Segurança dos pacientes, profissionais e organizações: um novo padrão de assistência à saúde*

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artigo original Segurança dos pacientes, profissionais e organizações: um novo padrão de assistência à saúde* Patient, professional, and organization safety: a new Healthcare Standard RESUMO O autor tece considerações sobre o conceito de segurança do paciente e suas implicações para os pacientes, profissionais e organizações. Destaca a importância de substituir a cultura da culpa e castigo pela cultura da aprendizagem a partir da identificação e análise das falhas e acidentes. Apresenta algumas medidas de segurança já disponíveis e dá ênfase à aplicação do protocolo universal que previne, no caso das cirurgias/procedimentos invasivos, local errado, cirurgia/procedimento errado e paciente errado. Menciona a acreditação de organizações de saúde como uma estratégia global de redução de risco para os clientes/pacientes. ABSTRACT The author considers the concept of patient safety and its implications for the patients, professionals and organizations. He points to the relevance of identifying errors and accidents as means of learning instead of using them to foster a culture of guilt and punishment. He presents some patient safety measurements already available and emphasizes the application of the universal protocol to prevent wrong surgery/ invasive procedures in the wrong site and in the wrong patient. Mention is made to the accreditation of healthcare organizations as a global strategy to reduce risk to clients/patients. Antonio Quinto Neto 1 Palavras-chave Gerenciamento da segurança. Prevenção de acidentes. Assistência à saúde. Keywords Safety management. Accident prevention. Healthcare delivery. Conflito de interesse: nenhum declarado. Financiador ou fontes de fomento: nenhum declarado. Data de recebimento do artigo: 16/10/2006. Data da aprovação: 8/1/2007. INTRODUÇÃO Os profissionais de saúde, por natureza, esforçam-se em proporcionar a melhor assistência possível. Este comportamento, entretanto, não impede que ocorram falhas e acidentes devidos à assistência prestada aos clientes/pacientes, o que se contradiz com a idéia de perfeição na assistência médica. O compromisso e a disposição individual de fazer o bem e utilizar o melhor do conhecimento se constituem em fatores essenciais do cuidado, porém na atualidade insuficientes para garantir uma assistência segura e eficaz. A forma de manter uma aura de perfeição na assistência à saúde baseouse numa cultura centrada no indivíduo, balizada por dois componentes indissociáveis: culpa e castigo. A crença era de que as recriminações e punições promoviam melhorias na assistência, ou seja, impediam ou reduziam a ocor- * Conferência proferida no 15 o Encontro de Enfermagem da Região Sul Enfsul, Hospital de Clínicas de Porto Alegre, 17 a 19 de julho de 2006. 1. Médico, Mestre em Administração, especialista em avaliação de sistemas e serviços de saúde, docente de vários cursos de pós-graduação em gestão de saúde, Diretor Superintendente do Hospital Banco de Olhos de Porto Alegre, RS. Endereço eletrônico: quintoneto@terra.com.br RAS _ Vol. 8, N o 33 Out-Dez, 2006 153

rência de eventos adversos no futuro. Mais recentemente, o que se tem observado, entretanto, é que os profissionais, temendo represálias diante da descoberta de suas falhas e acidentes, omitem e ocultam as mesmas, ou, quando identificados, buscam livrar-se do pesado encargo que, não raro, cria uma cadeia de censuras que em nada contribui para o entendimento do que houve. Enquanto os profissionais e suas instituições corporativas seguem a concepção da culpa e castigo, as organizações de saúde trilham o caminho da isenção de responsabilidade. Assim, tanto um quanto o outro, atuam baseados em um referencial de autodefesa em que a conduta é, via de regra, reativa às falhas e acidentes associados aos cuidados assistenciais. O propósito deste trabalho é mostrar como as falhas e acidentes fazem parte do cotidiano da assistência à saúde e a necessidade de substituir o enfoque da culpa e castigo pela abordagem da aprendizagem que identifica, analisa e propõe melhorias para reduzir ou impedir a ocorrência de eventos adversos evitáveis. ALGUNS CONCEITOS