Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 13ª Região AS TRÊS DIMENSÕES DOS DIREITOS HUMANOS E O NOVO CONCEITO DE CIDADANIA

Documentos relacionados
DIREITO CONSTITUCIONAL

Direitos e Garantias Fundamentais. Disciplina: Direito Constitucional I Professora: Adeneele Garcia Carneiro

As Gerações de Direito Fundamentais e as suas tendências

DIREITOS HUMANOS. Direito Internacional dos Direitos Humanos. Categorias e Gerações dos Direitos Humanos Parte 2. Profª.

EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS. Orientador(a): Profª. Drª. Cláudia Mansini Queda de Toledo

Direitos Humanos e Cidadania Polícia Rodoviária Federal Professor: Rodrigo Mesquita Aulas: 4 aulas

DIREITO CONSTITUCIONAL

TEORIA GERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DIREITO CONSTITUCIONAL CURSO P/ EXAME DE ORDEM - OAB PROF. DIEGO CERQUEIRA DIEGO CERQUEIRA

AVANÇOS E DESAFIOS DOS DIREITOS HUMANOS NA ATUALIDADE. Prof. Dra. DANIELA BUCCI

TÍTULO I A PROBLEMÁTICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS CAPÍTULO I SENTIDO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. 1.º Formação e evolução

DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA

DIREITO CONSTITUCIONAL

A BUSCA POR UMA COMPREENSÃO UNITÁRIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS THE SEARCH FOR AN UNITARY UNDERSTANDING OF FUNDAMENTAL RIGHTS

CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO AMAPÁ CURSO DE DIREITO

O ACESSO À SAÚDE COMO DIREITO FUNDAMENTAL

BuscaLegis.ccj.ufsc.br

Marcos Augusto Maliska Professor de Direito Constitucional da UniBrasil, em Curitiba

DIREITOS FUNDAMENTAIS

Simulado de Direitos Humanos!

Características dos direitos fundamentais

TEORIA GERAL DOS DIREITOS HUMANOS

Notas prévias à 12ª edição 7 Agradecimentos (1ª edição) 9 Abreviaturas 11 Prefácio (1ª edição) 15 Sumário 19 Notas introdutórias 21

DIREITOS HUMANOS. Introdução, Marco Contemporâneo e Gerações de Direitos Humanos. Prof. Renan Flumian

BuscaLegis.ccj.ufsc.br

DIREITOS HUMANOS. Direito Internacional dos Direitos Humanos. Categorias e Gerações dos Direitos Humanos Parte 1. Profª.

INTRODUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS AOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

DIREITOS HUMANOS. Aula 1 Teoria Geral dos Direitos Humanos PROFA. ALICE ROCHA

Aula nº. 02 e 03 DIREITOS SOCIAIS

Professora Edna Ferraresi. Aula 2

DIREITOS FUNDAMENTAIS. Gerações ou Dimensões? Beatriz Barbosa Claudino

DIREITO DO TRABALHO. Prof. Antero Arantes Martins. On line Aula 1

Teoria dos Direitos Fundamentais

DIREITOS DE QUARTA DIMENSÃO E SUAS IMPLICAÇÕES SOCIAIS Gabriel Leite FERRARI 1 Sérgio Tibiriçá AMARAL 2

Direito Constitucional

COLÉGIO XIX DE MARÇO excelência em educação

1948 Declaração Universal dos Direitos De acordo com a Declaração Universal dos Direitos : Os direitos humanos vêm ganhando força nos últimos tempos

Aula 2 - Direitos Civis, Políticos e Sociais

Natureza Jurídica. Características. Gerações.

Declaração Universal dos Direitos Humanos


Direitos fundamentais em espécie

DIREITOS SOCIAIS, JUSTIÇA E DEMOCRACIA

DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

DIREITOS HUMANOS. Direito Internacional dos Direitos Humanos. Evolução Histórica dos Direitos Humanos Parte 3. Profª.

