ENTRE A LENDA E A HISTÓRIA: A NARRATIVA EM A CABEÇA DO TIRADENTES, DE BERNARDO GUIMARÃES



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Transcrição:

ENTRE A LENDA E A HISTÓRIA: A NARRATIVA EM A CABEÇA DO TIRADENTES, DE BERNARDO GUIMARÃES Gisela Morena de Souza * Bernardo Joaquim da Silva Guimarães nasceu em Ouro Preto em 1825, e atuou como magistrado, jornalista, professor, romancista e poeta. Guimarães viveu até os vinte dois anos de idade nas cidades de Ouro Preto, Uberaba e Campo Belo, e é quando se muda para São Paulo para estudar na Faculdade de Direito de São Paulo. Em 1852, muda-se para Catalão, em Goiás, para exercer o cargo de juiz municipal e de órfãos. Já na maturidade, ele vai para o Rio de Janeiro, atuando como jornalista e crítico literário, e em 1865 publica sua primeira obra, o volume, Poesias. E, em 1866 muda-se novamente para Ouro Preto, sendo nomeado professor de retórica e poética no Liceu Mineiro. Sua cadeira foi extinta, e desempregado, escreve várias obras entre 1869 e 1872. Em 1873, volta a lecionar em Queluz (atual Lafayette, MG), e em 1875, mais uma vez desempregado, ele passa a se dedicar somente à literatura, publicando poesias e principalmente, romances. Entre esses, A escrava Isaura, foi o que se tornou o mais popular, e o que fez com que ele fosse mais lembrado como romancista. 1 Bernardo Guimarães como romancista foi durante muito tempo criticado pelos críticos contemporâneos e pelos que se firmaram em boa parte do século XX, sendo * Mestranda em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. E possui pesquisa financiada pela Capes.

acusado, principalmente, de empregar uma linguagem considerada pobre, marcada por elementos próprios da oralidade. O romancista também foi criticado por trazer em suas obras assuntos do cotidiano e crendices das populações mais interioranas, o que acabou fazendo com que Guimarães ficasse conhecido pelo apelido de contador de causos. E a sucinta descrição de dados biográficos de Bernardo Guimarães, feita anteriormente, nos auxiliará na compreensão de sua identidade de romancista como contador de causos. Guimarães, como se pode notar, passou a maior parte de sua vida morando no interior do Brasil, o que com certeza possibilitou que conhecesse de forma mais minuciosa possível as tradições e os costumes dessas populações interioranas. Entretanto, é importante mencionar que não se propõe aqui uma relação causal, na qual o fato de escrever obras literárias que trazem a luz representações do interior se justifique e se explique por ter vivido nessa região do país; e sim, que o fato de ter morado nessas partes do Brasil, convivendo com os sertanejos, certamente fez com que ele conhecesse muito bem os hábitos e maneiras dessas regiões, o que contribuiu para que conseguisse os representar de modo mais consistente, com olhos de alguém que também faz parte do que é retratado e não apenas como alguém que observa o desconhecido, e que partilha muito pouco do que retrata. É como se as histórias fossem narradas por um próprio sertanejo. 2 No entanto, o apelido de Bernardo Guimarães como contador de causos não se explica apenas por ele ser um homem do interior, conhecedor do sertanejo, cuja literatura é marcada por representações desse ambiente, mas também pode entendido como parte de seu projeto político para a literatura nacional. Sua obra como romancista carrega essa marca do interior, porque para ele era no interior do país que estaria a expressão do que era, originalmente, o brasileiro. E, por isso uma literatura que se pretendia nacional, deveria tratar dos costumes do sertanejo e do sertão, não somente através dos assuntos e temas representados, mas ainda pela narrativa carregada de traços da oralidade, muito característico dessas populações. Assim, podemos dizer que o conjunto da obra em prosa de Guimarães é marcado por tratar do interior e de sua gente, aos quais os romancistas que viviam na