BÁSICOS Existem eventos assistenciais que podem causam ou têm o potencial de causar dano. Os prejuízos associados à assistência à saúde são aqueles que decorrem de processos ou estruturas da assistência, e não das condições do paciente (1). Vale a pena esclarecer alguns conceitos essenciais para o entendimento da ciência da segurança do paciente. Segurança do paciente: é a redução e mitigação de atos não seguros dentro do sistema de assistência à saúde, assim como a utilização de boas práticas para alcançar resultados ótimos para o paciente (2). Evento adverso (resultado ruim da assistência): é uma ocorrência que acontece durante a assistência à saúde e que pode resultar em injúria, dano físico ou psicológico para o paciente, ou dano para a missão da organização (2). Evento sem dano: é um evento que ao acontecer não resulta em dano real, embora o potencial para o dano possa estar presente. A falta do dano pode ser devida a uma robusta fisiologia humana ou pura sorte (2). Quase-acidente: é um evento em que as conseqüências indesejáveis foram revertidas porque se descobriu com antecedência e se corrigiu a falha, planejada ou não planejada (3). EPIDEMIOLOGIA DE INCIDENTES As falhas e acidentes devidos à assistência à saúde são de tal magnitude que, anedoticamente, em um grupo de amigos sem demora qualquer um identifica alguém ou um parente próximo que já foi vitimado pela assistência recebida em algum serviço de saúde. No entanto, o que estabeleceu um divisor de águas no assunto foi a publicação do relatório Errar é Humano (1). Ele expôs o tema com toda a crueza através de dados, o que provocou a ira de alguns, mas estimulou positivamente vários segmentos a repensarem formas de atuação e retomarem a discussão das falhas e acidentes assistenciais de uma forma proativa, qual seja, a de considerar a segurança do paciente como um novo campo de estudo em que se deveria desenvolver esforços no sentido de tornar a assistência mais segura (4). As falhas e acidentes na assistência à saúde não são nem raros nem intratáveis (5). Os profissionais das organizações de saúde, entretanto, têm subestimado estes fenômenos nas intervenções assistenciais, seja por temor ou por tentar preservar a imagem de que não se erra na assistência à saúde. O Estudo Médico de Harvard mostrou que sérios prejuízos iatrogênicos haviam ocorrido em 3,7% das internações (6). Com base nestes resultados, estimou-se que os danos haviam contribuído para a ocorrência de 180.000 óbitos por ano nos Estados Unidos (7). Isto é quatro vezes superior ao número de mortes por acidentes de tráfego. As injúrias médicas não fatais que resultaram em incapacidade ou prolongada permanência hospitalar ocorreram em 1,3 milhão de pacientes nos Estados Unidos por ano (7). Mesmo tendo em conta que médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde, por um compromisso profissional, conscientemente esforcem-se para evitar enganos, verificou-se que 2/3 das injúrias assistenciais seriam preveníveis no padrão prevalente da assistência atual (7). O Relatório do Instituto de Medicina (1) identificou que 7% dos pacientes eram acometidos por erros de medicação quando se encontravam internados. Nas Unidades de Terapia Intensiva, áreas de alto risco para falhas e acidentes, notou-se que 17% dos pacientes sofriam de algum evento adverso sério. Os fatos relatados indicam a magnitude e a relevância das falhas e acidentes na assistência à saúde, e a necessidade de atenção para os complexos processos assistenciais que constituem o cerne do cuidado aos clientes/pacientes. 154 RAS _ Vol. 8, N o 33 Out-Dez, 2006

ANTECEDENTES QUE DIFICULTAM A IMPLANTAÇÃO DE UMA CULTURA DA SEGURANÇA DO PACIENTE A conservadora autonomia do médico e o modelo artesanal da assistência, faces de uma mesma moeda, constituem-se em poderosas barreiras para a melhoria da segurança do paciente. Médicos e outros profissionais de saúde, por muito tempo, foram treinados para atuar, preferencialmente, sozinhos. Os hospitais, por exemplo, eram utilizados apenas como locais onde médicos independentes aplicavam técnicas em seus pacientes. Os médicos, em particular, sentiam-se independentes do hospital e de sua estrutura organizacional. Além do mais, a tradição dos valores do médico, baseada na autonomia