O espelho do Índio: O auto-retrato da criança indígena na Fotografia e na Pintura.



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Transcrição:

PROJECTO DE INVESTIGAÇÃO DOUTORAMENTO Título: 1. INTRODUÇÃO. ESCOLHA DO TEMA. DE ÂNGELA MENDES FERREIRA O espelho do Índio: O auto-retrato da criança indígena na Fotografia e na Pintura. O projecto de realizar uma publicação de texto e fotografia como projecto de doutoramento, deve-se à possibilidade desta linguagem abarcar toda uma série de elementos tecnológicos e tradicionais, desde a abordagem à fotografia digital e sua inclusão como forma de comunicação, até ao seu impacto sobre as formas precedentes de realização estética, com contaminações e referências à pintura. Usando a fotografia e o auto-retrato como limite, tenho a intenção de desenvolver um estudo sobre o símbolo do espelho e da identidade indígena nas comunidades do Estado do Ceará no Brasil, encarando o lugar da fotografia na contemporaneidade. Enfocarei a análise numa perspectiva de busca da identidade da criança indígena, através da Fotografia e outras formas de expressão visual, como a pintura e o desenho. Outro dos desafios é atravessar o percurso traçado pela fotografia e pela pintura nestas comunidades indígenas do Nordeste Brasileiro, fazendo a ponte entre o passado e o presente e procurando projectar o futuro. Tentarei encontrar influências, metamorfoses, expectativas e contributos que se esperam da fotografia, bem como a sua indissociabilidade na era da digitalização. Através dos auto-retratos das crianças indígenas e da sua manipulação, procurar-se-á entender em que medida o novo ritmo de interferência imagética as afecta visualmente, quer na representação que fazem de si, quer na sua percepção do real. O objectivo é desenvolver um estudo sobre a identidade indígena de forma a entender a fotografia e o retrato como ferramentas da construção de identidade. Propõe-se que as crianças envolvidas construam o seu auto-retrato usando a fotografia, juntamente com um processo criativo de técnicas mistas da pintura e do desenho.

2. ENQUADRAMENTO Cada fotografia captada nestas comunidades permitirá trazer reflexões sobre a forma de representar um retrato, perpetuado aqui pelos traços da pintura. Pretende-se enforcar a análise na retratação da infância através da sua imagem individual e/ou familiar, embora contada sob o ponto de vista da pintura que se dispõe a mostrar da melhor maneira as fisionomias, os traços psicológicos e os anseios dos retratados. O presente projecto de doutoramento pretende dar seguimento à pesquisa realizada em âmbito de mestrado, procurando dar sequência aos documentos fotográficos que recolhi durante a tese de mestrado para a Utrecht School of Artst- Holanda. Sou inspirada pela causa indígena, e pela sua luta na conquista da identidade, pelo me interessa confrontar esta cultura ancestral com a possibilidade de criar e também manipular o seu auto-retrato através da fotografia. A ideia é criar arte e misturar o meu trabalho artístico enquanto fotógrafa com a visão particular da cultura indígena. 3. Ao longo do decurso dos estudos de mestrado, tudo me levou a crer pelo METODOLOGIA E OBJECTIVOS reconhecimento das inovações de ordem técnica como elemento afectador das sociedades, tanto nas suas práticas económicas, como nas culturais. A crescente velocidade da inovação tecnológica questiona sucessivamente a nossa percepção, e até, a nossa capacidade reflexiva. Esta pesquisa será pois circunscrita, através de uma abordagem à questão da identidade da criança indígena, em especial aludindo ao impacto da Fotografia com contaminações e referências à pintura. É esta uma área ainda pouco explorada no campo educacional e cujo incremento poderá ser útil para a aquisição de novos conhecimentos. A finalidade é evidenciar a fotografia pela observação de várias representações visuais. A abordagem organizar-se-á segundo os campos da estética, da análise crítica e da reflexão artística. 2

