RAZÃO E AUTORIDADE NA EDUCAÇÃO INFANTIL: RELATOS DE UMA PRÁTICA



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Transcrição:

RAZÃO E AUTORIDADE NA EDUCAÇÃO INFANTIL: RELATOS DE UMA PRÁTICA Lucas Duarte Silva Graduando em Filosofia Lic. Plena pela UFPel lucasfilo@gmail.com Diego Sabbado Menezes Graduando em Filosofia Lic. Plena pela UFPel diego8sm@gmail.com Ursula Rosa da Silva Professora do Instituto de Artes e Design da UFPel bear@ufpel.edu.br Resumo: Este trabalho foi desenvolvido no projeto de extensão Fazendo Filosofia com Arte, da Universidade Federal de Pelotas, onde buscamos associar as pesquisas realizadas no grupo, com a aplicação prática, em oito encontros, na Escola Municipal de Educação Infantil Paulo Freire, localizada no bairro Dunas, em Pelotas. Tendo como fio condutor o desenvolvimento de atividades interdisciplinares, envolvendo basicamente: filosofia, música e expressão corporal, com uma turma de Pré-B. Através deste projeto trabalhamos a importância do uso da razão na vida cotidiana e dentro da sala de aula, por parte dos envolvidos, bem como o conceito de autoridade, seu aparecimento no diaa-dia da escola, família, amigos e etc. As atividades se desenvolviam de tal modo em que houvesse um trabalho corporal seguido de discussão e debate dos temas propostos. Os trabalhos corporais de expressão, relaxamento e alongamento, tinham como objetivo não só o bem-estar físico, como também um momento de interação, desinibição e descontração. Num primeiro momento, tivemos como tema norteador a presença da razão nos seres humanos e sua utilidade na vida dos mesmos, assim como também o princípio de autoridade presente na figura do professor. Num segundo momento, desenvolvemos atividades onde as crianças pudessem, gradualmente, participar da formulação das regras das brincadeiras, seguidas de um debate sobre a autoridade na sala de aula, dentro da instituição familiar e em outros locais. Relacionamos as regras das atividades com as regras da sala de aula e da vida, seguidas pelas crianças, de modo tal que elas ao discutirem sobre as atividades desenvolvidas, pudessem perceber as semelhanças com seus problemas diários. Durante os debates, buscamos desenvolver conversas dentro de um método de discussão proposto por Matthew Lipman, chamado comunidade de investigação. Ainda que tenhamos utilizado a idéia de comunidade de investigação aos moldes do pensador estadunidense, não seguimos seu programa tal como ele próprio recomenda, visto nossa discordância em alguns pontos, como a utilização, no seu método de educação para o pensar, de novelas filosóficas. Visto que nosso projeto acontecia no bairro Dunas, um bairro extremamente pobre, o contexto das novelas era extremamente diferente do contexto local das crianças, o que não criava nenhuma familiaridade entre os ouvintes e os personagens. Sendo assim, nosso