profissional e na responsabilidade pessoal, refletiam-se no modelo artesanal em que o sucesso era inteiramente creditado ao médico, enquanto eventuais fracassos dependiam das debilidades dos pacientes, ou mesmo da infra-estrutura oferecida pela organização. Na atualidade, entretanto, a necessidade cada vez maior da tecnologia e outros elementos estruturais tornou o ambiente terapêutico altamente complexo que, associado à fragmentação assistencial, exige um novo modelo que privilegie a comunicação e o trabalho em equipe dois fatores escassos na assistência tradicional. MOTIVOS PARA AS FALHAS E ACIDENTES O atual sistema de saúde não se encontra preparado para garantir a melhor segurança do paciente. O aumento da complexidade e a fragmentação da assistência, a rápida expansão do conhecimento médico, o aumento da utilização de tecnologia e a mudança das necessidades de assistência em relação ao diagnóstico e tratamento de problemas únicos e agudos para problemas de longa duração com múltiplas condições inter-relacionadas, estão colocando novos desafios para os profissionais de saúde e as organizações de saúde. Conseqüentemente, os pacientes estão vivenciando riscos desnecessários (8). Há alguns fatores que estão associados com maior probabilidade de falhas e acidentes: tecnologia, muitos profissionais atendendo o mesmo paciente, gravidade da doença, ambiente propensão à distração, pressão do tempo, necessidade de tomar decisões rápidas, alto volume de pacientes e carga imprevisível de atendimento (8). A estes elementos se associa uma peculiaridade temerária da área da saúde: processos precariamente elaborados e executados com base na experiência, e não em evidência, os quais encerram uma infinidade de possibilidades de risco que na maioria das vezes são atenuados pelo esforço e compromisso individual dos profissionais, em especial médicos e enfermeiros. BASE DE REFERÊNCIA PARA A ABORDAGEM DAS FALHAS E ACIDENTES A falibilidade é parte da condição humana. Não se pode alterar a condição humana, mas é possível mudar as condições em que as pessoas trabalham (9). A análise de desastres em indústrias de alta confiabilidade tem ensinado que não existe sistema perfeito (9). Todo sistema seria como um queijo suíço que quando inteiro é liso e sem defeitos, mas ao ser cortado se nota um número enorme de orifícios (falhas). Estes orifícios seriam as falhas latentes (ex.: carga horária de trabalho excessivo, deficiente conhecimento ou experiência; supervisão inadequada, local de trabalho excessivamente estressante, metas administrativas incompatíveis, sistemas ineficientes de comunicação, manutenção inadequada de equipamentos e instalações), ou seja, aqueles defeitos que estão, por assim dizer, à espera de uma oportunidade para se associarem com outras debilidades e se tornarem visíveis através de um prejuízo ou dano ao paciente (10). Todos os serviços de saúde contêm falhas que podem em um determinado momento se alinhar e produzir um acidente que atinja o paciente, o profissional ou outros envolvidos na assistência. A falha ativa é um ato não seguro ou uma omissão cometida por aqueles que atendem diretamente o paciente e que suas ações podem ter conseqüências adversas imediatas (ex.: omissões, enganos, violações). São falhas ativas os seguintes eventos: a) esquecer de dar um medicamento ou de efetuar um procedimento; b) trocar a medicação que deve ser administrada, b) executar cirurgia em paciente errado, etc. Outra forma de abordar a questão das falhas é considerar uma organização constituída por duas partes: profissionais que atuam na ponta (que têm contato direto com os pacientes) e profissionais que atuam na base (que dão as condições estruturais para que os pacientes sejam atendidos). Assim, quando se efetua uma análise superficial de um acidente associado à assistência, a tendência é focar a atenção nos profissionais da ponta, quando na maioria das vezes as deficiências mais relevantes que contribuem criticamente para a maior parte dos acidentes estão na base (11). Enquanto as falhas ativas ocorrem com os profissionais da ponta, as falhas RAS _ Vol. 8, N o 33 Out-Dez, 2006 155