Na sua essência esta investigação centrar-se-á sobre a linguagem conceptual e artística das comunidades indígenas, procurando fazer uma reflexão sobre o real, entendido como inacessível na vida deste grupo de pesquisa. O presente projecto anseia lançar visões múltiplas sobre o lugar da imagem na sua componente fotográfica e artística, permitindo igualmente a sua reflexão. Para a concretização dos objectivos retomarei a pesquisa da identidade indígena das Tribos do Ceará, na sua relação com a fotografia, o retrato e a pintura. O projecto centrarse-á na recolha de retratos das povoações e aldeias do Estado do Ceará, com enfoque nas tribos Pitaguary, Tapeba e Jenipapo Canidé. Partindo desse universo fotografarei também os retratos dos inúmeros personagens do Estado do Ceará, povo caboclo com profunda influência indígena. Neste espaço acumulam-se todos os enquadramentos possíveis de uma aproximação à experiência narrativa das artes visuais, procurando atingir-se os seguintes objectivos, agrupados em dois núcleos: 1. Em que medida a saturação de imagens afecta a realidade da criança indígena; 2. De que forma a criança indígena produz o seu auto-retrato e de que forma constrói a sua realidade. Relativamente ao primeiro núcleo, procurar-se-á: - Compreender a evolução dos mecanismos de interacção entre a Fotografia e o Retrato, para a construção da Identidade de uma cultura; - Compreender a importância do progresso tecnológico para a compreensão das artes visuais; - Distinguir atitudes estéticas de atitudes pragmáticas e suas consequências para a literacia visual. Relativamente ao segundo núcleo, procurar-se-á: - Dominar competências no âmbito análise, pesquisa, investigação e reflexão sobre a condição da criança indígena, como recebe essa representação visual, e como representa o seu auto-retrato; 3

- Intervir consciente e criticamente no campo da arte contemporânea, estabelecendo conexões com a criação fotográfica na cultura indígena; - Utilizar um quadro conceptual que sustente a minha actividade artística enquanto fotógrafa; Na sua essência, os retratos daqui resultantes devem permitir a reflexão sobre a linguagem conceptual e artística da cultura indígena, sem ignorar a meu olhar como ocidental, bem como o carácter distante do real, entendido como inacessível. Para a concretização dos objectivos propostos utilizarei uma metodologia qualitativa, uma vez que será feita através de análise de imagens, não só fotográficas, mas recriadas pelas crianças, observando a sua inserção na comunidade indígena que traz consigo características únicas. Será feito um diário de bordo de investigação que permitirá concentrar a investigação. Além disso, quando trabalhar na produção artística, isto é, na construção da publicação, o diário de bordo ajudará a justificar todos os passos e escolhas que fizer em função dos auto-retratos das crianças. 4.1. A FOTOGRAFIA COMO ESPELHO DA REALIDADE 4. ESTADO DA ARTE A referência que a fotografia nos dá, como espelho da realidade, é o comprovativo real e visual de que o fotografado existe ou existiu em algum momento do presente passado. Esta constatação está implícita na força da fotografia, que mostra a existência de uma realidade visual, na qual ninguém pode influenciar, modificar ou adulterar na sua estrutura mais pura e completa na elaboração do existencial. Isso só é permitido à 4

fotografia, fidedigna cópia do real já que, no dizer de Barthes 1 "... a fotografia traz sempre consigo o seu referente". A face verosimilhante da fotografia foi, por muito tempo, confundida com uma duplicação especular de uma referência ao real, o que se dá no encontro da sua origem. Os campos da arte, que são o domínio dessa fotografia auto-referente, oscilam de várias maneiras no trato dessas múltiplas faces da imagem fotográfica, mas em particular nas confusões de questões pictóricas que permitem o debate em torno da fotografia e da pintura. A fotografia é de facto capaz de usurpar a realidade porque uma fotografia não é só uma imagem (no sentido em que o é a pintura), ou uma interpretação do real, mas também um vestígio, um rasto directo do real. Ao contrário da Pintura, a Fotografia não só representa o referente, como até se assemelha ao modelo e lhe rende homenagem: faz parte de uma extensão do modelo e é um meio poderoso para adquiri-lo e controlá-lo. A fotografia permite uma possessão sub-rogada de uma pessoa a uma coisa querida, e potencia uma relação de consumo com os acontecimentos. Mediante a fotografia é possível explorar e duplicar fotograficamente o mundo, oferecendo possibilidades de controlo inimagináveis, diversamente do que acontecia no anterior sistema de registo da informação: a escrita. Todavia, a fotografia não se limita a reproduzir o real, mas recicla-o: sendo este um procedimento chave de uma sociedade moderna. Assumindo a forma de imagens fotográficas, os acontecimentos e as coisas recebem novos significados que transcendem as distinções entre o belo e o feio, o verdadeiro e o falso, o útil e o inútil, o bom gosto e o mau gosto. A fotografia funciona como uma máquina que nos permite voltar ao passado. Ao tornar-se perene, a fotografia transporta-nos de um tempo cronológico a um tempo memorial afectivo, onde as lembranças fixadas na imagem substituem pessoas e acontecimentos reais que se perdem. Nessa viagem, no entanto, levamos o presente: o nosso modo de ver, o nosso corpo, a nossa vivência. A subjectividade de nosso olhar 1 BARTHES (1980:17) 5

