A TRAGÉDIA NA FILOSOFIA E NO CINEMA: UMA REFLEXÃO SOBRE O FILME CISNE NEGRO



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Transcrição:

A TRAGÉDIA NA FILOSOFIA E NO CINEMA: UMA REFLEXÃO SOBRE O FILME CISNE NEGRO Alexandre Alves da Silva Marjorie Maia RESUMO: O seguinte ensaio tem como objetivo construir um diálogo entre os impulsos apolíneo e dionisíaco, discutidos por Friedrich Nietzsche (1844-1900) em seu livro O nascimento da tragédia e a compreensão de seu pensamento por meio dos conceitos-imagem construídos e articulados pelo cinema, especificando o filme Cisne Negro (2010), produzido pelo diretor Darren Aronofsky. PALAVRAS-CHAVE: Filosofia. Tragédia. Cinema. Cisne negro. 1 INTRODUÇÃO Em sua juventude, Nietzsche escreve a sua obra intitulada O nascimento da tragédia, ou helenismo e pessimismo. A partir dela, o filósofo busca refletir a arte enquanto manifestação da vida. A arte é capaz de reproduzir a realidade, de distorcer o que é real e de empregar valores, ou desvirtuá-los. Dentro do universo artístico, a moral e a desordem se fazem presentes como duas forças antagônicas em constante conflito. De acordo com o que é descrito no seu livro, o contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco (NIETZSCHE, 1992, p. 27). Graduando em Pedagogia, pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail: alexandrrealves@gmail.com Graduada em Pedagogia, pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail: marjorie_maia@yahoo.com.br 93

Os termos apolíneos e dionisíacos surgem dos nomes dos deuses gregos Apolo e Dionísio. O primeiro representa a arte da imagem, como também a beleza, a ordem, o sonho, o limite; já o segundo, representa a forma não-figurada da música e da embriaguez, a ruptura com o limite e a exaltação à liberdade. A oposição existente entre estes dois impulsos geram um confronto, chegando, em um momento, à reconciliação. Segundo Nietzsche, a arte apolínea, a do figurador plástico, e a arte não figurada (dionísica) caminham lado a lado, ambos em discórdia constante e capazes de gerar algo novo para perpetuar nelas a luta daquela contraposição sobre a qual a palavra comum arte lançava apenas aparentemente a ponte (1992, p. 27). Por fim, de acordo com o filósofo, estas duas forças se uniriam dando origem à tragédia. Também é proposto por meio deste texto o diálogo entre a filosofia e o cinema. Segundo Julio Cabrera (2005), o cinema possui a capacidade de articular o pensamento filosófico desenvolvido nas obras literárias (as quais ele define como conceitos ideia ), com o cinema que produz os conceitosimagem. Entendendo que o cinema educa por meio da imagem, o objetivo deste trabalho consiste em aprofundar a discussão entre a duplicidade do apolíneo e o dionisíaco, e a relação que ambos possuem com o filme Cisne Negro (2010), do diretor Darren Aronofsky. 2 O IMPULSO APOLÍNEO E DIONISÍACO SEGUNDO NIETZSCHE Em seu livro, Nietzsche defende o pensamento de que a vida se manifesta por meio da arte. Esta manifestação se dá por meio de dois impulsos, sendo eles o apolíneo e o dionisíaco. Referências aos deuses da mitologia grega, que regem a arte: Apolo e Dionísio. Estes impulsos são divergentes entre si e apresentam características típicas nas manifestações 94