latentes, em boa parte, são criadas pelos profissionais da base. Portanto, se um paciente é vitimado por um acidente, este pode ter começado na base e se exteriorizado na ponta devido a uma seqüência de falhas que não foram identificadas e interceptadas. Quando se discute a questão das falhas latentes na assistência à saúde, ressalta-se, por exemplo, que a maioria das tecnologias e maneiras de fazer as coisas no setor não foram projetadas tendo em mente as limitações humanas (5). Ou seja, equipamentos e formas de fazer que não consideraram as limitações humanas introduzem riscos imperceptíveis que somente serão visíveis quando produzirem um acidente grave no paciente. Se isto é verdade, há um enorme espaço para se trabalhar na correção dessas maneiras provisórias de fazer as coisas que elevam a probabilidade do prejuízo ou dano ao paciente. Os protocolos assistenciais bem estruturados e com base em evidência são instrumentos que dão consistência aos processos assistenciais e a possibilidade de periodicamente analisá-los e aperfeiçoá-los. ESTRATÉGIAS EFETIVAS DE PREVENÇÃO Desde o início do movimento da segurança do paciente, na década de 80 do século passado, notou-se que os erros de medicação representavam o tipo mais comum de erro assistencial, e vários grupos de pesquisa passaram a trabalhar no sentido de desenvolver formas que pudessem reduzir essas falhas e incidentes (5). Por exemplo, a implementação de dose unitária reduziu a freqüência de erros de medicação em 82% em um estudo (12). Mais recentemente, a solicitação médica computadorizada em que o médico entra com a prescrição on-line mostrou que diminuiu a freqüência de erros sérios de medicação em 55% (13). Adicionalmente, ter um farmacêutico acompanhando uma UTI nos rounds clínicos produz uma diminuição de 66% dos eventos adversos preveníveis (14). Na área de prevenção de queda, por exemplo, encontrou-se que uma intervenção multifatorial para reduzir o risco de queda entre pessoas idosas que moravam na comunidade resultou em uma diminuição do risco de queda de quase 1/3 (15), e a intervenção apresentou indícios de que o procedimento seria custo-efetivo (16). ACREDITAÇÃO DE ORGANIZAÇÕES DE SAÚDE A acreditação se constitui na forma mais antiga de avaliação de organizações de saúde (17). Diferentemente do prêmio nacional da qualidade e da ISO, é um sistema que surgiu no setor saúde e que, portanto, se ajusta melhor à realidade destas organizações. O processo de acreditação é, em si, uma atividade de redução de risco (18). Na medida em que estabelece padrões contemporâneos que atendem funções organizacionais importantes liderança e administração, organização profissional, atenção ao paciente/cliente, diagnóstico, apoio técnico, abastecimento e apoio logístico, infra-estrutura, ensino e pesquisa (19) encoraja as organizações a cumprirem com determinados requisitos. A tese é de que se as organizações estão fazendo certo as coisas certas, refletidas nos padrões, possivelmente os erros e os resultados adversos serão menos freqüentes do que se não estivessem atendendo a eles (18). O sistema brasileiro de acreditação, constituído por níveis de cumprimento de padrões nível 1, nível 2 e nível 3 destaca-se por ressaltar a questão da segurança, seja no que concerne aos aspectos estruturais, seja na execução e acompanhamento dos processos assistenciais (19). Em resumo, ele proporciona às organizações de saúde a oportunidade de redução de riscos na assistência prestada. Observa-se uma incipiente tendência dos dirigentes das organizações de saúde em facilitar a implementação do processo de acreditação. Muito embora seja uma atividade demorada, trabalhosa e, nas organizações mais antigas um empreendimento oneroso, no final está a segurança do paciente, dos profissionais e das organizações de saúde. O PROTOCOLO UNIVERSAL Desde julho de 2004 a Comissão Americana de Acreditação de Organizações de Saúde (20) exige que as organizações acreditadas estejam comprometidas com a aplicação do Protocolo Universal (20). Trata-se de um instrumento de prevenção de acidentes que, embora pareça uma aplicação incômoda e redundante, tem a capacidade de praticamente eliminar situações catastróficas em circunstâncias de cirurgia/ procedimento invasivo. Baseia-se no consenso de especialistas pertencentes a várias especialidades e foi apoiado por mais de 40 associações profissionais médicas e organizações (20). O protocolo universal consiste de uma ferramenta que previne incidentes em cirurgia/procedimento invasivo e visa evitar três situações catastróficas: a) local errado, b) procedimento errado, c) paciente errado. Portanto, a aplicação do protocolo universal assegura a execução da cirurgia/procedimento no paciente certo, no local certo e a cirurgia/procedimento certo. 156 RAS _ Vol. 8, N o 33 Out-Dez, 2006

