José Luis Oreiro. Crescimento e Distribuição de Renda

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA DEPARTAMENTO DE ECONOMIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO PROFESSOR JOSÉ LUIS OREIRO

Transcrição:

José Luis Oreiro Crescimento e Distribuição de Renda Rio de Janeiro, 2018

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO DO AUTOR PREFÁCIO XI XIII INTRODUÇÃO: A ESCOLA PÓS-KEYNESIANA: UMA APRESENTAÇÃO 1 Parte I: Teorias Pré-Keynesianas de Crescimento e Distribuição de Renda 15 Capítulo 1: A Teoria Clássica do Crescimento e da Distribuição de Renda 17 Capítulo 2: A Teoria Neoclássica do Crescimento e da Distribuição de Renda 45 Parte II: Fundamentos da Teoria Pós-Keynesiana de Crescimento e Distribuição de Renda: Os Modelos de Primeira Geração 73 Capítulo 3: A Primeira Geração dos Modelos Pós-Keynesianos de Crescimento e Distribuição de Renda: Harrod Domar, Kaldor Pasinetti e Robinson 75 Capítulo 4: Crescimento e Progresso Técnico Induzido: o Modelo de Crescimento Endógeno de Kaldor 111 Capítulo 5: O Dilema Harrod Domar e as Controvérsias sobre a Equação de Cambridge 133 Parte III: Utilização da Capacidade Produtiva, Distribuição de Renda e Fragilidade Financeira: Os Modelos Neokaleckianos 159 Capítulo 6: Demanda Efetiva, Salário Real e Crescimento Econômico: o modelo Neokaleckiano Canônico 161 Capítulo 7: Moeda, Taxa de Juros e Fragilidade Financeira no Neokaleckiano Canônico 187 Capítulo 8: Demanda, Distribuição de Renda e Crescimento nos Modelos neokaleckianos de Segunda Geração 219 Parte IV: Conflito Distributivo, Inflação e Desenvolvimento Desigual 239 Capítulo 9: Inflação, Conflito Distributivo e Política Monetária 241 Capítulo 10: Crescimento com Restrição de Balanço de Pagamentos, Termos de Troca e Desenvolvimento Desigual 273 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 293 ÍNDICE 301 SUMÁRIO IX

APRESENTAÇÃO DO AUTOR Conheço o Professor José Luis Oreiro há quase trinta anos, e como sacerdote e amigo, tenho acompanhado todo o seu frutífero percurso intelectual e acadêmico. Aliás, posso dizer que a leitura de seus artigos e publicações é também fonte de inspiração para meus 25 anos de trabalho ao serviço da Segunda Seção da Secretaria de Estado da Santa Sé. Posso dizer que o constante empenho do Professor Oreiro na busca de um marco macroeconômico que permita que todos, especialmente os mais pobres, tenham acesso a um trabalho digno, bem remunerado e produtivo, responde às preocupações mais profundas dos três Papas aos que tive o privilégio de servir: São João Paulo II, Bento XVI e Francisco. Essas preocupações podem ser resumidas pelas palavras que o Papa Francisco pronunciou no dia 25 de setembro de 2015 na Assembleia Geral das Nações Unidas: Para que estes homens e mulheres concretos possam subtrair-se à pobreza extrema, é preciso permitir-lhes que sejam atores dignos do seu próprio destino. O desenvolvimento humano integral e o pleno exercício da dignidade humana não podem ser impostos; devem ser construídos e realizados por cada um, por cada família, em comunhão com os outros seres humanos e em um relacionamento correto com todos os ambientes em que se desenvolve a sociabilidade humana os governantes devem fazer o máximo possível por que todos possam dispor da base mínima material e espiritual para tornar efetiva a sua dignidade e para formar e manter uma família, que é a célula primária de qualquer desenvolvimento social. A nível material, este mínimo absoluto tem três nomes: casa, trabalho e terra. E, a nível espiritual, um nome: liberdade de espírito, que inclui a liberdade religiosa, o direito à educação e todos os outros direitos civis. Por todas estas razões, a medida e o indicador mais simples e adequado do cumprimento da nova agenda para o desenvolvimento será o acesso efetivo, prático e imediato, para todos, aos bens materiais e espirituais indispensáveis: APRESENTAÇÃO DO AUTOR XI

habitação própria, trabalho digno e devidamente remunerado, alimentação adequada e água potável; liberdade religiosa e, mais em geral, liberdade de espírito e educação 1 O Professor Oreiro pediu a mim uma bênção especial para o presente livro. Somente posso enviar minha humilde benção de sacerdote, reforçada, porém, pela bênção que o Papa Francisco deu a mim para todas as pessoas que participassem do meu trabalho pastoral no Brasil, quando me aposentei na Secretaria de Estado da Santa Sé, no passado 7 de outubro 2017. Acredito que o presente livro bem merece essa bênção porque constitui um exemplo da santificação do trabalho cristão, desenvolvendo a inteligência que todos recebemos do Criador e colocando-a a serviço de toda a sociedade, e é também uma resposta eficaz e operativa aos estímulos da pregação social do Papa Francisco. Monsenhor Osvaldo Neves de Almeida (Sacerdote) Oficial da Segunda Seção da Secretaria de Estado da Santa Sé (1992-2017) Consultor da Segunda Seção da Secretaria de Estado (2017 ) Rio de Janeiro, 1 de março de 2018 1 Disponível em http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/september/documents/ papa-francesco_20150925_onu-visita.html XII Macrodinâmica Pós-Keynesiana