artísticas. Considera-se como apolíneo as artes plásticas, a bela imagem e a harmonia das formas; como dionisíaco, a música, a embriaguez, o impulso sexual, o disforme. Segundo o filósofo, Para nos aproximarmos mais desses dois impulsos, pensemo-los primeiro como os universos artísticos, separados entre si, do sonho e da embriaguez, entre cujas manifestações fisiológicas cabem observar uma contraposição correspondente à que se apresenta entre o apolíneo e o dionisíaco (NIETZSCHE, 1992, p. 28). Considerando o impulso apolíneo e dionisíaco como manifestações de Apolo e Dionísio no universo da arte, faz-se necessário desenvolver uma reflexão em torno destes deuses. Sobre Apolo, considera-se como o deus da imagem onírica, da harmonia, da ordem. Para Nietzsche, A bela aparência do mundo do sonho, em cuja produção cada ser humano é um artista consumado, constitui a precondição de toda arte plástica. (NIETZSCHE, 1992, p. 28). As imagens dos sonhos constituem-se como imitação da vida ou, como o filósofo cita, a partir dessas imagens interpreta a vida (NIETZSCHE, 1992, p. 28). Estas experiências com o sonho variam entre o que considera como as imagens amistosas e as imagens que exprimem a angústia. De acordo com Nietzsche (1992), As imagens agradáveis e amistosas não são as únicas que o sujeito experimenta dentro de si como aquela onicompreensão, mas, outrossim, as sérias, sombrias, tristes, escuras, as súbitas inibições, as zombarias do acaso, as inquietas expectativas, em suma, toda a divina comédia da vida, com o seu Inferno, desfila à sua frente, não só como um jogo de sombras pois a pessoa vive e sofre com tais cenas mas tampouco sem aquela fugaz sensação da aparência (NIETZSCHE, 1992, p. 29). 95

Sendo o deus dos poderes configuradores, e capaz de proporcionar a harmonia das formas e a bela aparência das coisas, Nietzsche atribui a Apolo a beleza e a harmonia das artes plásticas. A relação do apolíneo com as manifestações artísticas parte, também, do endeusamento do principium individuationis 1 a partir da ordem e da harmonia das coisas. Apolo estabelece a ordem e o limite na arte como redenção do indivíduo, assim como a exigência do Conhece-te a ti mesmo e Nada em demasia (NIETZSCHE, 1992, p. 40). Essa limitação, estabelecida por uma divindade ética, nasce com o objetivo de alcançar a perfeição e a beleza por meio da imagem da arte. A relação apolínea que estabelece a harmonia e a prudência com a finalidade de limitar o indivíduo em prol da ordem e da bela aparência na arte é desafiada pelo impulso dionisíaco, capaz de suspender o véu de Maia que cobre o homem, conduzindo às experiências físicas da realidade. Por meio da música e da dança, o impulso dionisíaco expressa características opostas ao apolíneo; enquanto que este mantém a ordem e a perfeição a fim de conservar a beleza e a harmonia das coisas, já dito anteriormente, o espírito dionisíaco preza pela desfiguração da arte, pela desordem, pela liberdade manifestada pela embriaguez, seja por meio do acesso à beberagem narcótica, ou pela primavera que se aproxima capaz de, segundo Nietzsche, impregnar toda a natureza de alegria (NIETZSCHE, 1992, p. 30). A música, segundo Schopenhauer, é uma arte a tal ponto elevada e majestosa, que é capaz de fazer efeito mais poderoso que qualquer outra no mais íntimo do homem (SCHOPENHAUER, 2003, p. 227). Este pensamento colabora para compreender a liberdade que o impulso dionisíaco, presente na arte da música, envolve o homem e o impulsiona a 1 Entende-se por principium individuationis, ou princípio da individuação, a intimidade do ser humano, capaz de se distinguir do outro. É o processo de formação do homem enquanto indivíduo. 96

unir-se com a natureza. Diferente da música harmoniosa apolínea, o impulso dionisíaco atribui ao canto a experiência do êxtase, permitindo embriagar-se nela. A arte regida pelo deus Dionísio deus da vida, da dor, da música, do sexo, do êxtase rompe com o controle estabelecido por Apolo, que envolveu o homem e o instruiu a se redimir por conceitos do autoconhecimento e o evitar a experiência demasiada das coisas. O impulso dionisíaco é violento, capaz de arrastar multidões para o canto e a dança. Embriagado e movido por um profundo êxtase, este homem rompe com o limite entre o eu, o outro e toda a natureza; capaz de romper com o véu de Maia, o espírito dionisíaco revela ao homem uma realidade além da bela aparência envolvida por Apolo. O homem agora descobre um mundo diferente, não mais finito e individual, capaz de perceber apenas por meio da embriaguez da arte dionisíaca. Em seu livro, Nietzsche revela o efeito desta experiência: Agora o escravo é um homem livre, agora se rompem todas as rígidas e hostis delimitações que a necessidade, a arbritariedade ou a moda impudente estabelecem entre os homens. Agora, graças ao evangelho da harmonia universal, conciliado, fundido com seu próximo, mas um só, como se o véu de Maia tivesse sido rasgado e, reduzido a tiras, esvoaçasse diante do misterioso Uno primordial (NIETZSCHE, 1992, p. 31). Rompendo com o principium individuationis, o homem restabelece uma experiência de unidade transcendental com a toda a natureza e se alia a esta, no que Nietzsche chama de Uno primordial. Conforme o pensamento do filósofo, por meio da arte dionisíaca: [...] manifesta-se o homem como membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu a andar e falar, e está a ponto de, dançando, sair voando pelos ares. De seus gestos fala o encantamento. Assim como agora os animais falam e a terra dá leite e mel, do interior do homem também soa algo de sobrenatural: ele se sente como um deus, 97