CURSO DELEGADO DE POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO PARÁ DATA 01/09/2016 DISCIPLINA DIREITOS HUMANOS PROFESSOR ELISA MOREIRA MONITOR LUCIANA FREITAS

Aula 06 TERCEIRA DIMENSÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

PROVA DAS DISCIPLINAS CORRELATAS TEORIA GERAL DO DIREITO

2. Aspectos históricos dos direitos fundamentais e constitucionalismo Requisitos para o surgimento dos direitos fundamentais...

ANÁLISE A RESPEITO DO LIMITE DE DEDUÇÃO COM DESPESAS DE EDUCAÇÃO NO IMPOSTO DE RENDA

Declaração de Princípios - Declaração de Princípios - Partido Socialista

O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL 1 THE PRINCIPLE OF HUMAN DIGNITY AS A FUNDAMENTAL LAW

DIREITO DO TRABALHO. Prof. Antero Arantes Martins. On line Aula 1

Direito Constitucional

Processo Seletivo de Acesso à Educação Superior PAES/ DOCV/PROG/UEMA FILOSOFIA

ADM1, 1ª e 2ª. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

DIREITO PREVIDENCIÁRIO. Prof. Fernando Maciel

Direitos Humanos e Globalização

Direitos Humanos. Noções de Direitos Humanos. Professora Franciele Rieffel.

Prof. Ricardo Torques

POLÍTICA NACIONAL DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL Lei Federal nº 9.795/1999

Direito Constitucional

ÍNDICE SISTEMÁTICO. Parte I O ESTADO NA HISTÓRIA. Capítulo I LOCALIZAÇÃO HISTÓRICA DO ESTADO. 1º O Estado, realidade histórica

BuscaLegis.ccj.ufsc.br

MINISTÉRIO PÚBLICO E DIREITOS HUMANOS. Um estudo sobre o papel do Ministério Público na defesa e na promoção dos direitos humanos

Direito Internacional Público

Ética, Cultura de Paz e Dinâmicas de Convivência capacitação para multiplicadores. Módulo V A Universalidade dos Direitos Humanos.

Direitos fundamentais sociais. Prof. Murillo Sapia Gutier

Direitos e Garantias Fundamentais

TEORIA E FUNDAMENTOS DA CONSTITUIÇÃO

Aula 16 ESTADO FEDERAL BRASILEIRO

Sumário. Capítulo 1 TEORIA GERAL DOS DIREITOS HUMANOS... 23

Primeiro Período. Segundo Período GRUPO DISCIPLINAR DE HISTÓRIA HGP. Ano letivo de Informação aos Pais / Encarregados de Educação

Teoria do Estado e da Constituição

A EFICÁCIA E A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS 1

JUS-HUMANISMO E OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

XXI CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA

Noções Gerais de Direitos Humanos

ÍNDICE INTRODUÇÃO A economia do mundo antes do crescimento económico moderno O crescimento económico moderno: uma visão geral...

PRINCÍPIOS DO DIREITO DO TRABALHO

NOÇÕES DE DIREITO CONSTITUCIONAL

DECLARAÇÃO UNIVERSAL SOBRE A DIVERSIDADE CULTURAL

TÍTULO: PRINCIPAIS CLÁUSULAS DA CONVENÇÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Artigo XVII 1. Toda pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros. 2.Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DA UNESCO SOBRE A DIVERSIDADE CULTURAL

Elementos do Estado. Território (III) e Finalidade (IV) Nina Ranieri 2017 TGE I

A nossa tripla cidadania: os valores cívicos

DO CONSTITUCIONALISMO LIBERAL A EVOLUÇÃO PARA O ESTADO SOCIAL E O NEOCONSTITUCIONALISMO DIREITO CONSTITUCIONAL III

BuscaLegis.ccj.ufsc.br

Políticas Sociais para Gestão Social IGPP Professora: Maria Paula Gomes dos Santos

