Sobre línguas, mundos, gêneros etc.



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Transcrição:

1 Texto publicado em Brunelli, A.F.; Mussalim, F.; Fonseca-Silva, M.C. (orgs) Língua, texto, sujeito e (inter)discurso. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013, p. 129-140. Sobre línguas, mundos, gêneros etc. José Borges Neto Sírio, espero que as minhas reflexões sejam, ao menos, úteis para que avancemos no debate sobre esse objeto, extremamente rico e complexo, ao qual dedicamos nossas vidas, que são as línguas naturais. Professor Sênior no Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pesquisador 1D do CNPq. E-mail: borges@ufpr.br.

2 1 Introdução Neste texto, vamos tratar de morfologia, de semântica, de discurso, dialogando inclusive com textos já publicados, para refletir sobre as relações entre as línguas naturais e o mundo e sobre a categoria gramatical dos gêneros. Antes, porém, de iniciarmos essa reflexão, gostaríamos de recuperar uma lição dada pelo Prof. Carlos Franchi num tempo em que um dos problemas dos linguistas (ao menos no Brasil) era a facilidade de rotular alguém a partir de uma ou outra afirmação marginal, no mais das vezes encontrada em algum de seus trabalhos. Como Franchi bem nos ensinou, em Linguística, envolver o empírico não é o mesmo que ser empirista; envolver estrutura não significa ser estruturalista; falar de história da língua (diacronia) não equivale a ser um historiador da língua; fazer comparações entre línguas não é o mesmo que ser um comparativista e fazer uma afirmação compatível com o positivismo não é ser positivista. Retomada essa lição, vamos começar tratando rapidamente das relações entre a língua natural e o mundo. 2 Língua e mundo: referência, ontologia etc. É questão pacífica entre os linguistas embora nem sempre entre os filósofos que a relação entre língua e realidade não é uma relação direta, transparente. As línguas não são mecanismos de etiquetamento dos objetos (indivíduos, eventos etc.) do mundo real. As línguas não são nomenclaturas que se sobrepõem a uma realidade existente independentemente. O linguista italiano Chierchia (1998) apresenta cinco razões para que uma distinção linguística deva ser considerada independente de fatos reais, independente da estrutura da matéria. A distinção linguística que ele usa

3 como exemplo se dá entre nomes comuns contáveis e nomes comuns massivos. Essa é uma distinção presente num grande número de línguas. Vejamos. Parte dos nomes comuns denota coisas do mundo que são percebidas pelos falantes como entidades discretas e que, portanto, podem ser contadas. O nome menino, por exemplo, é contável: podemos dizer um menino, três meninos, seis meninos etc. Um conjunto qualquer de meninos sempre pode ser relacionado a um número natural. Por outro lado, parte dos nomes denota coisas do mundo que são percebidas como massivas, não discretas, coisas que devem ser entendidas como não contáveis. Um bom exemplo é o nome água. Podemos dizer muita água, pouca água, mais água, mas não podemos dizer uma água ou três águas (se o dissermos, estaremos falando de outra coisa de tipos de água ou de garrafas de água, por exemplo). Como mostra Chierchia (1998), entidades que aparentemente existem em unidades semelhantes no mundo podem diferir, numa mesma língua, por serem consideradas massivas ou discretas: no inglês, rice ( arroz ) é massivo, e lentil ( lentilha ) é contável. No português, existe algo semelhante: podemos dizer caiu uma lentilha na toalha ou caíram lentilhas na toalha, mas devemos dizer caíram dois grãos de arroz na toalha (a forma caíram arrozes na toalha é, no mínimo, estranha). Logo, podemos concluir que também em português a denotação de arroz é tratada como massiva, enquanto a denotação de lentilha é discreta. Ainda, numa mesma língua, existem pares de sinônimos ou quasesinônimos em que um dos elementos do par é contável, e o outro massivo. Os exemplos de Chierchia (1998) são, entre outros, os seguintes pares do inglês: shoes/footwear ( sapatos/calçados ), coins/change ( moedas/troco ), rope/ropes ( corda/cordas ) e o seguinte par do holandês de meubel ( o móvel ) e het meubilair ( a mobília ). Note-se que, em português, enquanto podemos dizer duas cordas, indicando duas entidades distintas, podemos dizer também dois metros de corda, indicando quantidade de uma única entidade massiva.