ele próprio caminha agora tão extasiado e enlevado, como vira em sonho os deuses caminharem (NIETZSCHE, 1992, p. 31). Esta experiência de liberdade e unidade só é capaz de ser vivida a partir da ruptura com todo limite estabelecido pela arte apolínea. Apenas por meio da embriaguez, pelo profundo êxtase causado pela música e dança que louvavam o deus Dionísio que é possível conduzir o homem ao Uno primordial. Resumindo, a arte regida pelo impulso dionisíaco propõe romper com os limites em torno do indivíduo, construídos pelo impulso apolíneo. Embora o espírito dionisíaco permita ao homem esta liberdade, a ruptura com todo limite estabelecido pelo impulso apolíneo e, em conseqüência disto, alcançar um estado de união com a natureza, vale compreender que não se trata de uma desvalorização do culto à forma, à arte bela e harmoniosa. Como foi dito por Nietzsche, o impulso dionisíaco e apolíneo chega, em determinado momento, a uma reconciliação, aparelhados um com o outro (NIETZSCHE, 1992, p. 27). E é a partir deste aparelhamento entre os dois impulsos que nasce a tragédia grega. 3 A RECONCILIAÇÃO ENTRE OS IMPULSOS: A ORIGEM DA TRAGÉDIA GREGA A união entre os dois seres, Apolo e Dionísio, configura na arte o surgimento da tragédia. Esta união está sob a força dionisíaca, uma vez que se considera na mitologia o deus Dionísio como o deus da dor e, inclusive, da morte. Ao ultrapassar o véu de Maia, é apresentado ao homem o mundo tal qual ele é, trágico, imperfeito, propenso à dor, desmedido, além da existência humana que é finita e, uma vez possuindo uma finitude, faz-se necessário buscar a forma de como vivê-la em plenitude. Por sua vez, o impulso apolíneo tem como função amenizar, através do olhar frente ao belo, toda a dor revelada pelo impulso dionisíaco. 98

A tragédia surge de dentro do coro, onde manifestam a força apolínea e a dionisíaca através do culto a Dionísio, pelos ditirambos 2, unidos pelo canto e o som da flauta. O coro ditirâmbico tinha a função primordial em aproximar a arte trágica à realidade e nesta aproximação a divindade tornava-se presente e visível a cada um. Segundo Nietzsche, Agora o coro ditirâmbico recebe a incumbência de excitar o ânimo dos ouvintes até o grau dionisíaco, para que eles, quando o herói trágico aparecer no palco, não vejam algum informe homem mascarado, porém uma figura como que nascida da visão extasiada deles próprios (NIETZSCHE, 1992, p. 62). Por meio do coro, as fronteiras entre os indivíduos se rompem, estabelecendo uma unidade diante do que se é apresentado no palco por aqueles que deixam seus estados civis para assumir papéis fora de seu tempo e espaço. À medida que o coro construía este imaginário, e neste aspecto é Apolo quem dá forma à vida, construindo a imagem ao espectador, onde a arte se fazia presente e inebriava quem estava envolvido, o espectador se extasiava diante do espetáculo criado pelo coro que visualizava a imagem representada. O público não enxergava diante de si atores, figuras comuns. Inclusive, Nietzsche traz em seu livro uma comparação entre o coro grego e o nosso público teatral contemporâneo: ao passo que este acredita e considera importante provar a si mesmo que o que assiste diante de si não passa de uma ficção, o coro grego se permitia reconhecer no palco a presença das figuras, interpretadas, de fato existentes e vivas. Esta experiência da catarse, capaz de construir reflexões acerca de si mesmo e da realidade que o envolve a partir da forte emoção que o espectador vivencia durante o contato com a imagem e o som nos é 2 Compreende o ditirambo como o coral grego, composto por um solista e um coro cujas atividades consistiam em cantar, dançar e tocar instrumentos como a flauta, em louvor ao deus Dionísio. 99

