\1Jo \-?.; c:j O PRINCíPIO METAFóRICO DA LINGUAGEM - O APODIGMA Vera Lúcia Albuquerque de Moraes A dinâmica isomórfica de projeção, possibilitada pela forma lógica, determina a figuração dos fatos reais do mundo pelos fatos simbólicos da linguagem. 1. INTRODUÇÃO A teoria da linguagem do tractatus lógico-philosophicus procura estabelecer a estrutura e limites do pensamento, estudando a estrutura e limites da linguagem. Constitui uma tentativa no sentido de perceber a fronteira entre o que faz e o que não faz sentido, de modo a ser p ossível parar logo que essa linha divisória seja atingida. No prefácio do livro, Wittgenstein observa que o tractatus se compõe de duas partes: o que foi escrito e tudo quanto não foi escrito. O dizível, a linguagem corrente, constitui um estágio para aqueles que, tendo cogitado pensamentos semelhantes aos seus, conseguirem atingir a escala do silêncio. E é exatamente essa segunda parte que ele considera a mais importante. Conscientizando, desde o início, o absurdo de sua tentativa, a impossibilidade de não poder dizer o indizível, Wittgenstein empreende um questionamento sistemático às própias questões. Rev. de Letras, Fortaleza, 5 (2) : pág. 67-75, jul./dez. 1982 67
Para ele, a filosofia não é uma doutrina, mas uma atividade. Trata-se de questionar, de viajar vários trajetos, o próprio processo sendo o resultado e seus equivalentes. Segundo Wittgenstein, apenas a existência de uma prélinguagem universal poderia garantir, a priori, uma espécie de isomorfia oculta entre as estruturas do mundo e da linguagem. Esta deve ser considerada como um espelho da realidade. Os limites do apriorismo baseiam-se em sua convicção de que certas questões não são colocadas porque nós não lhes podemos conferir sentido. Acreditava ser possível deduzir a pré-existente estrutura da realidade, a partir da premissa segundo a qual todas as línguas têm certa.estrutura comum. As estruturas da realidade e da linguagem se deduzem de uma única teoria global - a lógica abrange tudo que é necessariamente verdadeiro e isso pode ser dito anteriormente a qualquer experiência. As duas estruturas - o mundo e a linguagem - podem ser vistas como um sistema de coordenadas, que empreendem um feixe de relacionamentos, em níveis de combinação e articulação cada vez mais complexos. 2. FIGURAÇÃO Para situarmos o princípio metafórico da linguagem, é necessário entender o que Wittgenstein define por "figuração". Em 2. 12, página 59 do tractatus, ele afirma que " figuração" é um modelo da realidade. Isso equivale a dizer que existe uma isomorfia evidenciando-se na estruturação do mundo e da linguagem, através de um processo de espelhamento. Em 2. 13, Wittgenstein diz que " na figuração, seus elementos correspondem aos objetos". Existe uma identidade entre mundo e linguagem, do ponto de vista da "vinculação" de seus elementos, mas também existe uma diferença, do ponto de vista desses elementos. Em 2. 141, ele afirma: " A figuração é um fato". 68 Rev. de Letras, Fortaleza, 5 (2) : pág. 67-75, jul./dez. 1982
Os fatos reais, produtos da estruturação lógica de elementos físicos, são representados na "figuração" pelos fatos simbólicos da linguagem. Na isomorfia existe algo idêntico e algo diferente. Toda representação só é possível se, ao representar, ela se distingue daquilo que representa. Mundo e apodigma é a mesma coisa, do ponto de vista da forma lógica, isto é, da estruturação dos elementos. Para haver diferença é necessário que haja uma estrutura de relações. Quanto mais extensas forem as diferenças, as oposições, mais vigorosa será a estrutura. A "figuração" tem em comum com a realidade a "forma de afiguração", que ela pode exibir, mas não pode afigurar. A isomorfia é pura projeção de uma dinâmica constituinte que antecede e se retrai a toda rep'resentação do mundo pela linguagem. A forma de afiguração por ser "a possibilidade de que as coisas estejam umas em relação às outras como os elementos da figuração" (2. 151) - se confunde com a forma lógica, já que toda figuração que conhecemos é lógica. A forma lógica é subjacente. t a energia estruturante do mundo e apodigma que tudo possibilita sem, contudo, se esgotar. A figuração depende da representação que fazemos do mundo, por isso nem sempre corresponde exatamente à realidade: "A figuração representa seu objeto de fora (seu ponto de vista é sua forma de representação), por isso, a figuração representa seu objeto correta ou falsamente" (2. 173). Para sabermos se a figuração é falsa ou verdadeira, devemos compará-la com a realidade, porque não existe uma figuração a priori verdadeira (2. 225). 2.1 - A figuração lógica dos fatos é o pensamento (3). Pensar é a isomorfia lógica de elementos. t uma figuração significativa. Tudo quanto pensamos temos possibilidade de pensar. Não podemos pensar nada fora desse princípio figurativo (5. 4731 ). Isso constitui um a priori da lógica, que tudo antecipa: "Nada é acidental na lógica" (2. 012). Rev. de Letras, Fortaleza, 5 (2) : pág. 67-75, jul./dez. 1982 69