4 Observemos a diferença de significado entre muita corda e muitas cordas. Aparentemente, a forma singular e a forma plural nos remetem a coisas distintas no mundo. Expressões contáveis em uma língua têm correspondentes massivos em outra. Como exemplo, podemos citar a constatação feita por um americano casado com uma brasileira: ele entrava com a esposa num supermercado, e ela dizia a maçã está bonita e ele se perguntava Qual delas?. Ela chegava em casa e dizia comprei um sapato, e ele se perguntava Por que só um, se ela não é perneta?. Há pares de sinônimos um contável e outro massivo que podem ter comportamentos diferentes em diferentes línguas. Por exemplo, em inglês, o par hair/hairs ( cabelo/cabelos ) corresponde, em italiano, ao par capello/capelli, mas enquanto em inglês é possível dizer I cut my hair (e não é possível dizer *I cut my hairs ), em italiano podemos dizer Mi sono tagliato i capelli (mas não podemos dizer *Mi sono tagliato lo capello ). Em português, por outro lado, podemos tanto dizer cortei meu cabelo quanto cortei meus cabelos. O último argumento de Chierchia (1998) diz respeito a certas línguas, como o chinês, por exemplo, que só apresentam nomes massivos. Os usos contáveis dos nomes dependem da presença de partículas classificadoras nas sentenças. Assim, por exemplo, o nome xiong (urso) é massivo. Para dizer três ursos (três indivíduos), é preciso acrescentar ao nome xiong o classificador zhi, resultando em san zhi xiong. Para dizer três grupos de ursos, acrescenta-se o classificador qún, resultando em san qún xiong. E para dizer três espécies de ursos, usa-se o classificador zhong, resultando em san zhong xiong. No português, a palavra grãos quando aplicada a arroz, por exemplo, que é uma palavra massiva, torna-a contável: grãos é um classificador. Em resumo, aparentemente, o mundo em que as expressões linguísticas se interpretam não parece corresponder ao menos inteiramente ao mundo real. As expressões linguísticas não parecem levar em consideração a estrutura da matéria para delimitar suas denotações.

5 É necessário distinguirmos metafísica de semântica. As teorias ontológicas, desenvolvidas por filósofos, são teorias sobre a natureza da realidade enquanto as teorias semânticas, desenvolvidas por linguistas (e também por alguns filósofos), são teorias da interpretação de expressões linguísticas (cf. ANDERSON, 2002). O realismo metafísico, por exemplo, é uma teoria que considera que os objetos do mundo existem por si, independentemente da atividade cognitiva de qualquer agente e que nossa experiência com o mundo tem esses objetos como sua causa imediata. O realismo semântico, por sua vez, assume que as expressões linguísticas significam, de alguma forma, esses objetos independentes. Em outras palavras, todos os enunciados sobre o mundo serão ditos verdadeiros ou falsos em função de como as coisas são em relação a objetos independentemente existentes, sem levar em consideração opiniões, crenças ou experiências de um agente cognitivo. Ora, é claramente possível manter o realismo metafísico e rejeitar o realismo semântico. É possível manter a existência de um mundo externo a nós, independente de nossa atividade cognitiva enquanto, simultaneamente, consideramos que nem todas as nossas expressões falam desse mundo. Por um lado, falamos de coisas que não existem (e que nunca existiram). Podemos falar de Prometeu, acorrentado no pico mais alto do Cáucaso, tendo seu fígado bicado por um abutre como castigo por ter entregado o fogo aos homens; podemos falar de Dom Quixote atacando moinhos de vento, ou de Gregor Samsa metamorfoseado num imenso inseto, e assim por diante, e sermos perfeitamente entendidos por nossos interlocutores. A sentença O unicórnio tem um único chifre na testa é obviamente verdadeira (em oposição à sentença o unicórnio tem três chifres na testa, que é falsa), no mundo da mitologia, apesar de os unicórnios não existirem no mundo do realista metafísico. Por outro lado, as expressões cristalizam certos modos de perceber as coisas e continuam a ser usadas mesmo quando esses modos de perceber não