O protocolo universal deve ser empregado tanto em centros cirúrgicos quanto em centros de diagnóstico e aplicações terapêuticas que envolvam ações invasivas. A técnica é simples e a rotina prática dos enfermeiros já encerra parte do protocolo universal. Consiste de três passos fundamentais. Passo 1: Verificação para confirmar: paciente correto, cirurgia/ procedimento correto e local correto (quando aplicável) Verificação da pessoa correta, cirurgia/procedimento e do local. Fazer esta ação em três momentos: a) no agendamento; b) na admissão; c) em qualquer momento de transferência do cuidado; d) antes de entrar na sala para o procedimento/cirurgia. Sempre envolver o paciente e o familiar. Passo 2: Marcação do local da cirurgia/procedimento Marcar todos os casos que envolvem lateralidade. Marcar somente o local cirúrgico/ local do procedimento. A marca deve ser sem ambigüidade. A marca deve ser visível depois do preparo do paciente. A marcação do local da cirurgia/ procedimento deve: a) ser efetuada pela pessoa que fará o procedimento; b) ocorrer com a participação do paciente/familiar; c) verificar o local no time out. Passo 3: Time out imediatamente antes de iniciar o procedimento Deve ser feito no local onde será realizada a cirurgia/procedimento, imediatamente antes de iniciar o ato planejado. Deve envolver a equipe de cirurgia/procedimento. Deve utilizar comunicação ativa. Deve ser documentada. Deve incluir a verificação do seguinte: identificação correta do paciente; lado e local correto; concordância com a cirurgia/ procedimento a ser realizado; posição correta do paciente; disponibilidade de implantes corretos e qualquer equipamento ou exigências especiais. O protocolo universal, uma ferramenta simples e útil na prevenção de três circunstâncias indesejáveis relacionadas com cirurgia/procedimento invasivo, necessita ser implantado nos serviços de saúde, a fim de evitar sofrimento desnecessário para clientes/ pacientes, familiares e profissionais de saúde. FADIGA DO PROFISSIONAL UM ASPECTO DA SEGURANÇA DO PACIENTE Um estudo americano mostrou que enfermeiros que trabalham mais do que 12,5 horas consecutivas estavam três vezes mais propensos a cometer erros (21). Estes achados sugerem que os enfermeiros são mais suscetíveis a cometer erros no final do trabalho e quando tentam concluir tarefas múltiplas. Daí se pode concluir também que os profissionais, quando trabalham além do tempo estipulado, tornam-se mais expostos ao risco de falhas e acidentes, e quanto mais tempo de trabalho, maior o número de falhas e possíveis acidentes. Achados semelhantes têm sido publicados sobre a relação direta entre o número de horas trabalhadas pelos médicos residentes, falhas e acidentes médicos (22). Estes dados levaram em 2003 o Conselho de Graduação de Educação Médica a limitar as horas dos residentes, a fim de reduzir erros decorrentes da fadiga. As condições de trabalho e a carga de trabalho dos profissionais de saúde, em especial dos médicos e dos enfermeiros, estão relacionadas com o grau de segurança da assistência prestada aos clientes/ pacientes. Assim, os dirigentes preocupados com a assistência segura devem estar atentos às melhorias que necessitam proporcionar para os colaboradores da ponta do sistema. CONCLUSÕES Os profissionais e as organizações de saúde se encontram no estágio inicial de entendimento e melhoria da segurança do paciente. Os dados cumulativos estão a indicar o seguinte: a) que as falhas e acidentes devem ser examinados com base em sistemas e não em pessoas; b) que somente uma cultura institucional da segurança estimulará a identificação de falhas e acidentes; c) que as falhas e acidentes são comuns na assistência à saúde e prejudicam milhares de pessoas por ano; d) que o setor saúde pode aprender com as organizações de alta confiabilidade; e) que as lideranças