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Transcrição:

2.1.2 Teatro Polytheama de Jundiaí Durante o último século, muitas vezes a idéia de manter a memória da cidade brasileira e sua cultura por meio da arquitetura foi praticamente ignorada. Sem o incentivo do poder público, com a ganância do mercado imobiliário e o consentimento de parte da população, inúmeros antigos edifícios de importância histórica foram desaparecendo. Esse quadro gradualmente tem se modificado. Entre os edifícios restaurados e revitalizados no Brasil, destacam-se os teatros, um tipo de construção disseminado nas capitais e cidades médias desde o século XIX, com importantes exemplares remanescentes, identificados com a vida cultural e a memória das comunidades locais, mesmo após períodos de abandono. No que se refere à recuperação desse patrimônio, um caso exemplar concerne a restauração do Teatro Polytheama de Jundiaí, cidade situada no interior do Estado de São Paulo. Realizada pela equipe Brasil Arquitetura a partir de conceitos estabelecidos juntamente com Lina Bo Bardi, mostra o potencial desse tipo de iniciativa (PROJETO DESIGN, 1997). O Teatro Polytheama, destinado a vários tipos de espetáculo - pois tem em sua própria denominação o significado de POLY = muito em Latim e THEAMA = Espetáculo em Grego - foi inaugurado em 1911. Mesmo afastado do centro de Jundiaí, durante mais de meio século foi o centro de diversões da cidade, abrigando peças teatrais, variedades, sessões de cinema e funções circenses. Nesse período, o teatro passou por algumas reformas significativas. A primeira ocorreu entre 1927 e 1928, quando deixou de ser um simples galpão para se tornar um cine-teatro com elaborada fachada de arquitetura eclética. Na segunda reforma, no final da década de 71

1940, criou-se uma nova decoração interior, ampliou-se a sala de espera e instalou-se uma bombonnière. A terceira reforma ocorreu nos anos 1960, quando o teatro perdeu oito frisas e oito camarotes, ficando com aproximadamente 250 lugares a menos e permanecendo assim até o seu fechamento no final da década de 1960 (PROJETO DESIGN, 1997). Figuras 01 e 02: Fachada e área interna nos anos 1970, antes da restauração. Fonte: Francisco Fanucci, Marcelo Ferraz: Brasil Arquitetura, 2005, p. 33. Figura 03: Fachada restaurada após restauração. Fonte: Francisco Fanucci, Marcelo Ferraz: Brasil Arquitetura, 2005, p. 33. 72

Figura 04: Fundos do teatro, onde o projeto de restauro prevê a construção do anexo (não executado). Fonte: Francisco Fanucci, Marcelo Ferraz: Brasil Arquitetura, 2005, p. 34. Após todas as transformações por que passou e, estando o edifício abandonado desde 1968, a municipalidade solicitou em 1985 um projeto de recuperação à arquiteta Lina Bo Bardi. Mas somente em 1995, após a morte de Lina, seus antigos colaboradores Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci, agora reunidos no escritório Brasil Arquitetura, desenvolveram, a partir dos conceitos elaborados juntamente com ela e André Vainer em 1986, o projeto de restauro do edifício para 73

