A ARTE RELIGIOSA DO VALE DO PARAÍBA CRIADA PELOS SANTEIROS E PRESERVADA POR COLECIONADORES



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Transcrição:

A ARTE RELIGIOSA DO VALE DO PARAÍBA CRIADA PELOS SANTEIROS E PRESERVADA POR COLECIONADORES Vera Toledo Piza 1 O tema deste artigo, adaptado aos tempos atuais, foi apresentado no Museu de Antropologia do Vale do Paraíba, em Jacareí, em 24 de abril de 1996, durante a exposição: Mãos que Esculpem, Mãos que Oram e jamais foi publicado. E foi decorrente do desenvolvimento de uma pesquisa feita para a minha dissertação de Mestrado na Universidade de São Paulo, intitulada: A Arte Sacra do Vale do Paraíba na Virada dos Séculos XIX e XX: o santeiro e a imaginária. O interesse pela arte religiosa surgiu através da convivência com Eduardo Etzel (1906-2003), médico e pesquisador dessa arte, que publicou nove livros sobre o assunto e dedicou muitos anos de sua longa vida ao contato com a população do Vale do Paraíba, seja no tratamento das doenças pulmonares, seja através das suas viagens de pesquisa pelas cidades da região. Tive a felicidade de tê-lo, aos 90 anos, participando da minha banca examinadora de Mestrado, na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo; portanto, posso dizer que contei com o aval dele nos resultados obtidos no desenvolvimento das minhas pesquisas acadêmicas. A arte religiosa é a manifestação artística que expressa o sentimento do homem diante de Deus. Ela se faz presente tanto nas atividades que dizem respeito às práticas religiosas, quanto naquelas não necessariamente relacionadas com o culto. Dessa forma, é possível entender, como uma espécie de espiritualidade, a busca da santificação através do trabalho, da vida familiar, da vida nas comunidades, assim como na prática sistemática da oração, individual ou comunitária. Pode-se dizer que o trabalho e a oração se completam, uma vez que constituem veículos de louvação a Deus e de desenvolvimento da espiritualidade. Na história da arte, observam-se alguns movimentos estéticos que valorizam o trabalho. No século XX, essa tendência foi preponderante no Realismo Socialista, estética que se desenvolveu na União Soviética na década de 1930, pela qual a arte deveria antes de tudo, valorizar o elemento nacional, sendo socialmente utilitária, dinâmica e didática, e voltada para os valores do Estado soviético, que vivia a sua consolidação. Assim sendo, a produção criada dentro desses princípios deveria dar grande ênfase às classes operárias e suas conquistas, e também ao trabalhador e seus instrumentos de trabalho, estes marcados pela representação, com desenvoltura, dos pés e das mãos, marca fundamental do trabalhador agrário. No Brasil, o Modernismo das décadas de 1920 e 1930 também destacou o nacionalismo, mas sob outro enfoque. Nas artes plásticas, por exemplo, Portinari foi um pintor que se voltou para temas populares, tais como o universo rural e a exaltação dos valores herdados de uma tradição nacional: a família, a comunidade, laços de sangue, catolicismo, sem, no entanto, abandonar a visão marxista da realidade, mas reproduzindo-a de acordo com uma versão humanística e social. Grande destaque foi dado pelo pintor ao trabalhador brasileiro, representado preferencialmente pela figura do negro. Confirmam a preferência de Portinari pela temática do trabalhador rural as deformações expressivas, características da sua obra; principalmente de pés e de mãos: mãos que denunciam a força e o poder criativo; e pés solidamente plantados no solo, o que marca a ligação do trabalhador com a terra. Entretanto, a questão das deformações na obra de arte é bem anterior a Portinari ou ao Realismo Socialista, pois é uma das características do movimento barroco. A palavra barroco era usada para designar as pérolas naturais, de formas irregulares, diferentes das pérolas esféricas convencionais. Diferentemente dos padrões estéticos próprios ao Classicismo renascentista, que, numa retomada dos padrões greco-romanos da Antiguidade, procurava a perfeição das formas na arte, o movimento barroco, tal como as pérolas irregulares, ficou marcado pela deformação e pelo exagero na expressão das