P R E FÁ C I O John Maynard Keynes sabia, quando lançou a Teoria Geral sobre o Emprego, Juros e Moeda, nos primeiros meses de 1936, que estava trazendo a público uma obra revolucionária. Na verdade, ele mesmo o disse, com todas as letras, a George Bernard Shaw, pouco antes do lançamento. Sem dúvidas, o livro foi recebido com certa perplexidade em alguns círculos, hostilidade em outros, principalmente aqueles mais investidos da ortodoxia da época (não muito diversa da ortodoxia de hoje), e simpatia por pesquisadores mais jovens, em busca de uma teoria que não sugerisse que depressões são ocorrências normais de economias capitalistas, e que nada deveria ser feito para não perturbar os delicados equilíbrios de uma economia de mercado e a ação de seus mecanismos naturais de autoajustamento. A Teoria Geral, assim como qualquer obra, é, em parte um resultado de seu tempo. Mas grandes obras não são apenas o reflexo de sua época; são também o resultado de insights e de modos pessoais de reflexão que permitem a alguns transcendê-la e ler nos eventos históricos vividos ou conhecidos a ação de forças mais profundas. Essa característica permite a esse (de fato) pequeno grupo de livros sobreviver a seu tempo, e nos ensinar mais do que idiossincrasias de um momento histórico, e sim sobre o que move esses processos sociais. Finalmente, essas obras refletem também, em parte, preferências e experiências pessoais que privilegiam certos ângulos de aproximação a um tema, sem se deparar com igual eco em outros autores que tratam de temas semelhantes. Este prefácio certamente não é lugar para aprofundar essas questões e, provavelmente, nem seria o autor destas linhas capaz de fazê-lo apropriadamente. Essa tarefa de descobrir como as grandes obras de economia se destacam e elucidam, ao mesmo tempo, processos sociais fundamentais das particularidades de autor e época que necessariamente as marcam, é melhor alocada a historiadores do pensamento econômico. Não é preciso insistir no fato de que esse é um trabalho especulativo, posto que todos esses elementos são normalmente apresentados ao mesmo tempo pelos autores desses livros, muitas vezes de forma não-intencional. Já outros autores parecem tentados a contornar esse risco produzindo obras se- PREFÁCIO XIII

mienciclopédicas, na inútil tentativa de cobrir todos os aspectos de um processo e com isso evitar a crítica de serem excessivamente moldados por em evento ou momento histórico. No caso de Keynes parece razoavelmente claro que a mensagem essencial transmitida pela Teoria Geral pode ser resumida na expressão princípio da demanda efetiva. Segundo esse princípio, quando o público tem razões para esperar um futuro mais sombrio e incerto (ambas as razões diminuiriam o que Keynes chamou na Teoria Geral de eficiência marginal do capital, a primeira deprimindo as expectativas de investimentos em ativos de capital real, a segunda deprimindo o estado de confiança de investidores nas suas próprias expectativas, aconselhando a espera por momentos de maior clareza do futuro), ele tem a sua disposição, em economias monetárias modernas, uma oferta de ativos alternativos em que ambos os efeitos são minimizados: títulos de dívida pública (inclusive a moeda) são dotados de retornos que podem ser conhecidos, em parte importante, de antemão, e são extremamente líquidos (isto é, minimizam a possibilidade de que erros de expectativas possam levar a destruição da riqueza do investidor). Com isso, a renda gerada no processo de produção e distribuída aos fatores participantes do processo pode não retornar ao mercado sob a forma de demanda pelos produtos produzidos, particularmente os bens de capital. 2 O princípio da demanda efetiva se desdobra em uma característica fundamental da operação de economias monetárias modernas, que é o efeito da redução de demanda agregada sobre o nível de atividades dessa economia. Ao retirar-se demanda do mercado agregado, quando os agentes econômicos decidem-se pela precaução e acumulação de ativos líquidos, a eficiência marginal do capital cai por baixo da taxa de juros (que Keynes explicou ser a eficiência marginal dessas outras classes de ativos). Se a queda não for pronunciada, ela pode ser compensada pela política monetária, provocando a queda da taxa de juros sobre ativos líquidos até o nível da eficiência marginal do capital. Se o colapso das expectativas de retorno sobre o investimento real e do estado de confiança ultrapassar certo nível, a manipulação 2 Esse conceito é discutido em maior detalhe em F.J. Cardim de Carvalho, Liquidity Preference and Monetary Economies, London: Routledge, 2015. XIV Macrodinâmica Pós-Keynesiana