O pensamento não é apenas uma pura idealidade, mas uma atividade, agindo como intermediário de coisas bastante concretas. O pensamento se projeta de modo sensível através dos signos. 2. 2 - A proposição é a projeção sensível do pensamento, por meio do signo proposicional (3. 1-3. 11 ). Para que o signo proposicional se torne uma proposição é necessário existir a atividade coordenante do pensamento, que faz da seqüência de palavras uma proposição significativa. Por isso, Wittgenstein define o pensamento tanto por "figuração lógica dos fatos", como por "proposição significativa". "A proposição é modelo da r-ealidade tal como a pensamos" (4. 01). A proposição, sendo projeção sensível do pensamento, deverá ser logicamente articulada. As proposições significativas assertam acerca da realidade e são reflexos de sua estrutura: " Por meio da proposição a realidade deve ser fixada enquanto sim ou enquanto não" (4. 023). A concordância ou discordância do que asserta a proposição com a realidade, poderá dizer de sua verdade ou falsidade: "Compara-se a realidade com a proposição" (4. 05). " Somente com isso a proposição pode ser verdadeira ou falsa, quando ela é uma figuração da realidade" (4. 06). Dizer que uma proposição tem sentido preciso equivale a afirmar que deve ser possível traçar uma nítida linha envolvendo qualquer " situação", que se dará necessariamente se a proposição for verdadeira. O relacionamento interno da linguagem representa o relacionamento interno do mundo. A igualdade dos objetos é expressa pela igualdade dos signos, assim como a diversidade dos objetos se exprime pela diversidade dos signos. O tractatus mostra a correlação das palavras com as coisas, através de que as proposições ganham sentido. Uma proposição só adquire sentido ou porque suas palavras representam coisas existentes ou porque são divisíveis em outras palavras que representam coisas existentes. 70 Rev. de Letra.s, Fortaleza, 5 (2) : pág. 67-75, jul./dez. 1982
Para que uma proposição possa representar um espaço lógico, é necessário que ela tenha o que representa na mesma forma lógica - isso constitui o princípio metafórico da linguagem. Sua possibilidade baseia-se no princípio da substituição dos objetos por meio dos signos: "Um nome representa uma coisa, outro, outra coisa, e estão ligados entre si de tal modo que o todo - como qualquer quadro vivo - presenta o estado de coisas" (4. 0311 ). O nome isolado é uma abstração que surge a partir da proposição; é um elemento abstraído de um fato semântico que só tem sentido em correlação com outros nomes da proposição: "Na proposição o nome substitui o objeto" (3. 22). Assim como o "objeto" constitui a substância do mundo, o " nome" constitui a substância da proposição. ~ o acervo das possibilidades articulatórias e combinatórias, antecipadas pela lógica. A proposição pertence tudo o que pertence à projeção, isto é, o processo de estruturação dos elementos. O que é projetado, porém, não pertence à proposição. Trata-se de uma representação, envolvendo elementos diferentes, já que esses elementos são signos de alguma coisa e não a própria coisa. Wittgenstein sustentava que toda necessidade é necessidade lógica e que as verdades necessárias da lógica são "tauto I og i as". As " tautologias" são vazias de conteúdo fatual, significativo. Têm caráter definitório e atuam como prova de que algo existe. A tautologia e sua antítese - a " contradição" - não são fatuais nem contingentes. Suas palavras não representam coisas, não assertou acerca da realidade. Uma tautologia, diz apenas que qualquer objeto que existe, existe. As tautologias e as contradições correspondem aos dois casos - limite das funções - verdade uma contradição tenta movimentar-se no todo do espaço lógico e uma tautologia deixa vazio esse espaço. Quando certas proposições se combinam e surge uma tautologia, esse fato indica a estrutura essencial da realidade - e essa estrutura é algo que só pode ser exibido. "~ certa a verdade da tautologia, da proposição é possível e da contradição impossível" (4. 464). Rev. de Letras, Fortaleza, 5 (2) : pág. 67-75, jul./dez. 1982 71
