Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008 Ana Elizabeth Santos Alves (UESB) Mestre queijeiro; Ato de trabalhar; Gênero ST 25 - Perspectivas profissionais e gênero O Ofício de Mestre Queijeiro Esta comunicação tem como objetivo apresentar algumas reflexões a respeito do trabalho dos mestres queijeiros, resultado de um estudo desenvolvido pelo Grupo de Estudos Trabalho e Educação do Museu Pedagógico da UESB sobre O Trabalho e a História da Qualificação Profissional na Indústria de Laticínios na Região Sudoeste da Bahia. O oficio de mestre queijeiro vem sendo reproduzido no Brasil desde os anos 1800 até os dias de hoje (DIAS, 2006). Localizamos esses trabalhadores em Fabriquetas de Queijo e Requeijão e pequenas Indústrias de laticínios da região sudoeste da Bahia 1. Trata-se de uma atividade tradicionalmente ligada à cultura do trabalho do meio rural, destacando-se como alternativa de ocupação de mão-de-obra e de remuneração para o trabalho familiar de pequenos agricultores e de trabalhadores urbanos. Dos derivados lácteos, o queijo, ainda tem um caráter acentuadamente manual. As Fabriquetas de queijo e requeijão são pequenos estabelecimentos, situados especialmente no nordeste, que combinam diversas formas de trabalho (relações informais de trabalho, envolvendo trabalho autônomo, trabalho assalariado e trabalho familiar), demonstrando as contradições e precariedade da realidade brasileira, em que, de um lado, estão aqueles que sobrevivem nos subterrâneos da economia e, de outro, os proprietários de terra que complementam a sua renda com a produção de produtos clandestinos e exploração de mão-de-obra barata. O trabalho do mestre queijeiro nesses pequenos estabelecimentos começa com a ordenha das vacas e termina com a produção do queijo. A forma como o trabalho se organiza pressupõe uma polivalência ou multifuncionalidade do trabalhador. Durante todo o dia os mestres se ocupam de uma série de atividades de grande responsabilidade, que não podem ser interrompidas, a exemplo do transporte do leite do curral até o tanque de fabrico do queijo, acender o fogo que vai aquecer a água para cozimento da massa, etc. Como o leite é uma matéria-prima de fácil deterioração, qualquer deslize pode inviabilizar a produção. A atividade nas fabriquetas é exclusivamente manual, envolve destreza e habilidade em identificar o ponto da massa para o preparo do queijo. Esses trabalhadores estão expostos a longa jornada de trabalho em pé, distante de qualquer fiscalização trabalhista, correndo o risco de queimar as mãos pelo fato de terem que lidar com água quente sem qualquer proteção. Manuseiam certa quantidade de leite e, para isso, é necessário o uso
2 de força física para levantar os baldes, despejar no tanque, mexer, fatiar a massa depois de coalhada e cozida, etc. É uma a atividade braçal, desenvolvida essencialmente por homens. O queijeiro das Fabriquetas é um trabalhador rural treinado por outros queijeiros ou proprietários das fazendas. O trabalho está presente na vida deles desde cedo, desempenhando um papel educativo por meio da prática produtiva reproduzida socialmente, onde a escola tem um caráter secundário. A prática parece, como explica Ferreti (1988, p.102), ser o procedimento mais eficiente para a aquisição de algum nível de qualificação profissional e, conseqüentemente, o saber teórico é desvalorizado. São trabalhadores que não tiveram acesso à escola. E isso parece não ter importância alguma, pois, para a empresa, o que interessa é o trabalho prático, simplificado. Apesar do avanço tecnológico a produção de queijo não deixa de depender do trabalho humano. Esse oficio é também presente nas pequenas Indústrias de laticínio. Essas indústrias funcionam segundo as normas da agência de vigilância sanitária estadual. A seqüência das diversas operações desenvolvidas na produção do queijo é semelhante às Fabriquetas o que as diferencia é o uso da tecnologia e uma maior preocupação com a qualidade do produto. Várias etapas do processo, a exemplo do corte e modelamento da massa, transferência do leite de um local para outro, que nas Fabriquetas são feitas manualmente, nas indústrias são utilizadas tecnologias para execução dessas tarefas. Mas, a intervenção do trabalho humano é fundamental. Olhando porta adentro o processo produtivo das Fabriquetas e Indústrias de laticínios e o trabalho dos queijeiros e seus ajudantes, podemos observar o esforço doloroso e