de política monetária pode não ser suficiente. Só aí outras políticas de reativação de demanda agregada podem ter de ser utilizadas. 3 Mas a Teoria Geral foi produto também, como sugerido, de sua época e das idiossincrasias de seu autor. A época foi marcada, especialmente para um autor tão anglo-saxão como Keynes, pela infindável depressão que a Grã Bretanha vivia desde o retorno ao padrão-ouro, em meados dos anos 1920. O risco mais ameaçador nesse período é que não se conseguisse recuperar um nível de demanda agregada que permitisse a economias monetárias modernas, como a do país, voltarem a viver um período sustentado de prosperidade. Em outros textos escritos na mesma época, Keynes mostrava não esperar grandes progressos de imediato. Sua expectativa parecia ser a de uma adaptação gradual da população às possibilidades produtivas que as economias modernas já ofereciam. Keynes claramente esperava que essas economias pudessem exibir uma necessidade crescente de muletas, como o gasto público para manter a demanda suficiente para elevar a economia a um ponto no qual a prosperidade seria satisfatória para o público. Décadas depois, passada a época de ouro do capitalismo do pós-guerra, na qual, ao contrário do esperado por Keynes, a rápida expansão de economias empresariais no ocidente e no oriente foi inegável, um de seus mais importantes intérpretes, Hyman Minsky, afirmou que a instabilidade do capitalismo era a pressão altista e não a baixista sobre ativos reais e financeiros. Entre os resultados das idiossincrasias de Keynes, por outro lado, estava o privilégio conferido a desenvolvimentos agregados, dando pouca atenção a problemas como a operação de monopólios e suas consequências sobre a determinação do nível de atividades, distribuição de renda, etc. Essa pouca (ou nenhuma) atenção em parte 3 Mesmo uma leitura não muito detalhada da Teoria Geral é suficiente para mostrar que a crítica neo-ricardiana, feita originalmente por Pierangelo Garegnani, e exaustivamente repetida por seguidores como John Eatwell, de que Keynes abriu as portas para a reação neoclássica ao admitir que uma relação inversa entre o nível de investimento e a taxa de juros é totalmente descabida. A teoria é diferente. A relação proposta pela teoria neoclássica refere-se a efeitos sobre o quociente trabalho/capital na função de produção, em que uma queda da taxa de juros baratearia o capital em relação ao trabalho e induziria a substituição de trabalho por capital (em outras palavras, aumentaria a intensidade de capital porque serviços de capital seriam utilizados em substituição a serviços do trabalho). A teoria proposta por Keynes nada tem a ver com funções de produção. A taxa de juros afeta o nível de investimento porque ela é o elemento através do qual se calcula, dado o estado de confiança, o valor presente dos retornos de capital a serem comparados com os retornos esperados da aplicação em ativos financeiros. Mais importante do que narrativa teórica de fundo, é o fato de que as duas teorias produzem predições exatamente opostas sobre o efeito da variação da taxa de juros sobre o emprego. Keynes propôs que uma queda da taxa de juros levaria a um aumento de investimentos que, por sua vez, aumentaria o consumo (através do multiplicador). O efeito da queda da taxa de juros sobre o emprego, portanto, é positivo, e não negativo como propõe universo teórico neo-ricardiano, obsessivamente preso à necessidade de manter viva a controvérsia de Cambridge. PREFÁCIO XV

explicava-se pelo desejo de Keynes de mostrar que o princípio da demanda efetiva independia de caraterísticas microeconômicas ou de imperfeições de mercado, conforme demonstrado por Paul Davidson. Mas não há dúvida de que o crescimento econômico não lhe parecia relevante em uma época de prolongada estagnação e na qual a distribuição de renda era um tema que lhe aguçava mais a curiosidade política e social do que estritamente econômica. Crescimento econômico foi um termo introduzido na teoria keynesiana, de modo compatível com seus pilares, pelo célebre ensaio de 1939 de Roy Harrod. A questão levantada por Harrod era simples: ele chamava a atenção para o fato de que Keynes, ao preconizar que a solução para a deficiência de investimento agregado era impulsionar investimentos (públicos ou privados), desconsiderou que a solução do problema em um período agravava as condições da solução no período seguinte. No segundo período, haveria ainda mais capital para ocupar e, portanto, o investimento teria de ser maior do que no período anterior, o que tornaria o problema ainda mais sério no terceiro período, e assim sucessivamente. A solução para o problema da demanda efetiva não era encontrar o nível apropriado de investimento, mas sim a taxa de crescimento do investimento que manteria oferta e demanda agregadas em linha período após período. A resposta de Harrod criou seus próprios conundrums, e daí vieram as soluções de Kaldor, Solow, entre outros, e criou-se a moderna teoria do crescimento econômico que, em combinação com a literatura sobre aspectos da acumulação de capital em firmas oligopólicas, levou a estudos como os de Steindl, Sylos-Labini, Bain e autores contemporâneos. Em sua contribuição ao debate em torno de Harrod, Kaldor trouxe explicitamente a discussão da relação entre crescimento e distribuição de renda. Ao fundir-se essa literatura com a desenvolvida em organização industrial chegou-se a macrodinâmica, campo em que a Teoria Geral contribui relativamente pouco. São extensões do princípio da demanda efetiva para áreas ignoradas por Keynes na produção da Teoria Geral e que tem sido objeto de intenso escrutínio em décadas recentes (em parte, também, produto de sua época). A obra que aqui nos propõe o Professor Oreiro compila, critica, estende e oferece inovações a esse campo da teoria keynesiana, a macrodinâmica keynesiana. Conhecedor em profundidade da literatura relevante (que inclui muitos de seus artigos já publicados), o Professor Oreiro detém condições quase únicas para produzir um trabalho dessa natureza. XVI Macrodinâmica Pós-Keynesiana

Não é uma obra definitiva, naturalmente, porque o campo está vivo e novas contribuições se tornam públicas quase diariamente. É um campo vivo também porque o grau de interação entre os participantes do debate é intenso e permanente, levando em consideração a extensa produção do próprio Oreiro. No seu aspecto de compilação e introdução ao tema a alunos de economia mais avançados, esta é uma obra que terá constantemente de ser atualizada de modo a oferecer aos leitores um guia sempre apropriado para a avaliação do tema. Nesse momento, esta é uma obra fundamental para que os seus leitores mais interessados possam se mover com liberdade e segurança em um campo que, por ser fascinante, é também complexo, e não se presta ao diletantismo rápido e superficial de alguns. Eu não tenho dúvidas de que estaremos falando deste livro (provavelmente em suas edições sucessivas) quando o tema for macrodinâmica keynesiana. Fernando J. Cardim de Carvalho Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Patrono da Associação Keynesiana Brasileira. Cascais, Portugal, Marco de 2018 PREFÁCIO XVII