6 mais são vigentes. Por exemplo, considerar que um indivíduo que diz O sol nasce no leste assume uma visão ptolomáica do universo é pura estupidez. Todos nós dizemos que o sol nasce no leste e se põe no oeste e, certamente, todos nós sabemos que é a terra que gira, e não o sol que se move. Procurar relações mais fortes entre os significados das expressões e a ontologia é tarefa fadada ao fracasso. É importante notarmos, também, que as denotações das expressões estão sujeitas a variação no tempo e no espaço. Os conjuntos de objetos do mundo recobertos pelas expressões linguísticas podem variar. Vejamos um episódio protagonizado pelo Prof. Carlos Franchi. Quando de sua ida à França com a família, nos anos 1970, as roupas seguiram numa grande caixa que, no pequeno apartamento em que eles residiram, passou a funcionar como mesa (era mesa, no contexto e para aqueles falantes). E passou a ser chamada de mesa por todo o tempo em que eles viveram lá. No dia em que deveriam voltar ao Brasil, feitas as malas e desocupado o apartamento, a esposa de Franchi solicitou: Carlos, jogue fora a caixa!. Sem a função (fora do contexto), a caixa que era mesa voltou a ser caixa. O estatuto linguístico daquele objeto objeto único e inalterado sofreu uma variação. A língua portuguesa tem servido, entre outras coisas, para representar o mundo desde o século XIII, ao menos. Embora possamos dizer que o português mudou muito nesses 800 anos (mudou na fonologia, na morfologia e na sintaxe), também podemos dizer que não mudou tanto quanto o mundo em que as expressões se interpretam. No século XIII, a Terra era o centro do universo; as crianças eram adultos em miniatura; as mulheres não tinham alma; as doenças eram causadas por humores ; as estrelas, o sol e a lua circulavam no céu e interferiam nos negócios humanos; a existência de Deus e de seu poder de intervenção nos assuntos humanos era inquestionável; etc. Hoje, o mundo é diferente. A Terra é apenas um pequeno planeta que circula uma pequena estrela na periferia de uma galáxia. O céu não é povoado só pelas estrelas, o sol e a lua, mas por uma série de diferentes corpos celestiais, alguns deles observados apenas

7 indiretamente, como os buracos negros. A lista dos seres vivos inclui vírus e bactérias. As constelações são relativizadas ao nosso ponto de vista: apenas um observador terrestre pode dizer que a constelação de Órion existe. Se antes o nome constelação designava uma entidade absoluta, hoje a palavra é usada para designar uma entidade relativa, que só existe se assumirmos um certo ponto de vista. A língua portuguesa, a despeito dessas mudanças, continua preenchendo suas funções como antes, e praticamente do mesmo modo. Em outras palavras, se assumirmos que o significado das expressões resulta da relação entre a expressão e um dado estado de coisas (ou uma entidade) no mundo, seria ingênuo pensar que as palavras possam ter um significado fixo, independentemente do tempo, dos falantes e dos contextos de uso. A palavra pode ser a mesma, mas o mundo em que ela se interpreta não é. A historicidade das línguas necessariamente nos leva a assumir a existência da variação semântica, junto com a variação fonológica, morfológica e sintática. E supor que as línguas variam semanticamente implica supor que a relação entre a língua e o mundo varia. Se as expressões não mudam, então o mundo deve mudar. Voltando ao nome constelação, podemos ver que a língua não mudou, mas que o mundo em que a expressão se interpreta mudou. É preciso ficar claro que não estamos afirmando que o nome constelação denotava a entidade x num tempo t 1 e que passou a denotar a entidade y num tempo t 2. O que estamos afirmando é que todas as expressões da língua portuguesa, no século XIII, eram interpretadas num mundo W 1, consistente e completo, e que as mesmas expressões são interpretadas num mundo W 2, no século XXI. Em outras palavras, o mundo relevante para o homem do século XIII não é o mundo relevante para o homem do século XXI, e as expressões verdadeiras para o homem do século XIII não são necessariamente verdadeiras para o homem do século XXI, embora a língua se mantenha basicamente a mesma 1. 1 Discordamos fortemente de Donald Davidson quando ele assume que a alteração nas interpretações das fórmulas nos coloca diante de outra língua. Esse entendimento não parece