O PAPEL FUNDAMENTAL DOS TRATADOS E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS NO PLANO DA AFIRMAÇÃO, CONSOLIDAÇÃO E EXPANSÃO DOS DIREITOS BÁSICOS DA PESSOA HUMANA 1

A FORMAÇÃO DO CAPITALISMO E SUAS FASES MÓDULO 02

DIREITO PROCESSUAL DO TRABALHO

I CONSTITUIÇÃO MEXICANA Algumas disposições II CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR. Direitos Humanos. Importância da Constituição Mexicana

Anexo II Ata Reunião Extraordinária 11/ Disciplinas do Curso de Mestrado em Direito e Justiça Social

Ética é um conjunto de conhecimentos extraídos da investigação do comportamento humano ao tentar explicar as regras morais de forma racional,

Tema-problema: 2.1 Estrutura familiar e dinâmica social DURAÇÃO DE REFERÊNCIA (AULAS): 16 ( )

PROF. JEFERSON PEDRO DA COSTA

Os Direitos Humanos correspondem à somatória de valores, de atos e de normas que possibilitam a todos uma vida digna.

PARTE I TEORIA GERAL DO ESTADO

Transcrição:

104 DOUTRINA AS TRÊS DIMENSÕES DOS DIREITOS HUMANOS E O NOVO CONCEITO DE CIDADANIA CARLOS HENRIQUE BEZERRA LEITE 1 Não é unívoco o conceito de direitos fundamentais, a começar pela variedade de expressões que geralmente são empregadas para designá-los, tais como: direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos da pessoa humana, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades públicas e direitos fundamentais. As expressões direitos humanos e direitos do homem são largamente utilizadas entre autores anglo-americanos e latinos. O termo direitos fundamentais é empregado preferentemente pelos publicistas alemães. Adotando-se, para fins meramente didáticos, a expressão germânica direitos fundamentais, empregada expressamente no Título II da Constituição brasileira de 1988, é possível dizer que a construção e a manutenção dos pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana constituem os seus principais objetivos. E é essa vinculação essencial dos direitos fundamentais à liberdade e à dignidade humana, enquanto valores históricos e filosóficos, que nos conduzirá ao moderno significado de universalidade inerente a esses direitos como ideal da pessoa humana. Há, no entanto, uma tradicional classificação doutrinária que identifica, com base em momentos sucessivos da História, três categorias distintas de direitos fundamentais, a saber: os direitos fundamentais de primeira, de segunda e de terceira geração. A primeira geração dos direitos fundamentais surgiu com as revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII. Esses direitos assentam-se no liberalismo clássico, encontrando, pois, inspiração no iluminismo racionalista, base do pensamento ocidental entre os séculos XVI e XIX. São também chamados de direitos individuais ou direitos de liberdade e têm por destinatários os indivíduos isoladamente considerados e são oponíveis ao Estado. Os direitos civis e políticos constituem, portanto, os direitos fundamentais de primeira geração. 1 O autor é Professor do Curso de Direito (UFES), Mestre e Doutor em Direito (PUCSP) e Procurador Regional do Trabalho.