programa foi construído baseado no conceito de projeto didático (Hernandez, 2000) de forma que os encontros tinham seu objetivo específico, mas faziam parte de um objetivo maior, delimitado previamente. Nosso objetivo maior, ou melhor, nosso objetivo geral, se enquadra naquilo que popularmente é chamado de utopia, ou seja, buscamos com nosso trabalho contribuir na emancipação dos indivíduos, despertando ou auxiliando a despertar um senso crítico, capaz de perceber e interpretar o mundo e suas particularidades. Palavras-chave: arte, filosofia, interdisciplinaridade Este trabalho foi desenvolvido no projeto de extensão Fazendo Filosofia com Arte da Universidade Federal de Pelotas, com um grupo de alunos e professores que há três anos desenvolve pesquisas teóricas na área de interdisciplinaridade de arte e filosofia, bem como na área de filosofia com crianças. Desta forma, a partir de estudo teórico desenvolvido pelo conjunto do grupo, com elaboração de material didático, levantamento de bibliografia e análise de teorias pedagógicas, buscamos elaborar um projeto para o ensino interdisciplinar de arte e filosofia com crianças. Este projeto teve por objetivo aplicar o conjunto de conceitos e fundamentos teóricos estudados durante as pesquisas do grupo, enfatizadas no ensino interdisciplinar de arte e filosofia com crianças, na Escola Municipal de Educação Infantil Paulo Freire, localizada no bairro Dunas, em Pelotas-RS. Escola esta, que já havia nos recebido anteriormente num projeto semelhante. No projeto anterior, porém, trabalhamos especialmente música e filosofia. Já neste, incluímos a expressão corporal, pela sua importante contribuição no desenvolvimento motor e cognitivo, que - aliado à música e filosofia tornaram-se importantes ferramentas no desenvolvimento das crianças. Através de vivências musicais, teatrais e filosóficas, procuramos desenvolver ou identificar identidades, perceber-se como EU que produzo ou imito um determinado som ou expressão corporal, fazendo com que cada um sinta-se não só inserido, mas um ser participante do ambiente criado pelas atividades. A partir da construção de valores artísticos, as crianças desenvolvem, também, seu valor na vida e na sociedade. A música e o teatro auxiliam na construção do pensamento, servindo de motivação, estimulando áreas do cérebro, aumentando a criatividade, capacidade de concentração, propriocepção corporal, desinibição,

percepção e recuperação de informações (memória) que poderão ser percebidas e analisadas filosoficamente. Segundo Morin (2000), para uma compreensão artística mais abrangente, em seus múltiplos conceitos, deve haver uma reemergência do homem e da vida que foram desintegrados pela ciência clássica. Trabalhar para resgatar valores artísticos como a expressão e os sentidos que estão intrinsecamente ligados ao fortalecimento do sujeito humanista; além de valorizar a subjetividade humana e cada ser como único, constitui-se o eixo central da consciência ética, definindo assim seu próprio caminho em relação à criatividade e à compreensão da vida. De outro lado, o ponto de partida para o desenvolvimento de filosofia com crianças é o método de Matthew Lipman, a proposta de Educação para o Pensar, que busca trabalhar conceitos que levem as crianças a um melhor desempenho lógico, através de novelas filosóficas apropriadas a cada idade, que segundo o autor, cria sujeitos críticos diante da sociedade. Este método também nos diz que através da Filosofia o conhecimento vem à tona, que devemos conhecer a nós mesmos, e buscar qual é nosso objetivo de vida. Segundo Lipman, devemos ouvir atentamente, envolver as pessoas no diálogo e falar cuidadosamente. Porém, buscamos reformular alguns conceitos teórico-práticos de Matthew Lipman, e não utilizar suas novelas filosóficas, pois estas possuem personagens fictícios que estão inseridos em um contexto próprio, que pode ser totalmente inverso ao contexto da criança que participa de uma comunidade de investigação, que de fato acontecia no local onde desenvolvemos o projeto. Nossas críticas a Lipman não se resumem a isto, e ficarão mais claras na medida em que fizermos um breve histórico do autor e seu método. Matthew Lipman começa a desenvolver seu método após assistir os acontecimentos de maio de 1968 na França, onde ele define tais acontecimentos como uma clara demonstração de irracionalidade por parte dos universitários, então propõe um método onde, por meio do raciocínio lógico e coerente, possamos atingir um caráter moral capaz de solucionar problemas de marginalidade social. Para ele, nosso modelo educacional possui sérios problemas, porém isto não é um reflexo da forma como se organiza a sociedade, mas pelo contrário, os problemas da sociedade surgem em função da má educação, ou seja, Lipman não acredita na escola como um aparelho ideológico que mascara ou justifica a dominação (Althusser, 1998) e coopta o indivíduo para o reino da máquina de produção social (Guattari, 1985). Nas palavras dele: A educação tem que se reformular de modo tal que as condições socioeconômicas nunca possam