8 Podemos admitir, juntamente com os realistas, que o mundo do século XIII estava construído com base em falsas crenças e que o desenvolvimento da ciência eliminou certas crenças e introduziu outras. Mas essa concessão não muda nada para a semântica. Nem permite concluir que agora possuímos a verdade sobre o mundo e que nossas crenças não mais serão mudadas. A idéia de que chegamos ao fim da história não passa de uma ilusão. Enfim, a hipótese de um isomorfismo entre língua e mundo é insustentável 2. 3 Gênero Passamos agora a discutir a questão do gênero, tal como colocada na gramática e na sociologia, nos chamados Estudos de Gênero. De início, vale lembrarmos que a palavra gênero deriva do latim genus, que significa tipo e não tem qualquer relação com a sexualidade. Aliás, é assim que a biologia usa o termo gênero : como um termo classificatório numa taxonomia, numa posição intermediária entre uma espécie e uma família. Os gêneros gramaticais são também entendidos assim: os gêneros gramaticais do português, por exemplo, dividem os nomes em dois grandes grupos e o critério que nos permite identificar se uma dada palavra pertence a um ou a outro grupo tem a ver apenas com o comportamento da palavra nos processos de concordância. Vejamos. Os nomes do português recebem artigos e adjetivos para, juntos, constituírem expressões que os linguistas chamam de sintagmas nominais (SN). Dadas algumas características dos nomes, os artigos e adjetivos sofrem algumas modificações para concordarem com eles. Uma dessas características é o número : se o nome é plural, os artigos e adjetivos assumem formas específicas de plural, se o nome é singular, artigos e adjetivos permanecem na forma básica (forma do singular). Outra característica é o gênero : a depender razoável nem mesmo para a grande maioria dos lógicos, que trabalha com interpretações em modelos. 2 Tudo isso parece uma obviedade para um analista do discurso. Mas é importante que um semanticista chegue a essa conclusão (de algum modo, tem mais peso).

9 do gênero do nome, os artigos e adjetivos sofrem modificações ou permanecem na forma básica. Como nosso interesse se prende ao gênero exclusivamente, vamos deixar de lado as questões referentes ao número daqui para frente 3. Numa escolha terminológica infeliz, o sofista Protágoras (480-410 a.c.) estabeleceu que os gêneros do grego eram o masculino, o feminino e o neutro, termos que foram incluídos nas primeiras gramáticas gregas, reproduzidos nas gramáticas latinas e, porque nelas fortemente baseadas, nas primeiras gramáticas do português. Nas gramáticas do português, logo se passou a usar uma classificação dos nomes em dois conjuntos e não em três, como na proposta original porque as palavras do português, no que respeita a concordância, só apresentam dois tipos de comportamento frente à concordância. Ficamos com os termos masculino e feminino para designar esses dois gêneros. Ora, não é difícil notar que gênero gramatical não está relacionado ao sexo, e tanto os linguistas quanto os gramáticos sabem disso. Se por um lado, podemos dizer que os indivíduos presentes na denotação do nome menino pertencem ao sexo masculino, como justificar que mesa, parede e espada sejam nomes femininos, enquanto sofá, teto e canhão sejam nomes masculinos? Há, em português, termos sinônimos (com a mesma ou quase a mesma denotação) em que um é masculino e o outro feminino: televisão (f.) e televisor (m.), língua (f.) e idioma (m.), lousa (f.) e quadro-negro (m.), por exemplo. Mais do que não estar relacionado ao sexo, é fácil percebemos que essa classificação em masculinos e femininos não diz respeito ao mundo. Tratase apenas de uma classificação com consequências internas à língua. Em português, garfo é masculino enquanto faca e colher são palavras femininas; em alemão colher (Der Löffel) é masculino, garfo (Die Gabel) é feminino e faca (Das Messer) é neutro. Se o gênero realmente estivesse relacionado às propriedades das coisas do mundo, isso não poderia acontecer. 3 As questões são essencialmente as mesmas, exceto quanto à aparente impossibilidade de uso ideológico das noções de singular e plural.