repetitivo dos procedimentos operacionais realizado por eles, permeado por uma seqüência de tarefas, abrangendo táticas, estratégias e soluções práticas. Durante as práticas de trabalho do queijeiro fica claro a importância da dimensão tácita do trabalho, adquirida pela experiência. No ambiente de trabalho, circulam saberes adquiridos continuamente renovados o que caracteriza a aprendizagem no contexto do trabalho: é o aprender-com-o-outro (FARTES, 2002). O conhecimento tácito (dimensão tácita do trabalho), fruto da experiência do trabalhador sinaliza a presença no campo do trabalho e na sua relação com os sentidos, sinais percebidos pelos trabalhadores mestres queijeiros: cheiros, cores, sabores. Blass (2006, p.16) ressalta que o potencial criador, essencialmente humano, revela-se por meio do trabalho, principalmente diante dos impasses e desafios que surgem no decorrer do ato de criar. O enfrentamento desses desafios supõe trabalho cujo resultado, em geral, conduz, às soluções criativas. Os queijeiros são conhecedores dos macetes da produção. São trabalhadores que tiveram pouco acesso a um tipo de saber mais sistematizado e raras possibilidades educativas além da dimensão prática do trabalho. Ao mesmo tempo em que se formam no/pelo trabalho realizam um processo de ensino-aprendizagem em relação aos trabalhadores a eles subordinados, lembrando à primeira vista as raízes da produção artesanal nos primórdios da industrialização, no qual o mestre
3 dirigia o atelier ao lado dos ajudantes e aprendizes e mais tarde, em virtude do estatuto do aprendizado, o aluno, depois de ter passado por um tempo de formação, depois de ter adquirido experiência poderia se tornar mestre. Na produção artesanal, o proprietário do atelier trabalhava ainda com seus aprendizes e alunos, já na manufatura, o patrão fica à parte e não participa diretamente da produção, vive inteiramente às custas do trabalho dos assalariados, graças a sua exploração. As transformações ocorridas nas relações entre o capital e o trabalho, desde o período manufatureiro até a grande indústria, são condicionadas pela gestão dos proprietários dos meios de produção em buscar diferentes meios de subordinação do trabalho. Os mestres queijeiros dispõem do trabalho manual, a produção depende da sua capacidade de artesão e de sua habilidade pessoal, mas não dispõem dos meios de produção. Os produtos do trabalho são apropriados pelos proprietários das Fabriquetas e pequenas Indústrias. No processo de produção o trabalhador exerce o seu ofício sob o controle do capitalista a quem pertence o seu trabalho, cuidando para que tudo se realize em ordem e os meios de produção sejam empregados de modo adequado, para tanto, os proprietários remuneram a força de trabalho de acordo com o que foi produzido. (MARX, 1985, p.154). Na produção social de sua existência os homens e mulheres se relacionam entre si independente de sua vontade, as circunstâncias fazem os homens assim como os homesn fazem as circunstâncias (MARX e ENGELS, 1982, p.56). Na divisão do trabalho podemos visualizar as contradições que se estabelecem na sociedade quando observamos, conforme Marx e Engels, a separação da sociedade em diversas familias opostas umas às outras, a distribuição desigual, tanto quantitativa como qualitativamente do trabalho e de seus produtos (p.46) e de gênero. Este último ponto, nos faz refletir sobre a identidade predominantemente masculina do ofício de mestre queijeiro nas Fabriquetas e pequenas Indústrias de laticínios. Carloto (2001, p.1) lembra que a existência de gêneros é a manifestação de uma desigual distribuição de responsabilidade na produção social da existência. A sociedade estabelece uma distribuição de responsabilidades que são alheias as vontades das pessoas, sendo que os critérios desta distribuição são sexistas, classistas e racistas. Do lugar que é atribuído socialmente a cada um, dependerá a forma como se terá acesso à própria sobrevivência como sexo, classe e raça, sendo que esta relação com a realidade comporta uma visão particular da mesma. A divisão sexual do trabalho mostra como a construção social de gênero nos permite compreender a partir da base material o que é trabalho feminino e o que é trabalho masculino, estudando a diferente distribuição de homens e mulheres nas relações sociais entre os sexos e nas relações que se estabelecem no mercado de trabalho, nos oficios e nas profissões. (HIRATA e KERGOAT, 2007).