INTRODUÇÃO A ESCOLA PÓS-KEYNESIANA: UMA APRESENTAÇÃO A escola Pós-Keynesiana historicamente se desenvolveu em duas vertentes que tratavam de questões teóricas distintas, embora complementares 1. A primeira vertente dessa escola se desenvolveu em torno da temática do crescimento e distribuição de renda; tendo sua origem nas contribuições seminais de Harrod (1939) e Domar (1946), uma tentativa de extensão para o longo prazo dos resultados obtidos por John Maynard Keynes em sua Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. Como é bem sabido, Keynes anuncia o princípio da demanda efetiva segundo o qual a renda seria a variável de ajuste entre as decisões de poupança e investimento (Amadeo, 1989) em um contexto em que o estoque dos diferentes tipos de bens de capital é dado (Keynes, 1936, p.37). Coube a Harrod e a Domar demonstrarem a possibilidade de ocorrência de uma situação semelhante ao equilíbrio com desemprego de Keynes em um contexto no qual o estoque de capital crescesse de forma contínua ao longo do tempo. O resultado fundamental do modelo Harrod Domar é que a obtenção de uma trajetória de crescimento estável com pleno emprego da força de trabalho é possível, mas altamente improvável. Dessa forma, as economias capitalistas deverão, via de regra, apresentar um crescimento irregular alternando períodos de crescimento acelerado com períodos de queda acentuada do nível de atividade econômica e desemprego elevado. A incompatibilidade desse resultado com a experiência histórica das economias capitalistas desenvolvidas no período 1950-1973 levou autores pós-keynesianos 1 Sobre a complementariedade teórico-analítica das duas vertentes do pós-keynesianismo aqui expostas ver Crotty (1980) e Kregel (1985). INTRODUÇÃO 1

como, por exemplo, Nickolas Kaldor e Luigi Pasinetti, a desenvolver modelos nos quais a trajetória de crescimento de longo prazo fosse estável e caracterizada pelo pleno emprego da força de trabalho. Para tanto foi necessário o desenvolvimento de uma nova teoria da distribuição funcional da renda, na qual a participação dos salários e dos lucros na renda passa a ser a variável de ajuste entre as decisões de poupança e de investimento. O foco dessa nova teoria da distribuição de renda foi estabelecer um segundo mecanismo pelo qual o investimento pode determinar a poupança, ao invés de ser determinado pela mesma. Com efeito, Keynes havia mostrado na Teoria Geral que um aumento exógeno do investimento iria gerar um aumento equivalente da poupança através do efeito do multiplicador. Kaldor e Pasinetti, por sua vez, mostraram que uma variação do investimento irá gerar sempre em uma economia fechada e sem governo uma variação equivalente na poupança devido aos efeitos daquela variação sobre a distribuição da renda entre salários e lucros. A extensão do paradoxo da parcimônia 2 para o longo prazo foi feita por Joan Robinson (1962). No modelo de crescimento de Robinson um aumento da propensão a poupar irá resultar em uma redução da participação dos lucros na renda e, dado o grau de utilização da capacidade produtiva, em uma redução da taxa de lucro. Supondo que o investimento dependesse diretamente da taxa de lucro, é presumido que, como resultado do aumento da propensão a poupar, haverá uma redução da taxa de investimento. Dessa forma temos que, no longo prazo, um aumento da propensão a poupar será seguido por uma redução da taxa de investimento e da própria taxa de poupança. A segunda vertente foi desenvolvida na década de 1970 como uma reação crítica a assim chamada síntese keynesiano-neoclássica, a qual se fundamentava na tese de que as economias de mercado poderiam se afastar da posição de equilíbrio com pleno emprego devido à existência de fatores institucionais que impediam ou limi- 2 O assim chamado paradoxo da parcimônia foi estabelecido por Keynes na Teoria Geral. Esse paradoxo está relacionado com os efeitos macroeconômicos de um aumento da fração da renda que os indivíduos desejam poupar. A ideia do paradoxo é a seguinte. Um indivíduo tomado isoladamente pode aumentar a sua poupança se decidir aumentar a fração poupada da sua renda. Isso porque a renda do indivíduo é independente da sua decisão de gasto. Contudo, a nível macroeconômico a renda é determinada pelas decisões de gasto de todos os indivíduos. Sendo assim, se todos os indivíduos resolverem reduzir os seus gastos de consumo na esperança de, com isso, aumentar a sua poupança, o efeito final será uma redução de tal magnitude na renda dos indivíduos que a poupança continuará exatamente igual ao que prevalecia antes da redução dos gastos de consumo. 2 Macrodinâmica Pós-Keynesiana