105 Segue-se a segunda geração dos direitos fundamentais: os direitos sociais, econômicos e culturais, não havendo exagero na afirmação de que os direitos sociais dominaram o século XX (e, provavelmente, dominarão o século em curso) do mesmo modo que os direitos da primeira geração dominaram o século XIX. É voz corrente na doutrina que os direitos fundamentais de primeira geração são uma espécie de comando negativo (status negativus) imposto ao poder estatal, limitando a atuação deste em função das liberdades públicas asseguradas ao indivíduo; enquanto os direitos fundamentais de segunda geração impõem ao Estado uma prestação positiva (status positivus), no sentido de fazer algo de natureza social em favor do indivíduo. Dito de outro modo, o conteúdo dos direitos individuais repousa em um dever de não-fazer por parte do Estado em prol de certos interesses ou direitos, como o direito à vida, à liberdade nos seus multifários aspectos (locomoção, expressão, religião, organização de grupos); ao passo que os direitos sociais constituem um dever de fazer, de contribuir, de ajudar por parte dos órgãos que compõem o Poder Público. A positivação desses direitos deu origem ao que se convencionou chamar de Constitucionalismo Social, a demonstrar que os direitos fundamentais de primeira geração, quando do seu exercício, têm que cumprir uma função social. Os direitos de segunda geração traduzem-se, portanto, em direitos de participação. Requerem, por isso, uma política pública que tenha por objeto, sobretudo, a garantia do efetivo exercício das condições materiais de existência de contingentes populacionais. São direitos de igualdade substancial entre as espécies humanas. Inserem-se no rol dos direitos fundamentais de segunda geração os direitos sociais, culturais e econômicos, bem como os direitos coletivos ou de coletividades. Os direitos fundamentais de terceira geração, também chamados de direitos de fraternidade ou de solidariedade, aparecem com a conscientização de que o mundo é dividido em nações desenvolvidas e subdesenvolvidas ou em fase de desenvolvimento. Decorrem, pois, da reflexão acerca de temas referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade. Dotados de altíssima dose de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração não se destinam especificamente à proteção de um indivíduo, de um grupo de pessoas ou de um determinado Estado, pois os seus titulares são, via de regra, indeterminados. A rigor, seu destinatário, por excelência, é o próprio gênero humano, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos existenciais. Além das três gerações dos direitos fundamentais já mencionadas, há, ainda, uma corrente doutrinária que defende uma quarta geração de direitos, que

106 emerge da globalização política, tão necessária para amenizar os efeitos devastadores do neoliberalismo extraído da globalização econômica deste final de milênio. Globalizar direitos fundamentais eqüivale a universalizá-los no campo institucional. São direitos de quarta geração o direito à democracia, à informação e ao pluralismo. Essa classificação tradicional dos direitos fundamentais tem sido alvo de fundadas críticas, devido à não-correspondência entre as gerações dos direitos e o seu processo histórico de nascimento e desenvolvimento. Com efeito, se a expressão geração induz a idéia de sucessão cronológica dos direitos, avulta o descompasso entre o direito interno de alguns países, nos quais a constitucionalização dos direitos sociais foi posterior à dos direitos civis e políticos, e o direito internacional, que teve na criação da Organização Internacional do Trabalho, em 1919, a institucionalização de diversas convenções que regulamentaram direitos sociais dos trabalhadores, bem antes da internacionalização dos direitos civis e políticos. Além disso, não se pode olvidar que essa classificação ortodoxa, ao aduzir o non facere do Estado como característica dos direitos individuais e o facere como características dos direitos sociais, aflora-se insuficiente para explicar e tipificar alguns direitos sociais. O direito de greve, por exemplo, que nas modernas democracias, é considerado um direito social dos trabalhadores, constitui, na verdade, um não-fazer por parte do Estado, já que este simplesmente se limita a não impedir (non facere) o exercício do direito de um grupo de trabalhadores de suspender, temporariamente, a prestação de serviços a empregador. Por outro lado, tem-se admitido que o termo dimensão poderia substituir, com vantagem lógica e qualitativa, o vocábulo geração. E essa substituição não se justifica apenas pelo preciosismo de que as gerações anteriores não desaparecem com o surgimento das mais novas, na medida em que o mais importante é que os direitos nascidos em uma geração, quando surgem em um dado ordenamento jurídico, assumem uma outra dimensão, pois os direitos de geração mais recentes tornam-se um pressuposto para entendê-los de forma mais adequada, o que propicia a sua melhor realização. Oportuno é o exemplo de Willis Santiago Guerra Filho, para quem o direito individual de propriedade, num contexto em que se reconhece a segunda dimensão dos direitos fundamentais, só pode ser exercido observando-se sua função social, e com o aparecimento da terceira dimensão, observando-se igualmente sua função ambiental. 2 2 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direitos fundamentais, processo e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 13.