formas, pela exaltação da sensibilidade e pela suntuosidade e riqueza, quebrando as normas que ditavam os padrões estéticos ideais. Assim, a arte barroca demonstra magnificência e plenitude de movimento e, no campo religioso, caracteriza-se pela pompa com a qual reveste as suas manifestações. Pode-se dizer que a arte brasileira tem na arte sacra barroca por excelência o seu berço natural, pois ela se fez presente no Brasil desde o início da colonização portuguesa, introduzidas nas terras de Santa Cruz pelas mãos missionárias dos jesuítas. A arte sacra, de modo geral, inclui não apenas a arte ligada às práticas do culto, tais como a confecção de imagens, crucifixos, oratórios, bem como pinturas ornamentais e didáticas, especificamente realizadas para essas finalidades, peças de ourivesaria e de ornamentação para o serviço religioso ou decoração dos templos, respectivamente, e, também, a arquitetura de igrejas e capelas. A Arte Religiosa no Vale do Paraíba A descoberta do ouro em Minas Gerais no século XVIII teve conseqüências diretas na expansão da arte religiosa brasileira. A região de São Paulo, ao contrário do que aconteceu em outras localidades do território brasileiro nos dois primeiros séculos da colonização, não apresentou qualquer atrativo para um povoamento acentuado, como aconteceu na costa nordestina com a produção açucareira nos séculos XVI

e XVII, ou com a exploração do ouro mineiro no século XVIII. A única riqueza efetiva que a região possuía dizia respeito aos índios, caçados e vendidos como escravos, riqueza essa que representava para o território o mesmo que o negro africano representava para as plantações de açúcar do Nordeste, pois apenas no século XIX é que a região paulista conheceu a riqueza proveniente da cultura cafeeira. Assim sendo, pode-se dizer que São Paulo recolheu as ressonâncias da opulência barroca na sua arte religiosa, considerada modesta de recursos materiais se comparada à de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco ou mesmo do Rio de Janeiro, devido à carência de riquezas minerais na região, embora traduzisse os mesmos anseios dos artistas que produziram a arte mineira ou nordestina. Entretanto, o fato de haver uma simplicidade na produção da arte sacra em São Paulo não significa uma inferioridade na qualidade da mesma. Ao contrário, aqui se encontraram obras notáveis, cuja qualidade certamente se deve à transmissão do ofício da talha e da estatuária por parte das Ordens religiosas em especial jesuítas, franciscanos, carmelitas e beneditinos, bem como de suas Ordens Terceiras e confrarias leigas, conhecedoras que eram também da pintura e da ornamentação. Dentre as Ordens religiosas que se fixaram na região do Vale do Paraíba, a que mais se destacou na produção da imaginária religiosa foi a dos beneditinos. Na segunda metade do século XVII, por volta de 1670, a Ordem de São Bento adquiriu terras na Vila de Sant Ana das Cruzes de Mogy, hoje Mogi das Cruzes. É sugestiva a presença abundante de paulistinhas na região onde se radicaram os beneditinos, comenta Eduardo Etzel 2 no livro Imagens Religiosas de São Paulo, sugerindo que tenham sido eles, talvez, os divulgadores dessas imagens nas proximidades dos locais onde se instalaram. Curiosamente, o Vale do Paraíba apresenta uma topografia bastante peculiar, cercado por montanhas e imprópria para as grandes monoculturas. Na segunda metade do século XIX, continuava sendo uma região de difícil acesso, devido às dificuldades impostas pela Serra do Mar de um lado, e pela Serra da Mantiqueira do outro, embora alguns pontos integrassem o roteiro que ligava o litoral às Minas Gerais. Assim sendo, viuse a terra dividir-se em pequenas propriedades e a atividade agrícola compor-se na base da subsistência. Com isso, as pessoas que viviam no campo permaneciam praticamente isoladas dos centros urbanos. Eram os laços religiosos que as uniam e congregavam. O século XVIII, no Brasil, coincidiu com a decadência do ciclo econômico do ouro que, em termos de arte religiosa, ainda vivenciava os esplendores do movimento barroco. Nas cercanias de Jacareí, ao lado de cidades montanhosas como Nazaré Paulista, as imagens