corte poucas vezes se dedicaram de forma tão incisiva. Essas obras trazem em suas páginas as particularidades de algumas localidades do Brasil, mais especificamente de Minas Gerais e Goiás, que foram os lugares onde Guimarães morou, com, por exemplo, descrições de costumes e tradições sertanejas, além das crendices religiosas, das lendas e dos contos populares, representando desse modo, a maneira de viver das populações mais afastadas do litoral. A produção literária desse autor também pode ser caracterizada por ter um conjunto de obras que traziam, em suas páginas, narrativas de contos e de lendas populares, os quais assumiram um papel de organização do tempo que se apresenta em duas instâncias: a local, de Minas Gerais e Goiás; e a nacional levando então essa especificidade para o mais amplo. Percebe-se então que há nessas obras uma mobilização da tradição para uma interseção entre passado imemorial e passado cronológico. Podemos considerar que as lendas e os contos populares são como histórias que existiram desde sempre, não sendo inventadas por ninguém, e que tratam de um passado muito distante no tempo, um passado imemorial, e que seu conhecimento só se tornou possível devido à oralidade, à memória e à tradição que o preservaram como histórias relativas à identidade de certo grupo. Desta maneira, os relatos das lendas e contos populares estão em uma dimensão própria, a que, por um lado, não trata de relatos que são comprovadamente reais e, por outro, não trata de relatos inventados e falsos, e é essa dimensão própria que garantirá que a sua credibilidade não seja posta em dúvida, mesmo na ausência de comprovações. Essas lendas ao trazerem a luz um passado que estava envolto as trevas e oferecerem uma explicação, mesmo que temporária, para esse passado desconhecido acaba, por sua vez, assumindo a função da história. 3 E, no caso das obras de Guimarães, percebe-se que na ausência de dados que possibilite a comprovação de fatos históricos, as lendas e contos populares se tornam uma narrativa que possibilita a explicação do passado e conseqüentemente, produz um conhecimento histórico, fazendo parte da cultura histórica do oitocentos. E a literatura, através dos romances e mais especificamente dos romances históricos, foi o campo que mais tratou dessas lendas, que viriam explicar as origens de determinadas comunidades, costumes ou mesmo trazer relatos de fatos curiosos relacionados a eventos históricos

importantes. Em um trabalho já consagrado, Edgar De Decca (1997, p.205), assinala o papel de José de Alencar, que propôs o romance como o gênero da modernidade 1 mais eficaz para descobrir, fazer e escrever a História. Assim essas narrativas literárias, por meio das lendas e contos populares, contribuíram para a formação da cultura histórica do século XIX, e com a credibilidade dessas histórias populares garantida pela dimensão própria que as constituíam, elas puderam preencher as lacunas deixadas pela falta de dados oficiais durante boa parte do século XIX. Vemos que nessas obras literárias de Guimarães, por meio da narrativa, que utiliza elementos da oralidade, da memória e da tradição, e que representa lendas e contos populares, o passado imemorial é mobilizado em prol da construção do sentido para uma coletividade, agregando-lhe também identidade. Assim, podemos afirmar que essas obras organizaram o tempo histórico e delimitaram o espaço em um momento de consolidação nação brasileira, no qual as localidades estavam se formando. Essas obras literárias de Bernardo Guimarães também fazem parte do que é entendido como romances de fundação. E é importante ressaltar que o que nos interessa aqui é compreender o romance de fundação de um contexto bem específico: a segunda metade do século XIX. 4 Esses romances são obras literárias que contribuíram de alguma forma para a disputa de projetos políticos para a criação da nacionalidade brasileira. Elas, na maioria das vezes, trouxeram narrativas sobre mitos de origem, com personagens que eram considerados a mais legítima expressão da identidade nacional, ou com personagens que representavam exatamente o que não deveria ser o brasileiro; essas obras trouxeram ainda descrições de elementos originais da fauna e flora brasileira; e também instituíram símbolos e heróis que representariam a identidade nacional, buscando sempre situá-los na origem da nação. Podemos dizer que são textos marcados por uma disputa, seja por um passado, por uma origem, seja por heróis, representantes e símbolos que tragam alguma marca de nacionalidade. E, entre as obras de Bernardo Guimarães que organizaram o tempo histórico, demarcaram espacialidades, deram sentido para certa coletividade, nota-se que também 1 Gênero da modernidade significa aqui, como o gênero literário que se desenvolveu na modernidade, período entendido, grosso modo, como do século XVIII em diante.