107 A questão terminológica, ora focalizada, é extremamente importante, uma vez que os direitos de primeira, segunda e terceira dimensões se fundem, abrindo caminho para uma nova concepção de universalidade dos direitos humanos fundamentais, cujas características básicas são a indivisibilidade e interdependência. A concepção contemporânea dos direitos fundamentais da pessoa humana imbrica, portanto, a liberdade (direitos civis e políticos), a igualdade (direitos sociais, econômicos e culturais) e a fraternidade ou solidariedade (direitos ou interesses metaindividuais) como valores indissociáveis, o que implica, por conseqüência, as características da universalidade, indivisibilidade, interdependência e complementaridade que esses direitos assumem no âmbito do nosso ordenamento jurídico e do direito internacional. A insistência na idéia das gerações de direitos como se fossem compartimentos estanques, além de consolidar a inexatidão da expressão em face da moderna concepção dos direitos humanos, pode se prestar a justificar políticas públicas que não reconhecem a indivisibilidade da pessoa humana, geralmente em detrimento dos direitos sociais, econômicos e culturais ou dos direitos civis e políticos previstos nos tratados internacionais sobre direitos humanos. Tudo o que foi dito até agora está a revelar que a temática dos direitos fundamentais está intimamente vinculada à teoria geral da cidadania. 3 E esta, por sua vez, encontra-se indissoluvelmente ligada ao ideal de preservação e respeito à dignidade da pessoa humana. A cidadania, portanto, deixa de ser considerada simples emanação do direito subjetivo do indivíduo de participar dos negócios do Estado para se transformar na idéia que, por sua extensão, pela abertura interdisciplinar, pela conotação política que exibe e pela multiplicidade de suas dimensões, pode servir de sustentáculo para a superação das contradições e perplexidades que gravitam em torno de temas como liberdade e justiça social, igualdade e solidariedade, universalismo e nacionalismo, direitos fundamentais e direitos sociais e econômicos, nesta fase de transição para o século XXI. 4 Pode-se dizer, assim, que cidadania passa ser definida como o pertencer à comunidade, que assegura ao homem a sua constelação de direitos e o seu quadro de deveres, só a análise ética e jurídica abre a possibilidade de compreensão desse complexo status. A cidadania já não está ligada à cidade nem ao Estado nacional, 3 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral da cidadania. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 1-8. 4 TORRES, Ricardo Lobo. A cidadania multidimensional na era dos direitos. In: Teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 242-243.

108 pois se afirma também no espaço internacional e supranacional. Apenas as idéias de direitos humanos e de justiça podem constituí-la no sentido ontológico 5 (op. cit., p. 247). Referindo a passagem do Estado absoluto ao Estado de direito, Norberto Bobbio obtempera, com percuciência, que é com o nascimento do Estado de direito que ocorre a passagem final do ponto de vista do príncipe para o ponto de vista dos cidadãos. No Estado despótico, os indivíduos singulares só têm deveres e não direitos. No Estado absoluto, os indivíduos possuem, em relação ao soberano, direitos privados. No Estado de direito, o indivíduo tem, em face do Estado, não só direitos privados, mas também direitos públicos. O Estado de direito é o Estado dos cidadãos. 6 A bem ver, pois, o conceito pós-moderno de cidadania passa a compreender os direitos humanos em sua tríplice dimensão, é dizer, os direitos civis e políticos (primeira dimensão), os direitos sociais, econômicos e culturais (segunda dimensão) e os direitos coletivos lato sensu (terceira dimensão), 7 em constante tensão com as idéias de liberdade, de justiça política, social e econômica, de igualdade, de chances e de resultados, e de solidariedade, a que se vinculam. 8 5 Ibid, p. 247. 6 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campos, 1992, p. 61. 7 Sobre os direitos coletivos lato sensu, que abrangem os difusos, os coletivos stricto sensu e os individuais homogêneos, voltaremos a falar mais adiante. 8 Ricardo Lobo Torres, op. cit., p. 254.