10 Antes de seguir adiante, é preciso justificar uma afirmação feita acima, de que artigos e adjetivos teriam formas básicas. Para tanto, vamos nos guiar, basicamente, pelo trabalho do linguista norte-americano John Martin, trabalho que consideramos definitivo sobre a questão do gênero gramatical no português. Segundo Martin (1975), os gêneros só existem porque existe a concordância. Numa língua em que não há concordância, não há porque estabelecer distinções de gênero. Pois bem, em português há concordância e, portanto, há gêneros. Pensemos na concordância. Nas frases a cerveja é ótima e o vinho é ótimo, é justamente o fato de cerveja ser uma palavra feminina e vinho uma palavra masculina o que determina que o artigo seja a ou o e que o adjetivo assuma a forma ótima ou ótimo. Notem que seria insólito procurar características de masculinidade ou feminilidade na cerveja ou no vinho, enquanto coisas do mundo, enquanto construções sociais ou enquanto objetos discursivos. A questão é sintática e apenas sintática. Mas e se substituirmos o sintagma a cerveja por uma expressão que não seja masculina nem feminina, isto é, que não seja construída socialmente ou discursivamente como masculina ou feminina? Pensemos numa sentença nominalizada como Beber uma cerveja. Não cremos que alguém tenha condições de dizer que essa sentença é masculina ou feminina 4. Claramente, os gêneros se aplicam a nomes e não a sentenças, mesmo se a sentença estiver nominalizada. Se criássemos uma sentença semelhante à sentença a cerveja é ótima, substituindo a cerveja pela nossa sentença nominalizada, teríamos Beber uma cerveja é ótimo e não *Beber uma cerveja é ótima. O que poderia estar acontecendo aqui? Aparentemente, por um lado, a presença da palavra cerveja não parece ser capaz de desencadear a concordância. Por outro lado, fica difícil justificar uma concordância com o 4 Tampouco poderíamos pensar que a sentença é do gênero neutro. Não é provável que alguém realmente tenha levantado essa possibilidade.

11 masculino porque, como vimos, a sentença Beber uma cerveja não parece ser masculina. A saída mais coerente e consistente parece ser assumir que a forma ótimo é uma forma sem concordância, uma espécie de forma neutra, default, que sempre aparecerá nas sentenças quando não houver nada que determine a concordância. E isso implica dizer que as formas masculinas dos artigos e dos adjetivos são, na verdade, formas básicas (formas sem concordância). Isso nos leva a entender os gêneros gramaticais da seguinte maneira: há dois tipos de nomes em português os que marcam artigos e adjetivos e os que não marcam. Há, em português, nomes que desencadeiam o processo de concordância e nomes que não o desencadeiam, em outras palavras. Assim, em a cerveja é ótima, o substantivo cerveja um substantivo marcante imprime marca de concordância no adjetivo, que assume a forma ótima. Nas sentenças o vinho é ótimo e beber uma cerveja é ótimo o adjetivo não recebe marca e fica na forma básica ótimo, já que os elementos em posição de desencadear a concordância não são marcantes. O fato de que os nomes marcantes sejam chamados de femininos (e que os não marcantes sejam chamados de masculinos) é apenas uma questão de escolhas terminológicas feitas em outras épocas e lugares, a partir de outra teoria das línguas, arbitrariamente e sem qualquer respaldo da realidade. Pois bem. Feita essa longa exposição de análise linguística, podemos passar a outro fato infeliz: o empréstimo do termo gênero pela sociologia para designar as relações entre homens e mulheres. Obviamente, a sociologia empresta o termo gênero da gramática já que, como vimos, o termo tal como usado pela biologia 5 tem sentido totalmente distinto. Mas empresta mal, uma vez que na gramática não obstante as etiquetas masculino e feminino gênero não está relacionado à sexualidade. 5 Ou no seu sentido etimológico, como aportuguesamento do genus latino.

12 Antes de seguir adiante, gostaríamos de deixar claro que entendemos que os estudos de gênero dos sociólogos, psicólogos e antropólogos têm seu devido lugar no conjunto dos estudos sérios e relevantes e que a questão das relações entre homens e mulheres merece ser objeto de estudos especializados. Mas nossa questão, neste momento, é linguística e nada mais do que isso. O que estamos afirmando com isso é que a escolha do termo foi infeliz e nossa preocupação reside mais em certas consequências dessa escolha do que nos nomes que se poderiam dar a essa nova área de estudos (todo linguista sabe, pelo menos desde a publicação, em 1916, do Curso de Linguística Geral de Saussure, que os signos são arbitrários). A primeira consequência funesta é o surgimento de uma teoria de que a língua seria machista. Essa teoria que antropomorfiza a língua e lhe atribui crenças e preconceitos resulta de um mau entendimento do funcionamento das línguas. Supor que é machista quem diz O homem surgiu na terra há seis milhões de anos, em lugar de dizer O homem e a mulher surgiram na terra há seis milhões de anos, equivale a dizer que quem afirma que o sol se põe no oeste ignora a revolução copernicana. Supõe que o como falamos revela o como pensamos. Supõe, também, que a estrutura da língua cria ou reflete a estrutura do mundo. Assume, enfim, o isomorfismo língua-mundo que já descartamos anteriormente. É interessante notarmos que o autor da primeira gramática da língua portuguesa, Fernão de Oliveira, no século XVI, já afirmava: A linguagem é figura do entendimento: e assi é verdade que a boca diz quanto lhe manda o coração e não outra cousa; antes não devia a natureza criar outro mais disforme monstro do que são aquelles que falam o que não têm na vontade. Porque se as obras são prova do homem, como diz a suma verdade Jesu Christo, nosso Deos, e as palavras são imagem das obras, segundo Diógenes Laércio escreve que dizia Sólon, sabedor da Grécia, cada hum fala como quem é: os bos falam virtudes e os maliciosos maldades; os religiosos pregam desprezos