podem ser lidas como narrativas de fundação, e a que nos interessa aqui é a novela A cabeça do Tiradentes, publicada em um livro com mais dois romances, pela Garnier em 1872. Nessa obra, o autor mineiro trata de um dos símbolos da Inconfidência Mineira, Tiradentes, representando-o como mártir, promovendo vínculos entre ele e a cidade de Ouro Preto, e indicando também uma relação identitária entre aquele herói e as pessoas que ali viviam, e ainda com as que habitavam os outros lugares do país. Eis, um breve resumo da obra. Escrita em maio de 1867, em Ouro Preto, essa obra é caracterizada como tradição mineira, cuja datação consta do século XVIII. Ao iniciar a narrativa, Guimarães comenta sobre o clima daquela noite, e diz se lembrar da história de uma caveira dos finais do século 18, que se passou em Vila Rica. Em seguida, ele começa descrever como era Vila Rica naquele período, e que na praça da cidade havia uma cabeça pendurada que serviria tanto como símbolo de poder do Governo, quanto como de exemplo para o povo. A cabeça era de Tiradentes. E numa noite tomada pela neblina, a cabeça foi misteriosamente roubada e o guarda que estava de vigia naquele momento disse que o autor do roubo foi um fantasma, de tão rápido e sorrateiro que foi o roubo. 5 Após essa narrativa mais descritiva da situação de Vila Rica no século 18 e do roubo da Cabeça do Tiradentes, Bernardo Guimarães começa a descrever a rua das cabeças e explicar a origem desse nome. Em seguida, comenta que nessa rua, havia uma casa arruinada, onde morava um velho muito misterioso e que não falava com ninguém. Despertadas pela curiosidade, algumas pessoas, espiando-o, viram que guardava um crânio com muita devoção. Os moradores achando que o velho era um feiticeiro o temeram por muito tempo. E, somente anos após a sua morte, é que alguém que sabia do segredo do velho misterioso, contou que o velho era o roubador da cabeça do Tiradentes. Guimarães termina a narrativa dizendo que o paradeiro da cabeça de Tiradentes continua sendo um mistério e que os fatos que ele acabou de narrar não foram inventados por ele, sendo fatos tradicionais. Para facilitar o entendimento dessa obra vamos abordar a sua narrativa por meio de dois aspectos essenciais: o formal e o relacionado aos conteúdos. O aspecto formal está diretamente ligado ao texto e suas características estruturais. E o aspecto

relacionado aos conteúdos tratados na obra discutirá quais foram os elementos mobilizados construir a narrativa. Essa obra faz parte, junto com mais dois romances, de um livro chamado Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais, o que já nos leva a perceber que não se trata de uma obra puramente ficcional e a compreendê-la como uma história ou tradição dessa província. O texto é dividido em uma parte inicial e mais quatro pequenos capítulos. Nessa primeira parte, Guimarães parece tentar levar e acomodar seu leitor ao ambiente de contação de histórias, e vai dialogando com seu leitor como se estivessem mesmo à beira do fogão de lenha, como na seguinte passagem, por exemplo, Quereis, minhas senhoras, que vos conte uma história para disfarçar o enfado destas longas e frigidíssimas noites de maio? (1976, p. 03). E nesse tom, ele continua até que esse diálogo o leva ao inicio da narrativa sobre a cabeça do Tiradentes, descrito na seguinte passagem. E pois vou contar-vos a história de uma caveira memorável. É uma simples tradição nacional, ainda bem recente, e da nossa própria terra. Essa história eu a poderia intitular: História de uma Cabeça Histórica (1976, p. 04) 6 O restante do texto é estruturado em quatro pequenos capítulos que apesar de não terem títulos, estão organizados pelo assunto que irão tratar: I. contexto que levou à Inconfidência Mineira; II. Descreve Vila Rica e a praça central, onde a cabeça ficava exposta; III. Narra o roubo dessa cabeça; IV descreve a rua das cabeças, a origem desse nome; e trata do suposto ladrão da cabeça do Tiradentes. E, certamente, essa divisão serviria para organizar a leitura e também facilitar a compreensão do leitor. Outro ponto importante, que está relacionado ao aspecto formal da obra, está no quarto e último capítulo, no trecho que Guimarães encerra a narrativa, dizendo que: Os fatos, que acabo de narrar, posto que pouco conhecidos, são tradicionais. Perguntem aos velhos, e mesmo a alguns moços mais curiosos, das coisas antigas da nossa terra, e se convencerão de que esta história não é de minha lavra. (1976, p. 12) Assim, temos que a maneira como ele inicia e finaliza a narrativa dessa história sobre a cabeça do Tiradentes, parece fazer parte de uma estratégia para conservar a