precisam estar comprometidas com a segurança do paciente. É fato que a assistência à saúde está cada vez mais complexa, fragmentada e não segura. O compromisso e o empenho de profissionais individuais são atitudes imprescindíveis, porém não o bastante. Além disso, as organizações de saúde necessitam despender esforços para superar a cultura tradicional da culpa e castigo, e incentivar uma cultura do relato e do aprendizado com os erros e acidentes. As lideranças administrativas, médicas e de enfermagem, que habitualmente vivem em um ambiente do culto à autoridade, precisam superar este obstáculo e criar condições para que a segurança do pa- RAS _ Vol. 8, N o 33 Out-Dez, 2006 157

ciente seja responsabilidade de todos e não apenas de alguns. Os dirigentes que se preocupam com a segurança da assistência aos clientes/ pacientes certamente se empenharão no sentido de alcançar a acreditação para as suas organizações, uma vez que esta condição lhes dá uma base firme de atuação segura, eficiente e eficaz. REFERÊNCIAS 1. Institute of Medicine. To err is human: building a safer health system. Washington, DC, National Academy Press, 1999. 2. The Canadian Patient Safety Dictionary. Canada, October, 2003. http://rcpsc.medical.org/publications/patientsafetydictionary_e.pdf, verificado em 15/julho/2006. 3. Van der Scaaf, TW. Near miss reporting in the chemical process industry. PhD Thesis. Eindhoven, NL: Eindhoven University of Technology, 1992. 4. Battles, JB; Lilford, RJ. Organizing patient safety research to identify risks and hazards. Qual Saf Health Care 2003; 12:ii2. 5. Bates, DW; Gawande, AA. Error in medicine: What have we learned? Minnesota Medical Association, July 2000/Volume 83. 6. Brennan TA, Leape LL, Laird NM, et al. Incidence of adverse events and negligence in hospitalized patients. Results from the Harvard Medical Practice Study I. N Engl J Med 1991;324:370-6. 7. Leape LL, Lawthers AG, Brennan TA, Johnson WG. Preventing medical injury. QRB Qual Rev Bull 1993;19:144-9. 8. Ralston JD, Larson EB. Crossing to safety: transforming healthcare organizations for patient safety. J Postgrad Med 2005;51:61-67. 9. Reason JT. Foreword. In: Bogner MS, ed. Human error in medicine. Hillsdale, NJ: L. Erlbaum Associates, 1994:vii-xv. 10. Reason JT. Human error. Cambridge, England: Cambridge University Press, 1990. 11. Cook R, Woods D. Operating at the sharp end: the complexity of human error. In: Bogner MS, ed. Human error in medicine. Hillsdale, NJ: L. Erlbaum Associates, 1994:255-310. 12. Simborg DW, Derewicz HJ. A highly automated hospital medication system. Five years experience and evaluation. Ann Intern Med 1975;83:342-6. 13. Bates DW, Leape LL, Cullen DJ, et al. Effect of computerized physician order entry and a team intervention on prevention of serious medication errors. JAMA 1998;280:1311-6. 14. Leape LL, Cullen DJ, Clapp MD, et al. Pharmacist participation on physician rounds and adverse drug events in the intensive care unit. JAMA 1999;282: 267-70. 15. Tinetti ME, Baker DI, McAvay G, et al. A multifactorial intervention to reduce the risk of falling among elderly people living in the community. N Engl J Med 1994;331:821-7. 16. Rizzo JA, Baker DI, McAvay G, Tinetti ME. The costeffectiveness of a multifactorial targeted prevention program for falls among community elderly persons. Med Care 1996;34:954-69. 17. Quinto Neto, A. Acreditação de organizações de saúde: manual de orientação para o avaliador interno. Belo Horizonte: Fundação Unimed, Manual do Curso de Auditoria em Saúde, 2004. 18. O Leary, DS. Accreditation s role in reducing medical errors. West J Med 2000, June: 172(6): 357-358. 19. ONA. Manual brasileiro de acreditação. Brasília: Organização Nacional de Acreditação/Anvisa/ Ministério da Saúde, 2006. 20. JCAHO. Universal protocol for preventing wrong site, wrong procedure, wrong person surgery : practical approaches to implementation. http:// www.jcrinc.com/consulting.asp?durki=7445, verificado em 14/julho/2006. 21. Rogers, AE; Hwagn, WT; Schott, LD; Aiden, LH; Dinges, DF. Hospital staff nurse work and patient safety. Health Aff. 2004: 23:1-11. 22. Gaba, DM; Howard, SK. Fatigue among clinicians and the safety of patients. N Engl J Med 2002: 347:1249-55. 158 RAS _ Vol. 8, N o 33 Out-Dez, 2006