A "proposição elementar" é a unidade de construção de toda proposição significativa. Afirma a subsistência de um estado de coisas - se ela for verdadeira, o estado de coisas subsiste, se for falsa, o estado de coisas não subsiste. "O mundo é completamente descrito pela indicação de todas as proposições elementares mais a indicação de quais são as verdadeiras e quais as falsas" (4. 26). As "proposições elementares" constituem o limite interior das proposições significativas. Formam a estrutura fundamental da linguagem e representam a estrutura da realidade: "A realidade empírica é limitada pela totalidade dos objetos. O limite reaparece na totalidade das proposições elementares" (5. 5561). - Segundo Wittg.enstein, as proposições elementares são independentes entre si - a verdade ou falsidade de uma, não implica verdade ou falsidade de outra. Não há hierarquia na ordem das proposições elementares, como também não existem hierarquias na realidade. Por um processo de operação lógica, uma proposição pode gerar outra e assim por diante - essa operação dependerá da semelhança interna de suas formas: "Todas as proposições resultam de operações - verda - des sobre as proposições e~ementares". (5. 3) "Todas as funções de verdade resultam da aplicação sucessiva de um número finito de operações - verdades sobre proposições elementares" (5. 32). Isso significa que toda proposição é o resultado de uma construção a partir das proposições elementares. Operando sobre as proposições elementares é possível determinar-se o limite de expansão do discurso, isto é, o limit.e exterior da linguagem. A operação tornou expressa a diferença de formas. A complexidade do mundo revela-se na sua estruturação. O nível dos "fatos", o nível dos "estados de coisas", o nível dos "objetos", compõem as camadas do mundo como totalidade. A linguagem é a totalidade das sentenças, isto é, a totalidade de suas possibilidades de combinação e articulação, antecipadas pela lógica: "A totalidade das proposições é a linguagem" (4. 001). Toda a multiplicidade dos objetos que nos cercam e todas suas relações complexas constituem, segundo a concep- 72 Rev. de Letras, Fortaleza, 5 (2) : pág. 67-75, jul./dez. 1982
ção do tractatus, conjuntos em escala mais ou menos complexa de elementos simples. Toda a multiplicidade das proposições da linguagem ordinária são proposições complexas que podem ser reduzidas a diversas combinações de proposições elementares. As próprias proposições elementares se compõem dos " nomes" que representam os elementos simples. As "proposições elementares" são, ao mesmo tempo, conjuntos articulados de nomes e representações de articulações idênticas de objetos. Sem esse relacionamento fundamental entre o "nome" e o "objeto", nós não poderíamos falar do mundo. A rigor, não existe uma separação fraamentária entre mundo e linguagem. As duas estruturas compõem um sistema de coordenadas, expandindo-se por todo o espaço de possibilidades em que flutua o mundo dos fatos. 3. CONCLUSÃO A função apodigmática da linguagem deduz-se do princípio isomórfico da projeção, que vincula sua estrutura à do mundo. Existe uma forma lógica que possibilita a ordem do mundo e de sua representação pela linguagem. A linguagem funciona como um padrão de medida da realidade, sua estrutura refletindo exatamente a estrutura do mundo, determinada a priori pela lógica. Todas as tentativas para afigurar essas condições de possibilidades são sem sentido e absurdas, porque se encontram sempre dentro do limite do dizível - o que significa aue estamos apenas acrescentando outros níveis de exolicação lógica ou um reoertório novo de siqnos prooosicionais ao já - dito. O espelhamento da estrutura do mundo pela linauag.em encontra-se dentro do âmbito do dizível, do que pode ser constatado. Isso Wittgenstein tenta nos mostrar no decorrer do Tractatus. Entretanto, sobre o que não temos condições de falar, Wittgenstein afirma que é necessário não se dizer nada além do que realmente se encontra dentro do nosso âmbito de compreensão - nada além das proposi ções da ciência: Rev. de Letras, Fortaleza, 5 (2) : pág. 67-75, jul./dez. 1982 73
' "O que não se pode falar, deve-se calar" (7) Essa convicção implica, inclusive, na condenação do próprio Tractatus, que tenta expressar, de maneira fatual, coisas que de maneira fatual não podem ser expressas. RESUMO O Tractatus nos fala de uma forma lógica que possibilita a estruturação do mundo e sua representação pela linguagem. A isomorfia, proj.eção dessa energia estruturante, torna possível uma identidade na vinculação dessas duas estruturas, embora elas sejam compostas por elementos diferentes. A função apodigmática da linguagem consiste na substituição dos fatos reais pelos fatos simbólicos, representados pelos signos proposicionais. Ess.es signos presentam os diversos níveis e camadas do mundo como totalidade. 5. REFER~NCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. BOUVERESSE, Jacques. Langage ordinaire et philosophie. Paris, Les Éditions de Minuit, 1971. 475 p. (Collection Critique). p. 299-345. 2. CARNEIRO LEÃO, Emmanuel. Contexto problemático do Tractatus de Ludwig Wittgenstein. In Boletim de Ariel. Rio de Janeiro, Companhia Editora Americana, 1973. 31 p. V oi. 1. n. 0 1. p. 5-6. 74 Rev. de Letras, Fortaleza, 5 (2) : pág. 67-75, jul./dez. 1982
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