para o culto datam do final desse período, quando proliferaram na região as peças denominadas paulistinhas. Essas eram imagens de terracota, de tamanho pequeno e médio, que variavam entre 15 e 20 cm. Eram produzidas por autores anônimos a partir do final do século XVIII e foram confeccionadas na região do Vale do Paraíba até aproximadamente meados do século XIX, por volta de 1836 a 1859. Essas imagens eram cópias de similares encontradas na região de Estremoz, em Portugal, porém, apresentando melhor acabamento que aquelas. Em São Paulo, serviam de modelo de inspiração para os artistas santeiros, as imagens de santos importadas de Portugal ou mesmo autógenas, criadas a partir de imagens ou estampas européias. Figura 1 Imagens paulistinhas de Sant Ana Mestra, confeccionadas em barro, procedentes do Vale do Paraíba. Coleção e foto: Eduardo Etzel. Dos santeiros do Vale do Paraíba: Dito Pituba As diversas manifestações da arte religiosa popular brasileira de modo geral, independentemente da região em que se encontram, apresentam pontos comuns entre si. Por exemplo, nos séculos XVI e XVII, não era comum o costume de se ter imagens ou oratórios nas casas. Todo culto se realizava em locais públicos, como igrejas e capelas. O culto doméstico só tomou vulto a partir do século XVIII, e os oratórios, repletos de santos, tornaram-se peças obrigatórias em todas as casas, ricas e pobres, a partir do século XIX. Dado o grande número de capelas espalhadas pela roça, pode-se ter uma idéia da intensa atividade dos artistas santeiros e da vasta quantidade de imagens por eles confeccionadas. Os santeiros, em sua grande maioria, produziam as imagens esporadicamente, nas horas de lazer e de ócio, não fazendo dessa atividade um ofício regular. Em geral, tinham outras profissões, dedicando-se à imaginária apenas como uma complementação do orçamento doméstico, o que fez com que muitos deles caíssem para sempre no anonimato. Benedito Amaro de Oliveira, conhecido como Dito Pituba, foi um dos raríssimos exemplos de santeiros que se dedicaram integralmente à arte religiosa, fazendo desse métier seu único meio de subsistência. Foi ele, também, o responsável pela maior produção de peças sacras do Vale do Paraíba. Dito Pituba nasceu em Santa Isabel em 1848, tendo vivido praticamente toda a sua vida naquela cidade. Iniciou suas atividades confeccionando telhas. Não trabalhou somente por encomendas, mas fazia grande quantidade de imagens que eram vendidas na roça. Com o produto desse trabalho conseguiu manter a sua família, criando e educando seus seis filhos. 2

Pituba trabalhou muito com barro, cru e cozido; além do barro, utilizou madeira branca, de vários tipos, conhecida pela designação genérica de caxeta. Também utilizou o pinho-da-serra e o pinho europeu nas bases, este proveniente, com toda certeza, de caixas de mercadoria importada (ETZEL, 1971:197). Para a talha, o santeiro costumava usar o canivete. É incrível a associação que fazia entre os diversos materiais, a título de recursos técnicos: terracota com madeira, por exemplo, técnica empregada com freqüência em crucifixos, sendo o corpo feito de barro e os braços de madeira; ainda nos crucifixos, usava papel no acabamento, unindo os braços (de madeira) ao corpo ou formando o pano drapeado na cintura. Se, por ventura, o barro estourasse na queima de uma imagem, enchia o vazio e fazia o acabamento com papel, disfarçando depois com pintura final. Dito Pituba era também pintor. Além da confecção de oratórios, o santeiro também os pintava, ornamentando o fundo e as portas com flores, anjos e arabescos; o tratamento que deu aos oratórios era personalíssimo e indica, até hoje, o caminho para o reconhecimento de todos os seus oratórios. Fazia também bandeiras de festas de terreiros, quadros para promessas e ex-votos. Figura 2 Oratório do século XIX, de autoria de Dito Pituba, repleto de santos das devoções particulares, confeccionado em madeira policromada. Peça proveniente da região de Santa Isabel. Museu de Antropologia do Vale do Paraíba, Jacareí. Notar a pintura nas portas e no interior do oratório, típicas do santeiro. Foto: Pedro Ribeiro, para a exposição Mãos que