13 do mundo e os cavaleiros blasonam suas façanhas. (OLIVEIRA, 1536 [2007, p. 83]) Se, hoje, não levamos a sério as afirmações de Fernão de Oliveira (alguém leva?), é um mistério que levemos a sério a teoria da língua sexista. A segunda consequência funesta surge do seguinte raciocínio: se a língua é machista, devemos alterar a língua. Obviamente sustentado pelo isomorfismo língua-mundo, esse raciocínio supõe que alterando o uso linguístico alteramos a sociedade e suas crenças. É daqui que surgem os novos pronomes do inglês, he/she ou s/he, a saudação cada vez mais frequente na academia brasileira: Boa noite a todos e a todas..., e assim por diante. Surgem até disparates como o que foi encontrado por um colega num folheto distribuído em academias de yoga, segundo o qual o termo history estaria relacionado ao pronome possessivo masculino his (algo como a história dele ), o que propiciaria, em contraponto, o surgimento de uma herstory. Não se trata de ignorar aqui o valor simbólico das palavras, nem dizer que as línguas até porque instrumentos usados por pessoas sejam completamente inocentes. Trata-se apenas de destacar equívocos e exageros. Há efetivamente conflitos ligados à sexualidade. Infelizmente, não estão na língua, estão no mundo. Se os conflitos fossem, de fato, apenas linguísticos, as coisas seriam muito mais fáceis. É possível até que os estudos de gênero sequer teriam surgido. 4 Gênero como conceito discursivo? É interessante notarmos que os estudos de gênero redefinem a palavra e revelam conhecer, em parte ao menos, as questões levantadas anteriormente. O conceito de gênero deixa de se sobrepor ao conceito de sexo e passa a ser relacionado a questões de identidade. Ser homem ou mulher deixa de ser uma questão biológica e passa a ser uma questão de características atribuídas

14 socialmente a cada um. Ao invés de termos uma conceituação biológica de masculinidade e feminilidade, passamos a ter uma conceituação social. Devemos perceber, no entanto, que essa alteração, de fato, não altera nada. E isso porque esse novo estatuto das relações de gênero (visto como construção social) apenas substitui o biológico. E, nessa nova forma da relação, continua-se supondo que há um isomorfismo entre o mundo e a língua. O mundo não é mais o mundo do realista ontológico; o mundo assumido agora é o mundo do antirrealista, social e discursivamente construído. Mas o papel da língua, seu pretenso machismo, a necessidade de torná-la politicamente correta, tudo permanece igual. Ou seja, o pecado original, o equívoco terminológico, a identificação dos conceitos com base exclusiva na identificação das palavras, o isomorfismo língua/mundo ainda permanecem assombrando os falantes. REFERÊNCIAS ANDERSON, D. L. Why God is not a Semantic Realist. In Alston, W.P. (ed.) Realism and Antirealism. Ithaca: Cornell University Press, 2002. p. 131-146. CHIERCHIA, G. Reference to Kinds across languages. Natural Language Semantics, n. 6, p. 339-405, 1998. MARTIN, J. Gênero? Revista Brasileira de Linguística, v.2, n.1, p. 3-8, 1975. Disponível em: http://people.ufpr.br/~borges/diversos/publicacoes.html). OLIVEIRA, F. Gramática da Linguagem Portuguesa. Edição crítica, semidiplomática e anastática por Amadeu Torres e Carlos Assunção, Vila Real: UTAD, 2007. Edição original: 1536.