constrói novos significados, transformando, com frequência, imagens aparentemente inalteráveis. Esta capacidade de estabelecer uma ruptura na continuidade temporal torna inevitável uma aproximação entre fotografia e simulacro, uma vez que o próprio tempo, de uma forma ou outra, afasta a fotografia da nossa realidade. Ao longo dos anos a imagem fotográfica reveste-se não apenas de lembranças e de todo o manancial emotivo que elas evocam, mas também de uma excentricidade proporcional à distância que a apresenta em relação ao que somos e como percebemos o mundo no presente. Por outras palavras: com o decorrer dos anos, a nossa percepção das coisas alterase, e com ela, os nossos juízos de realidade e de valor. Na maior parte das vezes, lembrar é também uma maneira de recriar o passado. Como numa ruína restaurada, novos e antigos materiais misturam-se; o que desapareceu pode ser visualmente refeito, mas nunca trazido totalmente de volta. A fotografia, como os espaços da nossa infância, depende do nosso olhar para construir significados. Como resulta de uma cisão determinada, com o passar do tempo ela perde a sua âncora. Inserida em novos contextos, a fotografia transforma-se num fragmento difuso e intangível, aberto a qualquer tipo de leitura. 4.2. A FOTOGRAFIA NA ERA DA DIGITALIZAÇÃO Com processo digital, as imagens escapam à representação. As novas imagens são geradas artificialmente, pela linguagem dos algoritmos e independentemente do objecto original, descolando-se do mundo. Com as imagens de síntese (numéricas, digitais), deixa de se representar o mundo, para o simular. Num plano epistemológico mais amplo, podemos afirmar que o desenvolvimento tecnológico contemporâneo é herdeiro do desejo moderno de ver o mundo pelos olhos da ciência e de administrar tecnicamente a vida social. O mundo torna-se, com as imagens de síntese, um simulacro fabricado a partir de informações binárias, transformadas e traduzidas por computadores. Com as imagens digitais, o referencial desaparece pela simulação matemática. As novas tecnologias tornam possível uma produção infinita de imagens sem que nenhuma delas preexista como tal. A sua imaterialidade permite-lhes uma actualização potencial nos diversos meios, o que provoca uma ruptura em relação aos antigos conceitos de reprodutibilidade, cópia e 6

original. Os poderes da imagem remetem-nos para um domínio delicado e quase secreto: A imagem é sempre uma alteração voluntária ou não, da realidade, e constitui um segundo mundo, com características próprias, pelo que nos coloca sempre perante processos de derivação. Com efeito, parece termos chegado a um ponto de insatisfação perante a imagem porque, afinal, queremos a realidade. Ao mesmo tempo, porém, orientamo-nos a partir de imagens: do outro, de nós próprios, do mundo, do passado, do presente, do futuro. Todavia, ainda que desde sempre perturbante, a imagem permite ver. Estamos, por isso, perante um paradoxo: não nos contentamos com a imagem, porque queremos que ela seja real, e não nos contentamos com o real, porque queremos que ele seja uma imagem. Esse descontentamento irresolúvel está bem presente na rapidíssima passagem que o cinema de arte europeu dos anos 60 fez entre a exigência baziniana da realidade e o juste une image de Godard. O real alimenta-se da imagem e a imagem alimenta-se de real. Resta discutir em que condições, hoje, se realizam as trocas entre ambos. Parece que ambos decidiram encalhar num namoro eterno que ora se concilia, ora se distancia. Ao ponto de se perguntar: A fronteira entre real e imagem diluiu-se? Ainda sentimos que participamos no real, ou hoje predomina, como se tem dito, o sentimento de irrealidade? O imaginário morre ou vive dessa indiscernibilidade entre o real e o irreal? Com esta investigação, pretende-se abrir os compartimentos herméticos do antigo discurso estético sobre a fotografia que tomava o repertório de códigos fotográficos como uma cópia absoluta e irrestrita do real e, a partir daí, avançar até a um exame crítico da unicidade do objecto de arte e da originalidade do autor, onde a questão da Identidade será igualmente focada. Ângela Mendes Ferreira 7