que o mesmo voltasse a ser utilizado com as atualizações necessárias para o novo (PROJETO DESIGN, 1997). Os princípios de restauração propostos por Lina Bo Bardi foram baseados em algumas reflexões e conceitos. Como se tratava de um teatro polivalente, tinha a função de abrigar diversos tipos de espetáculos, algo que deveria permanecer como idéia central. O restauro devia trazer uma preocupação ampla sobre o significado do edifício na vida cultural da cidade. Internamente, os ornamentos remanescentes eram poucos, e considerou-se que não valeria a pena conservá-los. Por outro lado, elementos construtivos como a alvenaria em tijolos e a fina estrutura metálica da cobertura foram considerados não apenas dignos de conservação, mas componentes essenciais a serem destacados no projeto. O partido arquitetônico originalmente adotado partiu de reuniões e debates com a sociedade local, quando chegaram a ser propostas várias vontades e necessidades, das quais algumas foram aproveitadas e outras descartadas para se chegar ao projeto final. Apenas restaurar o teatro abandonado desde 1968 não seria suficiente, pois o espaço da construção existente já não comportava mais um equipamento adequado à realidade atual. Previu-se então o aproveitamento do terreno ao lado, mas quando em 1995 Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci, da Brasil Arquitetura, assumiram definitivamente o projeto e a obra, este foi revisto para caber no lote original, somente seria aproveitado o recuo lateral existente entre a fachada e o muro de divisa para a construção de uma galeria e uma caixa de escada. A expansão que foi proposta (e não executada) continha a construção do edifício em anexo, que ficaria abaixo do nível do palco, atrás do edifício existente, pois desta maneira não prejudicaria sua perspectiva e volumetria. Seria distribuído em quatro andares, com 74

oficinas, depósitos, administração, sala de ensaios e restaurante (SANTOS, In: FANUCCI, 2005, p. 32) Figura 05: Estudos do edifício em anexo que seria construído no terreno vizinho e que ficaria em nível abaixo do existente para não interferir no volume existente. Fonte: Francisco Fanucci, Marcelo Ferraz: Brasil Arquitetura, 2005, p. 34. Figura 06: Croqui com corte longitudinal do teatro e do anexo projetado, não executado. Fonte: Revista Projeto Design, Julho 1997, pp. 34-35. 75

Figura 07: Croqui do corte transversal da proposta. Fonte: Revista Projeto Design, Julho 1997, p. 33. Figura 08: Interior da galeria de exposições, 1996 e Figura 09: Novo hall, criado a partir da demolição de dois pavimentos, 1996. Fonte: Revista Projeto Design, Julho 1997, p. 35. 76

Figura 10: Vista do palco e Figura 11: Vista do palco para o público. Fonte: Revista Projeto Design, Julho 1997, p.37 e p.36. Basicamente os espaços são resolvidos por meio da ousadia e da busca do essencial, mas esse essencial não quer dizer mínimo e sim equilíbrio, critério e alma. Cobriram-se os recuos laterais do lote para abrigar a circulação e os sanitários. Nas paredes novas foi usado o concreto, que é um material novo, diferente da alvenaria de tijolos existente. No foyer, totalmente refeito, nas escadas (que eram de madeira e foram substituídas por concreto) e nas passarelas também foi usado o concreto aparente. A madeira utilizada foi o pau-marfim, as paredes foram pintadas em azul, as portas dos camarotes e frisas, em prata; em todos os locais que necessitavam de material acústico, este foi instalado por baixo dos materiais aparentes. A fachada original de 1927 foi restaurada e pintada de branco; sua marquise metálica, recuperada. Sobre a platéia foi instalado um lustre/escultura com 365 peças em cristal do artista J. Roberto Aguilar. Uma grande cortina de veludo vermelho foi colocada cobrindo toda a boca de cena, que tinha sido ampliada em 1928, pois a boca de cena da época da construção (1911) era muito pequena e não deixava o teatro cumprir todas suas funções (PROJETO DESIGN, 1997). 77

Figura 12: Projeto de intervenção. Fonte: Francisco Fanucci, Marcelo Ferraz: Brasil Arquitetura, 2005, p. 37. Infelizmente o edifício de apoio previsto nos fundos não foi executado. Mesmo assim o teatro passou a funcionar e tornou-se um marco da paisagem urbana e cultural de Jundiaí. Segundo Cecília Rodrigues dos Santos, Lina pretendia resgatar a alma popular e polivalente da edificação, que deveria receber todo tipo de espetáculo, tanto manifestações eruditas como populares (SANTOS, In: FANUCCI, 2005, p. 32). Entretanto, o tratamento aplicado pela Brasil Arquitetura configurou um espaço nobre, marcado por materiais como pau-marfim, veludo e cristal, caracterizando um equipamento de alto padrão oferecido à cidade. Até os materiais 78