servir de desculpa para deficiências unicamente educacionais (Lipman, 1994). Dessa forma, dentro de sua metodologia devemos enfatizar como as crianças pensam, e não o quê, já que as regras do jogo já estão dadas, devemos estar preparados para jogar tal jogo, e não para questionar suas regras. Para ele o bom cidadão é como um jogador de futebol: Ele não se pergunta se aceita e obedece ou não às regras do jogo (isto é, as leis da instituição social de que participa). Isso é o que os torna minimamente competentes, mesmo que não sejam muito habilidosos (Lipman, 1990). E mais, para ele: A educação moral digna desse nome implica, necessariamente, familiarizar as crianças com o que a sociedade espera delas (Lipman, 1994). Assim, fomos desenvolvendo um método de arte e filosofia com crianças diferente do de Lipman, que a nosso ver não leva os indivíduos à autonomia, e não vê de forma correta a relação entre educação e sociedade. Já que o que Lipman entende por autonomia é pensarmos a partir do que está dado, ou seja, desenvolvermos um pensamento lógico e coerente, por nós mesmos, mas sem questionarmos as regras do jogo. Este sentido de autonomia vai de encontro não só ao sentido etimológico da palavra, mas também ao sentido que apresentaremos aqui dado por Cornelius Castoriadis. No sentido etimológico, um sujeito autônomo é um sujeito que vive segundo suas próprias leis, ou seja, um sujeito capaz de criar as suas leis, isso não exclui que o sujeito dê a si mesmo as mesmas leis que outros, ou até mesmo as mesmas leis que toda a sociedade utiliza, mas de forma alguma significa que devemos obedecer às regras do jogo sem um questionamento a elas. É a partir do sentido etimológico de autonomia que Castoriadis desenvolve seu próprio sentido de autonomia. Para ele um sujeito autônomo é um sujeito que questiona todas as instituições, ou seja, conjunto de ferramentas, da linguagem, dos métodos de fazer, das normas, valores (Castoriadis, 2006), tudo aquilo que nos impõe um jeito de agir ou pensar (Castoriadis, 2006), para que seguido do questionamento ele crie suas próprias instituições. Para Castoriadis não há problema em aceitar instituições já existentes, mas para que o sujeito seja de fato autônomo, ele deve no mínimo criticar e refletir sobre estas instituições para após isto aceitá-las. E ao contrário, a heteronomia para Castoriadis é quando todas as regras, leis e normas são aceitas sem questionamentos, e são inclusive inquestionáveis. Se aceitarmos a autonomia tal como Castoriadis define então devemos redefinir o que é e qual o papel da educação. Ela é muito mais do que uma elucidação que Castoriadis define como: trabalho de pensar o que se faz e saber o que se pensa (Castoriadis, 1995), ela é um constante

questionamento das instituições, para que possamos criar, inventar ou apenas aceitar novas ou velhas instituições. Nesse sentido fica claro a relação muito próxima entre educação, capacidade de questionar e criar instituições, e política, âmbito regido e formado por instituições. Assim afirma Hannah Arendt: em educação lidamos sempre com pessoas que não podem ainda ser admitidas na política e na igualdade, por estarem sendo preparadas para elas (Arendt, 1988), ou ainda Silvio Gallo: onde termina a educação começa a política: tal afirmação dá à educação o status de relação pré-política por excelência (Gallo, 1995). Nesse sentido os dois autores salientam a responsabilidade do educador ou de qualquer outro indivíduo que convive com crianças, pois se este indivíduo se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo (Arendt, 1988), então não deve tratar com crianças. A partir destas análises teóricas, e da experiência adquirida no projeto anterior, buscamos aliar as Artes, especialmente Teatro e Música à Filosofia e vice-versa, buscando a emancipação dos indivíduos, através de um pensar verdadeiramente autônomo e crítico. Assim, através deste projeto, trabalhamos a importância do uso da razão na vida cotidiana e dentro da sala de aula por parte das crianças envolvidas, bem como o conceito de autoridade, e sua relação na vida das crianças, seja no âmbito escolar ou no familiar e etc. Planejamos os oito encontros, com um projeto pedagógico geral, onde cada encontro foi uma evolução do anterior, buscando sempre o objetivo traçado preliminarmente. Dividimos ainda o cronograma em duas etapas, em que foram trabalhadas: primeiramente o uso (ou não) da razão pelos sujeitos pensantes, posteriormente o conceito de autoridade e sua aplicação prática, no cotidiano em geral, e no cotidiano escolar em especial. Cada encontro foi dividido em três momentos básicos, com objetivos prédeterminados. No primeiro momento fazia-se uma roda de apresentações, onde cada participante caminhava até o centro da roda e proferia seu nome olhando no olho de cada um da roda. Desta forma, podíamos nos conhecer e nos sentirmos à vontade com os outros, ou seja, nos tornávamos personagens ativos deste ambiente, desta comunidade. Neste mesmo momento, ainda foram feitos exercícios de relaxamento corporal e alongamentos, a fim de que estivéssemos prontos fisicamente para os exercícios posteriores. Este primeiro momento não tinha uma conexão direta com o tema que seria desenvolvido a seguir e eram exercícios geralmente repetidos a cada encontro. Feito isto, partíamos para a segunda etapa.

