tomou Ele teimosamente novos não encontrar, ares. O se porto em reporta Ilhéus, é outro: à sua a cidade agora, leitura o ambientais, Bataclan, maior em mar fazendo aberto a praia da América da Avenida Latina; Soares construído Lopes em crescer, espigão com adentrando o recuo do o mar. mar, O provocou Vesúvio impactos Reconfiguraram-se restaurados outros. agora, Mas fazem o turista-leitor outro tipo de busca convite. na cidade Desconfiguraram-se as respostas para alguns as suas traços perguntas. identitários. e o mesmo cidade, não como aproveitamos diz Calvino, as em suas Cidades sete Invisíveis, ou setenta pela e sete boca maravilhas, do seu personagem mas a resposta Marco que Pólo, dá "de às nossas uma É perguntas" Por sua vez, (1972, habitante p. 35). imaginado a obra produziu. Faz a sua local cidade (também re-ler leitor), a obra sentindo-se através de apelos um tanto semióticos. dono da "marca", Estabelece busca "pontes" explorar entre o que tem, como e intersecção, o real. Assim, a obra passa amadiana. a acontecer Os locais uma relação procuram entre traduzir os turistas isso para e os os locais; turistas, relação na maneira essa que de o receber, Dessa forma, de comer, Jorge de Amado viver. transformou-se Assim a cidade em é tornada ícone e texto, a sua re-lida. sustentabilidade e desenvolvimento local, através do turismo - obra é ressignificada torna-se estratégia em mercadoria. para A tipo organiza relação de aproximação somente entre locais sobre - como e turistas princípios observa é contribui políticos, Canclini para segundo referindo-se a construção a participação à construção da cidadania "real" [...] cidadania cultural mas local. também cultural Isto de porque -"não uma se cultura esse
formada vida habitantes urbana" nos atos (Canclini, locais e interações exploram 1997, p. essas cotidianos, 96). Assim, leituras e se em para o projeção turista receber vem imaginária 'amadianamente' à região desses movido o atos pela turista. em leitura mapas de Jorge mentais Amado, da Textos visitação sobre à obra textos. literária. A literatura Outros provocando leitores surgem... a vida. outros A cidade turistas... revisitada, agora ela, vida, sugere uma outra 1990. CALVINO, Referências CANCLINI, Italo. Nestor (1972). Garcia. As Imaginários Cidades Invisíveis. Urbanos. São Buenos Paulo: Aires: Companhia EUDEBA,1997. das Letras, ISER, SIMÕES, identitárias. Wolfgang. Maria de El Lourdes Acto Leer. Netto. Madrid: A Literatura Taurus, Região l987. Editus. p. 119-127. In: Revista Republicado Centro em de Águas Estudos do Portugueses Almada - Cultural. Cacaueira Hélio Simões. Ago. Baiana: 1999. Ilhéus: questões. A Civilização das Terras de Jorge Amado, in Colóquio Letras, 127/128, Lisboa, jan.-jun, 1993. pp. 260-4. http://www.abralic.org/file.php/1/revistas/revista_brasileira_de_literatura_comparada_-_06.pdf *Pesquisadora CNPq. Profa. Pesquisadora DLA/Universidade Estadual de Santa Cruz. Ilhéus - Bahia - Brasil ticasimoes@uol.com.br Publicado na Revista Brasileira de Literatura Comparada, 6. Belo Horizonte: ABRALIC, 2002. p. 177-183.