tavam a flexibilidade de preços e/ou salários nominais 3. Nesse contexto, a ocorrência de choques adversos de demanda agregada (choques sobre a curva IS ou sobre a curva LM) levaria as empresas a responder aos mesmos através de variações nas quantidades produzidas, não nos preços, levando a economia a se afastar da posição de equilíbrio com pleno emprego. Esse afastamento seria apenas temporário, pois, no longo prazo, preços e salários seriam totalmente flexíveis. Dessa forma, a existência de desemprego e subutilização da capacidade instalada produziria uma deflação generalizada a qual, por intermédio do efeito Pigou-Patinkin 4, induziria um aumento do nível de demanda agregada e, consequentemente, a restauração do equilíbrio com pleno emprego. Um corolário implícito da tese supracitada é que a macroeconomia keynesiana fica restrita ao estudo das flutuações de curto prazo do nível de atividade econômica. Para os teóricos da síntese neoclássica, a macroeconomia Keynesiana nada tinha a dizer sobre as questões de longo prazo como, por exemplo, a acumulação de capital e o crescimento econômico. Tais questões deveriam ser tratadas pelo instrumental analítico da velha macroeconomia (neo) clássica. Nas palavras de Kevin Hoover: A ideia por trás da Síntese Neoclássica era que a análise Keynesiana explica o desemprego e sugere medidas para eliminá-lo. Uma vez alcançado o pleno emprego ( ) a análise clássica de alocação de recursos, distribuição de renda 3 A temática dessa vertente não era o crescimento e a distribuição de renda como no caso da primeira vertente, mas sim a análise do processo pelo qual as decisões de investimento, poupança e financiamento são tomadas no contexto de uma economia monetária de produção em que: (i) a produção demanda tempo; (ii) o futuro é incerto; e (iii) o estoque de capital não é maleável (Crotty, 1990, p.21). 4 O efeito Pigou-Patinkin refere-se ao impacto positivo que uma redução do nível geral de preços tem sobre a demanda agregada e, por intermédio dela, sobre o nível de renda e de emprego. A análise dos mecanismos pelos quais uma redução do nível geral de preços gera um aumento da demanda agregada e do nível de renda e emprego foi feita por Pigou (1943) e Patinkin (1948), razão pela qual o efeito em questão é denominado de Pigou-Patinkin na literatura. De acordo com esses autores, uma redução do nível geral de preços devido a existência de um excesso generalizado de capacidade produtiva levaria a um aumento do valor real dos saldos monetários retidos pelas famílias, aumentando assim a sua riqueza financeira real. O aumento da riqueza, por sua vez, produziria um aumento dos gastos de consumo, aumentando assim a demanda agregada e o nível de produção e de emprego. Esse processo de redução de preços só poderá ser interrompido no momento em que a capacidade ociosa da economia for eliminada, restabelecendo-se assim o nível de pleno emprego no uso dos fatores de produção. Um ponto importante a ser ressaltado a respeito desse efeito é que ele opera mesmo em condições de armadilha da liquidez. Nesse contexto, o equilíbrio com desemprego, tido como o elemento fundamental da Revolução Keynesiana, seria o resultado da existência de preços rígidos no curto prazo. INTRODUÇÃO 3

e bem-estar, elementos que estão baseados na microeconomia, torna-se novamente relevante (apud Lima, 1992, p.29) [Tradução do autor]. Um pequeno, mas crescente, grupo de economistas Keynesianos (os quais ficaram conhecidos como pós-keynesianos ou keynesianos americanos em contraste com a primeira vertente da escola pós-keynesiana constituída quase que integralmente por economistas radicados na Universidade de Cambridge no Reino Unido) passou a criticar essa forma de tratamento das questões macroeconômicas no início da década de 1970. Segundo esses autores entre os quais destacam-se Paul Davidson (1978) e Hyman Minsky (1982, 1986) a síntese neoclássica tomava como ponto de partida uma leitura incorreta e/ou incompleta da Teoria Geral do Emprego do Juro e da Moeda de J. M. Keynes. A característica fundamental do pensamento Keynesiano não seria, segundo esses autores, a análise dos efeitos macroeconômicos da existência de rigidez de preços e/ou salários nominais. Este fenômeno, ainda que empiricamente relevante, não seria suficiente para definir a revolução no pensamento econômico que Keynes, em carta a Bernard Shaw 5, acreditava estar produzindo com a sua Teoria Geral 6. O aspecto fundamental do pensamento keynesiano estaria na análise dos efeitos da existência da incerteza não-probabilística sobre o comportamento e as decisões dos agentes econômicos, em particular, as decisões sobre a determinação do ritmo e da forma na qual a riqueza é acumulada. A existência de incerteza leva os agentes a adotar comportamentos defensivos como, por exemplo, a preferência pela liquidez. Como a moeda é o ativo que possui liquidez em mais alto grau, os agentes podem decidir mantê-la em seus portfólios como uma forma de se prevenir contra a ocorrência de eventos inesperados e desfavoráveis. Dessa forma, a moeda torna-se um substituto de outros ativos no portfólio dos tomadores de decisão. Sendo assim, um aumento da preferência pela liquidez irá induzir os indivíduos a substituir ativos menos líquidos por ativos mais líquidos, entre os quais a moeda. Nesse contexto, a moeda torna-se não-neutra tanto no curto como no longo prazo, pois ela pode afetar tanto o ritmo como a forma da acumulação de riqueza. 5 Nessa carta, Keynes diz que: Para que você possa entender meu estado de espírito contudo, você deve saber que eu acredito estar escrevendo um livro de teoria econômica que irá, em larga medida, revolucionar ( ) a forma pela qual o mundo pensa os problemas econômicos (CWJMK, Vol. XIII, p.492, tradução do autor). 6 A demonstração de que a interpretação da obra de Keynes feita pela síntese neoclássica elimina daquela qualquer elemento revolucionário ou de ruptura com relação ao pensamento neoclássico pode ser lida em Oreiro (1997a). 4 Macrodinâmica Pós-Keynesiana