Esculpem, Mãos que Oram, realizada no Museu de Antropologia do Vale do Paraíba, em abril de 1996. Peças da autoria de Pituba foram encontradas por toda uma vasta área do Vale do Paraíba, incluindo Santa Isabel, Nazaré Paulista, Perdões, Guararema, Mogi das Cruzes, Arujá, Igaratá e Jacareí. Ele morou com a família em várias dessas localidades, tendo vivido aproximadamente um ano em cada uma, sempre mantendo sua atividade de santeiro. Foi tamanha a sua produção que o santeiro, além de ele mesmo vender suas peças, chegou a contratar um vendedor que saía pelas redondezas oferecendo imagens de sua autoria. As obras criadas por Dito Pituba tinham algumas características próprias, comuns nas peças que confeccionava. Ele costumava datar algumas de suas criações ou identificá-las com suas iniciais inclinadas: B. A. O. (Benedito Amaro de Oliveira). Outra característica é o S inclinado, quando da indicação de um santo. Também os pés e as mãos, em suas imagens, sobressaíam-se: grandes e desproporcionados, segundo Etzel, referem-se às características do caboclo descalço, andarilho incansável pelas morrarias de Santa Isabel e de suas mãos grosseiras, que na labuta agrícola lhe garantiam a subsistência (ETZEL, 1975: 70). Quanto às cores e à pintura, as técnicas e os tons da tinta se repetem na variedade das suas criações. As tintas, por ele mesmo preparadas, eram misturadas com alvaiade; a cor resultante era uniforme, mas de grossa espessura, a ponto de encobrir os detalhes da escultura de madeira, que dava à peça um aspecto grosseiro. O santeiro aproveitava qualquer tipo de material que se adaptasse à peça que estava sendo criada: prego industrial, tampinhas de garrafa, pedaços de couro, jornal ou papelão, os olhos de vidro de bonecas etc. Muitos dos modelos utilizados inicialmente eram aqueles que o santeiro conhecia: as paulistinhas. A rigidez e a estaticidade daí decorrentes são também marcantes na sua obra. Outra característica da obra de Pituba era o uso, nas imagens de madeira, do prego industrial para fixar a imagem na base, prendendo-a de baixo para cima. Essa característica, seguramente, leva à identificação da obra como sendo de autoria de Pituba, o único na região que usava esse recurso técnico. Figura 3 São Miguel Arcanjo, de autoria de Dito Pituba, proveniente da região de Santa Isabel. Madeira, 33,5 cm. Observar o uso de tampinhas de garrafa para representar os pratos da balança. Coleção particular. Arte, arte religiosa no acervo de coleções e colecionadores 3

A obra de Dito Pituba, como de outros artistas do Vale do Paraíba, em grande parte, integra hoje o acervo de museus e de coleções particulares. Têm estes a nobre função de preservar a obra de nossos artistas e a nossa memória histórica. Colecionar objetos faz parte da natureza do ser humano. Desde pequeno, o homem dedica-se a essa atividade. Para as crianças, são bonecas, soldadinhos de chumbo ou similares, miniaturas de automóveis, brinquedos etc. Os jovens e adolescentes colecionam latas de cerveja, caixinhas de fósforos, selos, pôsteres etc. Os adultos que, futuramente, vão colecionar peças de arte sacra colecionam canetas, isqueiros, tapetes, quadros, obras de arte, antiguidades, jóias etc. Curiosamente, a mais universal de todas as coleções é o dinheiro, que será acumulado num verdadeiro jogo de aplicações no mercado financeiro. As coleções particulares são sempre reveladoras de dados a respeito da personalidade de seus possuidores. Segundo Maurice Rheims (1959), o colecionador tem o faro do caçador, a alma do policial, a objetividade do historiador e a prudência do comerciante. O gosto pelas coleções leva-o a ir além do seu objeto de escolha: o colecionador acaba por procurar febrilmente não apenas o que há de mais bonito, como também o que é mais raro ou mais caro. Nessa trajetória, realiza toda uma pesquisa sobre o objeto no tempo e no espaço, trazendo para a posteridade a sua contribuição histórica a respeito de uma determinada área de pesquisa. Quando o amor pelas coleções é exageradamente alimentado, o colecionador pode se tornar vítima de um fanatismo exacerbado, correndo o risco de passar a ter uma distorção de ordem