característica das lendas e contos tradicionais, que devem ser assegurados somente pela memória e transmitidos oralmente, pois o autor estrutura o texto da forma como essas histórias tradicionais eram contadas. Dessa forma, o modo como ele conduziu a narrativa também parece condizer com o apelido de contador de causos que Guimarães recebeu de seus críticos contemporâneos. E, para entender como a narrativa d A cabeça do Tiradentes foi formada abordando desta vez seus conteúdos, vamos utilizar os estudos do lingüista russo Mikhail Bakhtin a respeito do cronotopo como unidade de sentido (de tempo e de espaço). O Cronotopo pode ser compreendido como a interligação fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em literatura, (..) é uma categoria conteudístico-formal. E, a assimilação do cronotopo real e histórico na literatura fluiu complexa e intermitentemente: assimilaram-se alguns aspectos determinados do cronotopo acessíveis em dadas condições históricas, elaboraram-se apenas formas determinadas de reflexão do cronotopo real (BAKHTIN, 1998, p. 212). Nesse sentido, tem-se na obra literária em questão a articulação de tempo e espaço representada pela cabeça do Tiradentes, roubada e enterrada, que é um elemento que diz respeito à tradição de um lugar. Tal fato, em uma obra de fundação como esta, deve ser lido como um cronotopo, pois esse elemento mobiliza tempo e espaço específicos, contribuindo na composição de sentido da obra. 7 Ao mobilizar a história misteriosa da cabeça de Tiradentes, o autor traz à tona na narrativa um tempo e um espaço específico, caracterizado por um passado de opressão, vivido em Vila Rica, como Guimarães mesmo narra: E nessa época de riqueza e opulência, de servilismo e degradação social, no meio da praça principal desta cidade se via uma cabeça humana dessecada, cravada sobre um alto poste. P.7. É como se a cabeça mobilizasse todo o passado de opressão do Governo e da revolta do século XVIII, vivido não só em Vila Rica, mas também em outras localidades da Colônia portuguesa. E a cabeça do Tiradentes ao atuar como cronotopo nessa obra literária, mobiliza esse tempo e espaço que ela representa, e consegue estabelecer uma relação entre a Inconfidência Mineira e Tiradentes com os leitores, criando vínculos identitários entre esses, tanto na esfera local (Ouro Preto) quanto em uma mais abrangente como o Brasil.

Juntamente a isso, a narrativa é cercada de muito mistério e marcada pela adoração direcionada a cabeça e pelo seu sumiço, o que acaba despertando nos leitores uma curiosidade em relação a essa história e dando à própria cabeça um status de sagrado, e ao aumentar toda a mistificação que há em torno de Tiradentes, consegue envolver os leitores ainda mais. Diante do que foi dito até agora se pode notar que o apelido de contador de causos de Guimarães contribuiu com seu projeto político para a literatura nacional. A obra tratada aqui faz parte desse projeto de se voltar os olhos para o interior do Brasil para ver ali o brasileiro. E, ao tratar, nesta obra, de fatos ligados a um importante evento histórico, ocorrido em Minas Gerais, e que refletiu em todo o território, por meio de uma tradição que já muito conhecida na região de Vila Rica, e elaborar cuidadosamente nessa obra literária os aspectos formais e o cronotopo, Guimarães contribuiu com a criação de vínculos identitários entre os leitores, e organizou o tempo imemorial, e essa obra fazendo parte da cultura histórica do oitocentos, elaborou uma memória e uma história tanto em uma esfera local quanto nacional. 8 FONTE GUIMARÃES, Bernardo. A cabeça do Tiradentes. In: História e Tradições da Província de Minas-Geraes. Rio de Janeiro, Brasília: Civilização Brasileira, INL, 1976. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das letras, 2008. AUGUSTI, Valéria. Os deveres do romance para com a Nação. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALI: TESSITURAS, INTERAÇÕES, CONVERGÊNCIAS, 11, 2008, São Paulo. BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética (A teoria do Romance). São Paulo: Editora UNESP, 1998. COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio; Niterói: UFF, 1986.

DE DECCA, Edgar S. O que é romance histórico? Ou, devolvo a bola para você, Hayden White. In: Gêneros de fronteira cruzamento entre o histórico e o literário. São Paulo: Xamã, 1997. GOMES, Ednaldo Cândido Moreira. Sutilezas e mordacidades da poética de Bernardo Guimarães. Belo Horizonte: PUC-BH, 2007. Dissertação (Mestrado em Letras) Universidade Pontifícia Católica, Belo Horizonte, 2006. GUIMARÃES, Manoel Salgado. Entre as luzes e o romantismo: as tensões da escrita da história no Brasil oitocentista. In. Estudos sobre a escrita da História. Rio de Janeiro: 7 letras, 2006. MARCUSCHI, Luiz Antonio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. Disponível em <www.proead.unit.br/.../generos_textuias_definicoes_funcionalidade.rtf> Acesso em: 7 jun. 2010 ROMERO, Silvio. História da literatura brasileira. 7 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980. 9