No que se refere ao elo incerteza-moeda-acumulação de capital, Davidson afirma que: Em resumo, todas as discussões sobre problemas macroeconômicos envolvendo investimento, acumulação, crescimento econômico, emprego, produção e moeda devem necessariamente partir de uma análise do processo de tomada de decisões em condições de incerteza para que tais discussões tenham relevância do ponto de vista da formulação de política econômica. Afirmar que a moeda importa em um mundo de previsão perfeita é entrar em contradição lógica com as propriedades especiais da moeda como reserve de valor, devido a capacidade da mesma de permitir o adiamento da assunção de compromissos rígidos e que envolvam um volume expressivo de recursos. A moeda importa apenas em um mundo de incerteza (1978, p.16) [Tradução do autor]. Para pós-keynesianos Keynes teria desenvolvido ao longo da sua Teoria Geral e dos seus demais escritos acadêmicos uma nova visão de mundo 7 no sentido de Schumpeter, a qual seria uma ruptura radical com relação ao pensamento neoclássico prevalecente até então. Como se sabe, a visão de mundo é definida por Schumpeter como o ato cognitivo pré-analítico que define o conjunto de fenômenos que devem ser objeto de análise sistemática 8. Nesse contexto, a visão de mundo de Keynes estaria resumida no conceito de economia monetária de produção, o qual foi introduzido pela primeira vez pelo próprio Keynes em um artigo publicado em um periódico alemão em 1933. Nesse artigo, ele afirma que: Na minha opinião, a razão fundamental do porque o problema das crises permanece sem solução, ou porque a teoria que trata das mesmas é tão insatisfatória, deve ser buscada na ausência do que podemos chamar, na ausência de um termo melhor, de teoria monetária da produção ( ) A teoria que eu estou considerando deve lidar (.) com uma economia na qual a moeda desempenha papel próprio e afeta os motivos e as decisões dos agentes econômicos, sendo, em resumo, uma das forças atuantes na situação, de forma que o curso de eventos não pode ser previsto, tanto no longo período como no curto sem o conhecimento a respeito do compor- 7 Nas palavras de Schumpeter: ( ) quando nos posicionamos diante de qualquer problema, devemos inicialmente visualizar um conjunto definido de fenômenos coerentes como objeto de nossos esforços analíticos. Em outras palavras, o esforço analítico é necessariamente precedido por um ato cognitivo pré-analítico que fornece a matéria prima para nossos esforços analíticos (.) esse ato cognitivo pré-analítico é que que se pode chamar de visão (1954, p.41, tradução do autor). 8 Carvalho (1992) afirma que na Teoria Geral, Keynes não só apresentou explicitamente a sua visão de mundo como também avançou na direção de desenvolver um modelo formal de uma economia que opera segundo essa nova visão de mundo. INTRODUÇÃO 5

tamento da moeda entre o primeiro estado e o último. E é isso o que eu quero dizer quando falo de uma economia monetária (CWJMK, Vol. XIII, pp.408-409). Uma vez definida a visão de mundo tem início a análise científica propriamente dita. Esta, por sua vez, é realizada em dois estágios. No primeiro estágio, o teórico deve verbalizar ou conceitualizar a sua visão de mundo, colocando-a em algum esquema ou representação que permita a sua posterior manipulação (Schumpeter, 1954, p.42). No segundo estágio, deve-se proceder a construção de modelos analíticos, os quais nada mais são do que uma representação simplificada de uma economia que opera segundo os princípios teóricos que foram verbalizados no primeiro estágio. Em geral, esses modelos serão apresentados na forma de equações matemáticas, as quais permitem uma definição precisa das relações de causalidade implicadas pelos princípios teóricos sistematizados no estágio inicial. Somente após a definição dessas relações de causalidade é que a teoria poderá ser submetida a testes empíricos. Os resultados desses testes irão validar algumas dessas relações de causalidade e rejeitar outras. Aquelas relações que forem rejeitadas irão, por sua vez, promover uma revisão dos elementos constitutivos da visão de mundo original. Nas palavras de Schumpeter: O trabalho empírico e teórico, em um processo de interação continua na qual um testa o outro e coloca novas questões para o outro, irá eventualmente produzir modelos científicos, os quais são o produto conjunto da sua interação com os elementos sobreviventes da visão original, e sobre os quais padrões crescentemente mais rigorosos de consistência e aderência aos fatos serão aplicados (Ibid., p.42). PLANO DO LIVRO Este livro tem por objetivo fazer uma apresentação sistemática da escola pós- -keynesiana, tendo como foco a temática do crescimento e distribuição de renda. Os aspectos monetário e financeiro do pensamento pós-keynesiano serão tratados no livro apenas à medida que se relacionem com o tema central do crescimento e da distribuição. Isso significa que os detalhes institucionais da operação das economias monetárias modernas não serão tratados neste livro. Os interessados nesses assuntos 6 Macrodinâmica Pós-Keynesiana

poderão consultar o livro Economia Monetária e Financeira: Teoria e Política, escrito por alguns dos grandes nomes da escola pós-keynesiana no Brasil 9. A escolha da temática do crescimento e da distribuição de renda como eixo para a apresentação da escola pós-keynesiana se justifica com base em uma série de razões. Em primeiro lugar, os primeiros economistas denominados pós-keynesianos pertenciam à assim chamada Escola de Cambridge no Reino Unido, notabilizada pela extensão do princípio da demanda efetiva de J. M. Keynes para o longo prazo Marshalliano. No processo de extensão das ideias de Keynes para o longo prazo foi desenvolvida uma nova teoria da distribuição de renda, a qual se constituiu em uma alternativa a teoria neoclássica da distribuição, baseada no conceito de produtividade marginal dos fatores de produção e no suposto de concorrência perfeita em todos os mercados. Dessa forma, as temáticas do crescimento econômico e da distribuição de renda estão inexoravelmente associadas ao processo de surgimento e difusão do pensamento pós-keynesiano. Em segundo lugar, essa temática permite uma comparação simples e direta entre a escola pós-keynesiana e outras correntes de pensamento, como a própria escola neoclássica ou ainda com a economia política clássica. Essa comparação é importante para mostrar ao estudante de economia a existência de uma pluralidade de programas de pesquisa no âmbito da ciência econômica. Ao contrário do que é propagado por alguns economistas 10, o pensamento econômico não pode ser dividido em duas grandes vertentes, uma chamada ortodoxa e outra chamada heterodoxa 11. Existe uma enorme diversidade de programas de pesquisa dentro daquilo é convencionalmente definido pelo termo heterodoxia. A teoria clássica do crescimento e distribuição de renda, que é a base teórica tanto da escola Marxista como da escola neo-ricardiana, é substancialmente diferente da teoria pós-keynesiana do crescimento e da distribuição de renda, conforme o leitor poderá verificar ao longo deste livro. Mesmo no interior da escola pós-keynesiana existem divergências teóricas significativas entre a vertente Kaldoriana, que desenvolve modelos nos quais a economia opera com um grau de utilização da capacidade produtiva igual ao normal, e a vertente neokaleckiana que considera modelos em que a economia opera com capacidade excedente não planejada. 9 Carvalho et al. (2012). Economia Monetária e Financeira: teoria e política. Campus: Rio de Janeiro. 10 Lisboa e Pessoa (2016). 11 A esse respeito ver Oreiro e Gala (2016) INTRODUÇÃO 7