4 A divisão sexual do trabalho (divisão social do trabalho) legitima pela ideologia naturalista princípios de separação e hierarquia, identificando trabalhos de homens e trabalhos de mulheres. Reduz o gênero ao sexo biológico e as práticas socias a papéis sociais` sexuados que remetem ao destino natural da espécie. (HIRATA e KERGOAT, 2007, p. 599). Nas Fabriquetas e pequenas Indústrias de laticínios que fizeram parte da nossa pesquisa a tradição do ofício de mestre queijeiro é reservada ao gênero masculino. O predominio do componente físico na execução do trabalho árduo produtivo, parece a primeira vista ser a principal razão do espaço ser reservado aos homens. Nas economias industrializadas, as ocupações diretamente ligadas a trabalhos braçais, têm mostrado tradicionalmente uma maior representatividade de ocupações exercidas por homens, nas áreas de linha de produção. Essa é a prática e os valores formulados socialmente. Entretanto, podemos refletir que essa divisão remonta um significado histórico-cultural, decorrente da relação social entre os sexos, como aponta Hirata e Kergoat (2007, p.599), que tem como característica a designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior valor social adicionado. É importante destacar que os laticínios pouco empregam mulheres no processo de produção. É tradição do setor leiteiro, segundo um gerente de produção de um grande laticínio, não admitir mulheres. Quando há mulheres, de modo geral, elas estão nas atividades de escritório ou nas atividades mais repetitivas e subalternas, a exemplo do setor de embalagem e de limpeza. Outra análise que podemos destacar em relação ao ofício de mestre queijeiro é no tocante ao momento atual de crise do emprego e de precarização do trabalho. A lógica da flexibilização e desregulamentação do mercado que tem como objetivo reduzir os custos do trabalho pelo enxugamento dos quadros de pessoal, utilizando-se a mão-de-obra de operários com vínculos empregatícios precários, trabalho autônomo, por tarefa, estágios e trabalho domiciliar, inserindo transformações gerenciais e Programas de Qualidade Total presente no mundo do trabalho, afeta o trabalho no ramo de laticínios pelo lado da demanda por maior competitividade, produtividade, padronização dos produtos e exigências de qualidade. Para concluir, um dos aspectos que podemos citar em relação a nova configuração da divisão sexual do trabalho, tendo em vista a precarização e a flexibilização do tabalho, de acordo com Kergoat (apud HIRATA e KERGOAT, 2007, p.600), são os nomadismos sexuados: nomadismo no tempo, para as mulheres (é a exploração do trabalho em tempo parcial, geralmente associado a períodos de trabalho dispersos no dia e na semana), nomadismo no espaço para homens (provisório, banalização e aumento dos deslocamentos profissionais na Europa e em todo o mundo para executivos).
5 A indústria de laticínios, segundo informações fornecidas pelos gerentes, não utiliza trabalhadores provisórios no processo de produção. A manipulação do leite requer cuidado e atenção de pessoas treinadas, embora a formação escolar dos trabalhadores que atuam no processo produtivo seja precária. A produção do leite depende de condições climáticas, produtividade do gado, e o seu processamento desde o curral depende do controle de qualidade uma vez que exige armazenamento e manipulação adequados. No que diz respeito à intensificação do trabalho (flexibilização), o ofício do mestre queijeiro responde a uma cadência e ritmo imposto pelas normas disciplinares do trato com o leite e acumulação de uma série de atividades. O trabalhador da indústria sofre pressão quanto ao ritmo e à qualidade do trabalho. Referências BLASS, Leila Mª da Silva (org). Ato de trabalhar. Imagens e representações. S.P.: Annablume,2006. CARLOTO, Cassia Mª. O conceito de gênero e sua importância para a análise das relações sociais. Serviço Social em Revista, v.3, nº 2, Jan/Jun, 2001. Disponível em: http://www.ssrevista.uel.br/cv3n2.htm. DIAS, João C. 500 Anos de Leite no Brasil. São Paulo: Calandra, 2006. FARTES, Vera Lúcia Bueno. Trabalhando e Aprendendo: adquirindo qualificação em uma indústria de refino de petróleo. Educação e Sociedade, n. 78, p. 225-254, abr., 2002. FERRETTI, Celso João. Opção Trabalho: trajetórias ocupacionais de trabalhadores das classes subalternas. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1988. MARX, K. O Capital: Crítica da economia política. 2 ed. São Paulo: Nova Cultura, 1985. MARX e ENGELS. A Ideologia Alemã (I FEUERBACH). 3.ed. Tradução de J.C.Bruni e M.A. Nogueira. São Paulo: Ciências Humanas, 1982. HIRATA, Helena e KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa. V.37, n.132, p.595-609, set/dez.2007. 1 Visitamos quatro Fabriquetas e onze Indústrias de laticínios da região sudoeste da Bahia.