mais brutos, como o concreto aparente e os pisos em pedra, são de execução cuidadosa. A pintura branca da fachada minimiza a presença da ornamentação original, como uma lembrança discreta da herança eclética do edifício. Nesse sentido, a intervenção se afasta da prática adotada em outras restaurações recentes de prédios ecléticos, nas quais os adornos e a riqueza da fachada são pontos de destaque. A edificação primitiva transparece muito mais nos elementos construtivos: as paredes em alvenaria de tijolos, visíveis nos corredores laterais, de acesso à platéia, ao balcão e aos camarotes, e a estrutura do telhado, em tesouras de treliça metálica. Lina parece nos lembrar que o espírito do teatro estaria muito mais na sua utilização pela população da cidade, e em sua execução, entre artesanal e industrial, do que nos requintes da ornamentação anteriormente existente. Já o detalhamento aplicado por Ferraz e Fanucci procura realçar a qualidade e o conforto, enquanto itens que devem ser proporcionados a todo tipo de público, mas realizados de maneira resolutamente contemporânea. De um modo geral a intervenção no Teatro Polytheama de Jundiaí se destaca por não se prender a uma postura de restauro preocupada em recuperar a antiga ambientação, e adota um partido claramente moderno, encaixando, por dentro e por fora do edifício existente, uma realidade essencialmente nova. O uso polivalente permanece e cria o principal laço entre o teatro atual e o anterior, mantendo sua presença central na vida cultural da cidade. Nessa perspectiva, seria o próprio uso do teatro que garantiria a continuidade histórica e conservaria a memória associada pela comunidade ao edifício, mais do que a preservação de elementos ou ambientes específicos. Configura-se, portanto, um caso exemplar, no qual a permanência do uso adquire um papel central na concepção da intervenção e no resultado da reciclagem. 79

2.2 Hotéis: O Riviera em Havana e o Complexo do Barreiro em Araxá 2.2.1 Hotel Riviera em Havana Figura 01: Vista do hotel e orla (atual). Fonte:<www.tripadvisor.es/hotel_review-g147271-d/51400-reviews-havan_riviera-havana_ cuba.html>. Acesso: 19.12.06. Um dos casos mais interessantes envolvendo a recuperação de um hotel caracterizado pela arquitetura modernista ocorreu em Havana, Cuba, no Hotel Riviera, localizado no Malecón, bairro de Vedado, em frente ao mar do Caribe. Construído nos anos 1950, antes da revolução cubana, quando a ilha ainda era uma das destinações turísticas preferidas do público norte-americano, havia sido um dos ícones da época; confiscado pelo governo revolucionário, manteve praticamente intactos sua decoração e seus elementos arquitetônicos até o momento em que, na década de 1990, o turismo voltou a ser prioridade do governo cubano e o edifício passou ao controle do grupo Gran Caribe, que o transformou num moderno hotel de quatro estrelas, mantendo, recuperando e valorizando os elementos de época. 80

Figura 02: Vista do hotel e piscina (atual). Fonte:<www.emporis.com/en/ wn/bu/?id=hotelhabanarivierahabana-cuba> Acesso: 19.12.06. Figura 03: Entrada do Hotel recém-inaugurado. Fonte: Arquivo da Biblioteca da FAU / USP. Figura 04: Vista da varanda do hotel na época da construção. Fonte: Arquivo da Biblioteca da FAU / USP. A idéia do hotel nasceu a partir do plano diretor encomendado pelo ditador Fulgencio Batista através da Junta Nacional de Planejamento criada em 1955. 81