moral, quando, no intuito de aumentar a sua coleção ou possuir uma peça rara, é levado a usar de quaisquer meios para consegui-la, sem levar em conta os limites da ética. No Brasil, ainda se encontram verdadeiros tesouros da arte religiosa nas igrejas do interior, expostas sem a menor segurança, sob a guarda de um pároco que, basicamente, não tem qualquer sentido de malícia e não pode sequer suspeitar da possibilidade do roubo das obras sob os seus cuidados. Assim, essas estão em constante ameaça, pois podem ser presas fáceis de ladrões e criminosos, que após o roubo, vendem-nas para antiquários ou colecionadores inescrupulosos e irresponsáveis. Outro grande perigo que ameaça a nossa arte religiosa, seja ela erudita ou popular, surgiu com o recrudescimento de religiões e seitas que não aceitam as imagens do culto católico, a ponto de orientarem os fiéis convertidos a destruírem as peças do culto doméstico. Muitas das obras dos santeiros do Vale do Paraíba desapareceram, vítimas dessa ação destruidora, fazendo com que se perdesse também parte da nossa memória histórica. Em vista da complexidade que envolve as coleções particulares de maneira geral a identificação com o possuidor e não com os demais membros da família; as dificuldades de climatização de certas coleções; o problema espacial que ocorre à medida que cresce a coleção; os riscos de perdas de obras devido à ação de ladrões e pragas, como cupins, além de intempéries de toda espécie; e outros, muitos colecionadores, hoje, acabam cedendo suas coleções aos museus, como aconteceu com a importante coleção de objetos históricos do Major Sertório, no século XIX, que motivou a criação do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (Museu do Ipiranga, em São Paulo); ou a vasta coleção de arte religiosa do Vale do Paraíba de Eduardo Etzel, cuja maior parte se encontra depositada no Museu de Arte Sacra de São Paulo, e outra parte, integrando o acervo do Museu de Antropologia do Vale do Paraíba, em Jacareí. Essas doações aos museus garantem a perpetuação tanto dos artistas, como das próprias coleções. Há mesmo quem diga que os colecionadores são apenas os felizes e provisórios depositários de um tesouro, que poderá ser encaminhado de volta à comunidade posteriormente. E que, na realidade, eles não teriam o direito de exclusividade, privando da fruição de suas preciosidades outras pessoas que também apreciam os objetos e a arte neles existente. Para que esse tesouro possa ser apreciado fora das quatro paredes das coleções particulares, seria ideal levá-lo a público temporariamente, através de mostras promovidas pelos museus, onde há sempre um corpo de segurança permanentemente de plantão. Sendo algumas coleções consideradas parte do patrimônio cultural de uma cidade ou região, até que ponto devem ficar confinadas nas mãos de uma única pessoa, permitindo-se que, após o seu desaparecimento, as peças sejam dispersas pelos herdeiros, os quais, muitas vezes, atribuem às mesmas apenas um valor comercial, sem levar em conta o que, de fato, a coleção representa para a sociedade como um todo? A resposta a essa questão é tema para ser refletido cuidadosamente pelos colecionadores, museólogos, pesquisadores e representantes dos setores culturais das cidades ou regiões, a fim de que, principalmente, não se deixe perder a memória nacional pelo descaso e pela ganância de uma pequena parcela da comunidade. BIBLIOGRAFIA ETZEL, Eduardo. Arte Sacra Popular Brasileira. Conceito Exemplo Evolução. São Paulo: Melhoramentos, 1975.. Imagens Religiosas de São Paulo: apreciação histórica. São Paulo: Melhoramentos, 1971. PIZA, Vera Toledo. A Arte Sacra do Vale do Paraíba na Virada dos Séculos XIX e XX: o santeiro e a imaginária. Dissertação de Mestrado. São Paulo, ECA-USP: 1996. RHEIMS, Maurice. La Vie Étrange des Objets. Histoire de La Curiosité. Paris, Plon: 1959. 4

NOTAS 1 Vera Toledo Piza, diretora geral da Faculdade Paulista de Artes em São Paulo, é doutora em Artes, tendo desenvolvido pesquisas sobre imagens religiosas do Vale do Paraíba. 2 Eduardo ETZEL, Imagens Religiosas de São Paulo: apreciação histórica. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 85. 5