O segundo momento de cada encontro tinha uma ligação direta com o tema trabalhado no terceiro momento. Assim, ainda que em todos os encontros este momento fosse reservado ao trabalho corporal, de expressão e representação, ele era diferenciado. Neste contexto, à medida que o tema do dia fosse evoluindo, os próprios exercícios evoluíam conjuntamente. Este momento é a introdução da discussão, ou seja, é sempre a partir dele que se iniciam os debates e os questionamentos. O terceiro momento era o de discussão. Esta etapa era quando sentávamos em roda, com algumas regras básicas, estipuladas já no primeiro encontro, com a possibilidade de serem modificadas à medida que evoluíamos, para o bom andamento das conversas. Desse modo, cada um deveria respeitar a opinião do colega e sua vez de falar que era garantida por artifícios lúdicos, utilizados para garantir a organização da comunidade. Em alguns encontros utilizamos bolinhas coloridas, onde cada cor tinha uma função, por exemplo: a verde garantia a oportunidade da palavra (que era dada pela livre escolha do último portador da bolinha), a amarela dava a oportunidade do participante estipular as regras da atividade corporal e etc. Ainda utilizamos em alguns encontros um novelo de lã, em que cada criança que falava, segurava uma ponta da lã, e após sua fala, passava o novelo à diante de forma aleatória, criando assim um espécie de teia de pensamentos. Durante a discussão, questionávamos e éramos questionados sobre os assuntos trabalhados, buscando fomentar razões bem fundamentadas ou baseadas em fatos, construindo, desta forma, argumentos sólidos e convincentes. Isso era importante para despertar o senso crítico dos envolvidos, para que com o tempo, fossem capazes de discordar de argumentos mal formulados, bem como de darem opiniões imprecisas ou baseadas em sentimentos pessoais. Estes três momentos eram ferramentas para que conseguíssemos atingir o propósito individual de cada encontro e assim, seguirmos para o próximo tema. Cada tema era o passo para uma caminhada maior, sendo esta o conjunto dos oito encontros. De forma a melhor utilizar nosso tempo, dividimos os oito encontros em dois blocos de quatro. Nos primeiros quatro encontros discutimos sobre o uso (ou não) da razão. No primeiro encontro analisamos as diferenças entre os seres inanimados (objetos pessoais, objetos encontrados na sala e etc.) dos seres animados (pessoas, animais em geral e etc.). Dentre estas diferenças, construímos critérios para chegarmos à conclusão de que a princípio seres inanimados não possuem razão, ou seja, não pensam.