Também em 1955 foi criada a Direção Nacional de Urbanismo e na seqüência foi contratada a Town Planning Associates de Nova York para investigar durante três anos as questões relacionadas à economia, demografia, clima e topografia da região. O comando deste trabalho ficou a cargo do arquiteto cubano Mario Romañach e equipe. Um dos objetivos dessa iniciativa era ordenar o desenvolvimento turístico previsto em Havana, Varadero, Cojímar e na Ilha de Pinos, diretamente ligado à entrada de capital mafioso vindo dos Estados Unidos. Chefes da Máfia como Meyer Lansky e Santos Traficante chegaram a investir nos hotéis Havana Riviera e Capri, respectivamente, com o objetivo de converter a cidade de Havana numa espécie de Las Vegas do Caribe. (In: <http://www.vitruvius. com.br/entrevista/coyula/coyula_2.asp>. Acesso em 19.12.06) O desenvolvimento do turismo no segundo pós-guerra atingiu também a área do Caribe, com crescimento significativo a partir de 1951. Cuba ocupou nesse período o primeiro lugar na região como país receptor de turismo, e em 1957 teve seu pico em termos de recepção de turistas estrangeiros, com o total de 272.265 visitantes. Aproximadamente 85% destes vinham dos Estados Unidos, evidenciando o peso político e econômico da presença norte-americana na Ilha. Na década de 1950 foram ampliadas e remodeladas algumas instalações já existentes e construídos 25 novos hotéis, com capacidade de aproximadamente três mil quartos. Muitos destes hotéis foram projetados por arquitetos norte-americanos e inaugurados entre 1957 e 1958. Em Havana, a localização preferida era o bairro El Vedado, entre o centro histórico e a área residencial nobre de Miramar. (In: <http://arch.cubaencuentro.com/ arquitectura/ 2003/01/24/8936.html>. Acesso em 19.12.06.) Segundo o urbanista Mario González, o projeto para o Hotel Riviera havia sido inicialmente encomendado por Lansky ao arquiteto Philip Johnson, que apresentou 82

uma sóbria maquete em branco e preto do edifício e, em sua explicação, enfatizou o cuidado que havia tido com as proporções. Lansky gostou do projeto, mas pediu que fossem adicionados mais andares para tornar o negócio mais rentável. Johnson não aceitou e teria exclamado: Cavalheiros, por favor, não sejam vulgares! Pensem nas proporções! tendo em seguida abandonado a reunião. (In: <http://www.vitruvius. com.br/entrevista/coyula/coyula_2.asp>. Acesso em 19.12.06.) Figura 05: Vista da entrada do hotel. Figura 06: Vista do hotel. Fonte: <www.tripadvisor.es/hotel_ Fonte: <www.tripadvisor.es/hotel_ Review-g147271-d/51400-reviews- review-g147271-d/51400-reviews- Havan_riviera_cuba.html> havan_riviera_cuba.html> Acesso: 19.12.06. Acesso: 19.12.06. O projeto foi assumido por outro Johnson, que tinha sociedade com o arquiteto Polevitzky, com grande experiência na construção de hotéis na Florida. A equipe também era composta por profissionais cubanos como os arquitetos Gastón e Carrera e os engenheiros Saenz, Cancio e Martin. Podemos então atribuir aos dois escritórios (Johnson & Polevitzky, Gastón e Carrera) a autoria do edifício. O Hotel Riviera procurou reproduzir o ambiente dos melhores hotéis de Miami. Inaugurado em 1958, o edifício de dezoito andares e arquitetura moderna ganhou um marcante perfil em lâmina, articulada por dois planos em ângulo aberto, com lajes que 83

se projetam, marcando horizontalmente a fachada e formando terraços curvos nas laterais. Os quartos possuem grandes janelas que tiram partido da vista para o mar. O coroamento é realçado por um volume de perfil quadrangular com estrias horizontais e o logotipo do hotel, e as áreas de lazer no térreo culminam numa grande piscina com plataformas para mergulho. Ao lado da piscina e nas áreas comuns destacam-se as esculturas do premiado artista cubano Florencio Gelabert, que, além de elaborar esculturas para certos edifícios, também se tornou conhecido por suas intervenções esculturais para fachadas. Em 1957, criou seis obras para fazer parte do Hotel Havana Riviera (In:<http://www.galeriacubarte.cult.cu/g_artista.php?item=77&lang =sp>. Acesso em 19.12.06). Figura 07: Vista noturna. Figura 08: Escultura da piscina de Florencio Gelabert. Fonte: <www.cubahotelreservation.com/ Fonte:<www.galeriacubarte.cult.cu/g-obras.php? hotel.asphotel _code=sctgchavanar> &autor=77&lang=sp> Acesso: 19.12.06. Acesso: 19.12.06. Quando o regime comunista decidiu reabrir Cuba ao turismo, nos anos 1990, o hotel encontrava-se com uma configuração muito próxima à da época em que havia sido construído, devido ao país ter ficado fechado por muitos anos aos investimentos na área hoteleira e imobiliária. 84