Em terceiro lugar, a integração entre as duas vertentes do pensamento pós-keynesiano apresentadas na seção anterior foi feita no contexto dos modelos neokaleckianos de crescimento e distribuição de renda. Temas como escolha de portfólio, não-neutralidade da moeda e fragilidade financeira foram integrados aos modelos formais de crescimento e distribuição de renda nos trabalhos seminais de Taylor e O Connell (1985), Foley (2003) e Hein e Stockhammer (2011). Por fim, mas não menos importante, o grandioso livro de Piketty (2014) mostrou que a chave para se interpretar a desigualdade econômica no capitalismo é a relação entre a taxa de crescimento econômico (g) e a taxa de lucro (R). Mais especificamente, Piketty argumenta que é imposta uma dinâmica de aumento da concentração de renda. Dada a importância que a temática da desigualdade na distribuição de renda assumiu nos últimos anos (Stiglitz, 2016), é possível assumir que o estudo da relação entre crescimento e distribuição de renda sob a ótica da escola pós-keynesiana é uma tarefa especialmente relevante. O livro está organizado em quatro partes: (a) Parte I Teorias Pré-Keynesianas de Crescimento e Distribuição de Renda; (b) Parte II Fundamentos da Teoria Pós-Keynesiana do Crescimento e da Distribuição de Renda: os Pioneiros da Escola de Cambridge; (c) Parte III Utilização da Capacidade Produtiva, Distribuição de Renda e Fragilidade Financeira: Os modelos Neokaleckianos e (d) Parte IV Conflito Distributivo, Inflação e Desenvolvimento Desigual. A primeira parte do livro, constituída por dois capítulos, tem por objetivo apresentar ao leitor as teorias pré-keynesianas de crescimento e distribuição de renda. Mais especificamente, essa parte do livro está dedicada a apresentação das teorias clássica e neoclássica do crescimento e distribuição de renda. A teoria clássica está baseada na assim chamada abordagem excedentária para o problema da distribuição de renda, originada a partir do Tableau Economiqué de François Quesnay e desenvolvida por Adam Smith e David Ricardo, os dois maiores expoentes da economia política clássica. Já a teoria neoclássica da distribuição está baseada no conceito de produtividade marginal dos fatores de produção e concorrência perfeita em todos os mercados, estabelecendo assim a existência de uma relação inversa entre o preço de cada fator de produção e a quantidade demandada do mesmo. Essa relação, ausente no quadro teórico da economia política clássica, é condição necessária, embora não suficiente, para o resultado de pleno emprego dos fatores de produção no equilíbrio de longo prazo do sistema. Esse resultado tem como implicação lógica a ideia de que o cresci- 8 Macrodinâmica Pós-Keynesiana

mento de longo prazo é determinado pelo lado da oferta da economia, não havendo espaço para a demanda efetiva influenciar o crescimento de longo prazo das economias capitalistas. A segunda parte do livro apresenta as contribuições pioneiras de Harrod, Domar, Kaldor, Pasinetti e Robinson para a escola pós-keynesiana. O ponto de partida dessa escola é a análise das condições necessárias e suficientes para a existência de uma trajetória de crescimento de idade dourada, ou seja, uma trajetória de crescimento estável com pleno emprego da força de trabalho. O resultado fundamental do assim chamado modelo Harrod Domar de crescimento é que o crescimento de idade dourada é possível, porém improvável, devido à ausência de mecanismos que assegurem o ajustamento da taxa garantida de crescimento à taxa natural ou potencial de crescimento de longo prazo, dada pela soma entre a taxa de crescimento da população e a taxa de crescimento da produtividade do trabalho. A excepcional performance macroeconômica dos países capitalistas desenvolvidos no período pós-segunda Guerra Mundial 12 levou a um amplo debate sobre a generalidade dos resultados do modelo Harrod Domar, tanto no campo neoclássico, como no campo pós-keynesiano. Nesse contexto, Kaldor e Pasinetti desenvolveram modelos de crescimento e distribuição no qual a participação dos lucros na renda atuava era a variável de ajuste que assegurava a convergência da taxa garantida à taxa natural de crescimento, assegurando assim a existência e a estabilidade da trajetória de crescimento em idade dourada. Essa foi a resposta pós-keynesiana ao assim chamado dilema Harrod Domar. Um aspecto fundamental dos modelos de crescimento e distribuição desenvolvidos pelos pioneiros da escola de Cambridge era relação de precedência causal do investimento com relação à poupança. Com efeito, os modelos desenvolvidos pelos pioneiros estabeleciam que o investimento determina a poupança, mesmo em uma economia que opere com plena utilização da capacidade produtiva. Um aumento do investimento desejado pelas firmas devido, por exemplo, a expectativas mais otimistas dos empresários com relação ao futuro gera um aumento da demanda agregada que, em um contexto no qual a oferta agregada é inelástica, leva a um aumento das margens de lucro e, por conseguinte, a uma redistribuição de renda dos salários para os lucros. Assumindo que a propensão a poupar a partir dos lucros é maior do que a propensão a poupar a partir dos salários, haverá um aumento conco- 12 A esse respeito ver Marglin, S; Schor, J. (1990). The Golden Age of Capitalism. Clarendon Press: Oxford, Capítulo 2. INTRODUÇÃO 9