No segundo passo, tentamos perceber como se dá a evolução dos animais e a diferença entre os seres animados racionais e os animados irracionais. Assim, tentamos chegar a um critério que deixasse claro qual a diferença, por exemplo, entre um cachorro e um ser humano, por que um pensa e outro não. Com a discussão, concluímos que - apesar dos animais serem animados - não são racionais, já que agem por instinto e não são capazes de pesar razões; além de não desenvolverem diversas atividades possíveis aos humanos. O terceiro encontro foi em torno da tentativa de descobrirmos as diferenças ou não, entre os seres humanos, ou seja, entre os seres racionais. Buscamos aqui levantar questões não só sobre diferenças físicas, que são notadas facilmente, mas também sobre diferenças intelectuais, sentimentais e etc. O quarto encontro é um desdobramento direto do terceiro, visto que aqui buscamos abordar a possibilidade do uso da razão pelos seres humanos. Ou seja, tentamos questionar se o ser humano utiliza sempre a razão, se as paixões são motivadas racionalmente, bem como as artes e a violência. Concluída a primeira etapa do projeto e a tendo como pressuposto partimos para a segunda etapa. Nesta etapa tínhamos o conceito de autoridade como eixo central, mas sabendo que a autoridade é fruto de um ser humano racional, capaz de agir como tal. Para tal feito, começamos o quinto encontro tentando definir o próprio conceito de forma superficial, ou seja, utilizando como exemplo nossos trabalhos corporais, tentamos perceber quem fazia as regras, quem as obedecia e o porquê disto. No sexto encontro, já durante os exercícios de expressão corporal, fizemos uma variação de autoridade, isto é, ao invés de somente os orientadores proporem os exercícios, as próprias crianças começaram a propor os seus exercícios. No decorrer do tempo, discutimos sobre o papel da autoridade do professor e dos pais, quando essa é aceitável e quando entra no âmbito da violência. No sétimo encontro, após os exercícios, conversamos sobre a aula ideal, ou seja, aquilo que cada um considerava e esperava que fosse uma sala de aula ideal, perfeita. Dessa forma não só imaginamos, mas montamos, no espaço em que estávamos, a aula que eles acreditavam ser a melhor, ou seja, o que seria para eles, a aula ideal. Cada um foi um personagem, não só da aula perfeita, como da escola perfeita. Desta forma, todos foram por instantes alunos, professores, diretores e etc., podendo assim exercer todo o peso e autoridade de cada função. Infelizmente, o último encontro que foi planejado

para ser uma apresentação da escola ideal, não pôde ser realizado, em função de este ser o dia da formatura dos alunos. Durante todos os encontros notamos a crescente evolução dos processos no modo de formular questões e de buscar respostas, cada um com tempos diferentes, com seu próprio tempo e respeitando seus limites individuais, mas ainda assim, evoluções. Os alunos foram assimilando o modelo utilizado e foram aprendendo a respeitar a opinião e a experiência mostrada por cada colega, não como melhor ou pior, mas simplesmente como diferente. Perceberam com o tempo, que suas opiniões para serem bem compreendidas, deveriam ser fundamentadas em fatos, acontecimentos e outros meios, como a própria razão. Ainda assim trabalhamos conceitos presentes na tradição filosófica, como por exemplo: racionalidade e autoridade, mas utilizando uma linguagem diferenciada, que fosse apropriada para a idade das crianças com quem dialogávamos. E tendo em vista esta linguagem, percebemos que o estilo filosófico das crianças é próprio. Desta maneira elas fazem filosofia do seu jeito. Fazem de uma maneira bruta, onde falam exatamente o que pensam, sem desperdiçar palavras e cabe aos orientadores incentivar para que elas refinem sua linguagem e seus argumentos, para torná-los mais sólidos e compreensíveis. Nosso objetivo não era desenvolver uma filosofia complexa, baseada na tradição filosófica, ainda que como mostramos anteriormente, tenhamos trabalhado conceitos presentes na tradição, mas nosso objetivo era criar dentro deste espaço de discussão, um momento de crítica aos outros e a nós mesmos, onde os sujeitos envolvidos nesta comunidade dialógica construíssem uma concepção madura de si mesmos e soubessem, assim, relacionar seu eu com o mundo à sua volta; percebendo a importante função da razão em delimitar critérios, perceber abusos e, desta forma, ser uma ferramenta de libertação.

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