Naquele momento, a concessão foi passada ao grupo hoteleiro de capital espanhol Gran Caribe, que decidiu aproveitar a marcante decoração de época como um dos pontos de venda do hotel. A sala de estar principal foi restaurada para poder conservar o estilo dos anos 1950. Denominada "Copa Room", possui esculturas do artista Florencio Gelabert e valiosos trabalhos em madeira. Os jardins, a piscina e a entrada também mantiveram o estilo modernista original (In: <http://www. cubastartravel.com/es/hoteles/hoteles_ciudad/hoteles_riviera.htm#hotelriviera>. Acesso em 19.12.06). Figura 09: Bar c/vista para o mar (atual). Figura 10: Hall de Entrada (atual). Fonte:<www.hotelshabana.com/ Fonte: <www.havanatur.it/soggiorni/la%20habana/ images/art/hotel-riviera-salon.jpg> ImagensN/ habana_riviera_6.jpg> Acesso: 19.12.06. Acesso: 19.12.06. Junto com os hotéis Capri e Hilton, construídos na mesma época, o Riviera tornou-se um elemento marcante da paisagem urbana de Havana, não apenas transmitindo uma impressão de modernidade, mas identificando a cidade como um pólo de turismo e lazer. Essa imagem de Cuba como paraíso tropical, voltado ao deleite de visitantes endinheirados, foi drasticamente revertida após a revolução de 1959 a qual, não obstante, manteve quase inalterados os interiores do Riviera. 85

No momento em que o turismo voltou a ser prioridade de governo, paradoxalmente, a imagem vendida nos anos 1950 ganhou novo interesse. Nesse sentido, além do clima tropical, a rica herança histórica e arquitetônica cubana, da época colonial ao período revolucionário, passou a ser considerada como elemento de atração para investidores e visitantes. Mas a atitude em face do Riviera não pode deixar de ser ambígua, pois envolvia um dos maiores símbolos da dominação norteamericana, ligado à Máfia e ao odiado regime Batista. De certa maneira, o mesmo uso hoteleiro antes associado à exploração e ao imperialismo hoje precisa ser assumido como prioridade pelo governo socialista, assim como uma arquitetura hoteleira evocando Miami pode passar a ser considerada como parte importante do patrimônio histórico modernista local. Contudo, o caso do Riviera transcende a realidade cubana, na medida em que demonstra como, num hotel dos anos 1950, os elementos arquitetônicos e decorativos de época podem ser encarados como um valor a ser preservado, e mesmo como um ponto de venda valorizando o empreendimento. Tradição e permanência sempre foram itens destacados na propaganda da indústria hoteleira; a reciclagem com permanência de uso, nesses casos, pode então se pautar não apenas pela modernização das instalações, mas pela preservação, recuperação e valorização dos elementos de arte e arquitetura moderna presentes na fachada, no ingresso e nas áreas comuns do hotel. Embora recente, o legado modernista merece o mesmo cuidado dedicado aos demais itens patrimoniais, e não é incompatível com a hotelaria contemporânea. 86

Figura 11: Propaganda de bombas da época. Fonte: Arquitectura n 293, dezembro de 1957, p. 614. 87

Figura 12: Propaganda de equipamentos sanitários da época. Fonte: Arquitectura n 293, dezembro de 1957, p. 597. 88