mitante da poupança do setor privado. Essa ideia está particularmente presente no modelo de crescimento de Joan Robinson (1962). A parte III do livro é constituída por três capítulos dedicados à apresentação dos modelos neokaleckianos de crescimento e distribuição de renda. A diferença fundamental entre esses modelos e aqueles desenvolvidos pela Escola de Cambridge reside no fato de que os primeiros partem do pressuposto que o estado normal de uma economia capitalista é caracterizado pela existência de capacidade ociosa não planejada. Dessa forma, o ajuste entre investimento e poupança não se faz por intermédio de variações da distribuição de renda entre salários e lucros, mas por variações do grau de utilização da capacidade produtiva. A distribuição de renda é tida como exógena ao nível de atividade econômica, sendo determinada por fatores microeconômicos relacionados à estrutura de mercado no qual as firmas operam. Em particular, a participação dos lucros na renda seria determinada a partir da fixação da taxa de mark-up por parte das empresas, a qual reflete a estrutura de mercado na qual tais firmas estão inseridas. A presença do efeito acelerador na função investimento faz com que, para uma certa especificação da função investimento, o grau de utilização da capacidade produtiva de equilíbrio de médio prazo do sistema seja uma função inversa da participação dos lucros na renda, configurando assim a existência de um regime de demanda do tipo wage-led. O aumento do grau de utilização da capacidade produtiva decorrente da redução da participação dos lucros na renda termina por estimular as empresas a acelerar o ritmo de acumulação de capital, o que configura um regime de acumulação igualmente wage-led. Os modelos de crescimento e distribuição de renda que apresentam essas características são denominados de modelos neokaleckianos canônicos. A estrutura dos modelos neokaleckianos canônicos pode ser adaptada para incorporar o lado real e financeiro das economias capitalistas, o que constitui um avanço importante na tarefa de integração das duas vertentes do pensamento pós- -keynesiano. Essa incorporação foi feita, pioneiramente, no modelo desenvolvido por Taylor e O Connell (1985), o qual será objeto do capítulo 7 deste livro. Esses modelos também podem ser igualmente modificados para permitir a incorporação da fragilidade financeira a la Minsky (1982, 1986). Essa incorporação foi feita, igualmente de forma pioneira, por Foley (2003), sendo também objeto de estudo no capítulo 7 deste livro. No início da década de 1990, o modelo neokaleckiano canônico sofreu fortes críticas de Bhaduri e Marglin (1990) e Marglin e Bhaduri (1990) por se basear em 10 Macrodinâmica Pós-Keynesiana

uma especificação inapropriada da função investimento. Mais concretamente, argumentou-se nesses trabalhos que a taxa desejada de acumulação de capital deve ser considerada uma função separável da participação dos lucros na renda e do grau de utilização da capacidade produtiva. Nessas condições o regime de demanda wage-led deixa de ser a única relação possível entre demanda efetiva e distribuição de renda no contexto dos modelos neokaleckianos. É possível também a ocorrência de um regime profit-led, no qual um aumento da participação dos lucros na renda está associado a um aumento do grau de utilização da capacidade produtiva. Nesse contexto, torna-se igualmente possível a existência de um regime de acumulação do tipo profit-led. A ocorrência de um regime de demanda e de um regime de acumulação do tipo profit-led é mais provável em economias abertas. Dessa forma, no capítulo 8 deste livro apresentamos uma versão do modelo de Blecker (2002) para uma pequena economia aberta com mobilidade de capitais. O regime de demanda será profit-led ou aceleracionista quando o aumento (redução) da participação dos lucros na renda é originado a partir de uma melhoria (piora) na competitividade custo das empresas domésticas, ou seja, quando a razão entre os preços em moeda doméstica dos produtos importados e o custo unitário do trabalho aumenta (diminui). Por outro lado, o regime de demanda será wage-led ou estagnacionista quando o aumento (redução) da participação dos lucros na renda é originado a partir de um aumento (redução) do poder de monopólio das empresas domésticas, o qual se expressa em um aumento (redução) da meta de margem preço custo. Por fim, a quarta parte do livro está dedicada à análise dos determinantes da inflação, do nível de emprego e do desenvolvimento desigual. No capítulo 9 analisamos a relação entre inflação, conflito distributivo e política monetária; tendo como norte principal o modelo desenvolvido por Hein e Stockhammer (2011). Nesse contexto, argumentamos, inicialmente, que para a escola pós-keynesiana a moeda é endógena, sendo determinada a partir da fixação da taxa de juros básica pela autoridade monetária e o consequente compromisso da mesma em fornecer o volume de reservas que for demandado pelos bancos comerciais. A inflação não resulta, portanto, da emissão de moeda por parte do Banco Central; mas da inconsistência entre as demandas das firmas e dos sindicatos por participação na renda nacional. Essa inconsistência se expressa no surgimento de inflação não-antecipada, a qual é a causa da aceleração inflacionária. INTRODUÇÃO 11