oferecida em outra manifestação de arte como é o caso da arte cinematográfica. Os conceitos imagem presentes nos filmes possibilitam a compreensão de conceitos filosóficos presentes em obras literárias. No que se refere às reflexões nietzschianas acerca dos impulsos apolíneo e dionisíaco, podemos compreendê-las a partir da análise do filme de Darren Aronofsky, produzido no ano de 2010. 4 O APOLÍNEO E O DIONISÍACO: CONCEITOS IMAGEM NO FILME CISNE NEGRO Como toda arte, o cinema possui a capacidade de inserir o indivíduo naquilo que lhe é apresentado. Dentro do ambiente escuro da sala de cinema, o espectador está sujeito a desligar-se do mundo exterior, e a mergulhar no universo que se revela a seus olhos. Como pensa Munsterberg, o cinema, ao invés de obedecer às leis do mundo exterior, obedece as da mente (MUNSTERBERG, 1983, p. 38). O indivíduo assume o olhar da câmera e, a partir desta ação, observa a realidade em que os personagens estão submetidos. Esta força que a câmera possui é capaz de direcionar o espectador a uma nova realidade, a fim de compreender a mesma. Esta relação entre a câmera e o espectador foi pensada por Béla Bálazs (1983). Segundo o autor: No cinema, a câmera carrega o espectador para dentro mesmo do filme. Vemos tudo como se fosse do interior, e estamos rodeados pelos personagens. Estes não precisam nos contar o que sentem, uma vez nós vemos o que eles vêem e da forma que eles vêem [...] Nossos olhos estão na câmera e tornam-se idênticos aos olhares dos personagens. É neste fato que consiste o ato psicológico de identificação (BALÁZS, 1983, p. 85). A experiência cinematográfica deve ter um efeito de choque sobre o pensamento e forçar o pensamento a pensar tanto em si mesmo quanto no todo (DELEUZE, 2009, p. 192). Este choque sofrido pelo espectador em 100

contato com o cinema provoca o despertar do pensamento e a compreensão de conceitos até então não esclarecidos pelo contato com a literatura. Esta experiência também é discutida por Julio Cabrera (2005), ao atribuir a capacidade de produzir o pensamento por meio do contato com o cinema através do que ele chama de conceitos imagem. Para Cabrera, a experiência logopática oferecida pelos conceitos imagem procura construir o pensamento por meio do contato com o cinema e que, segundo o autor, tenha um valor cognitivo, persuasivo e argumentativo através de seu componente emocional (CABRERA, 2005, p. 32). A partir desta análise podemos conceber a reflexão do que Nietzsche constrói em torno dos impulsos apolíneo e dionisíaco a partir do cinema. Os conceitos idéias desenvolvidos pelo filósofo acerca das forças que deram origem à tragédia grega podem ser considerados pelos conceitos imagem presente no filme Cisne negro, produzido no ano de 2010, pelo cineasta Darren Aronofsky. O filme é narra a história de Nina (interpretada por Natalie Portman), uma bailarina que deseja o concorrido papel da Rainha dos Cisnes, na peça O Lago dos Cisnes. Nina possui as características de uma garota tímida, reprimida e isolada; tudo isso é em prol de sua dedicação ao trabalho com perfeição para garantir o papel almejado. Sonha em ser uma bailarina perfeita e, por isso, se preocupa com a perfeição técnica e a sua bela aparência. Este sonho é compartilhado com a sua mãe, uma bailarina aposentada que se preocupa com a boa forma e sua bela aparência, além de proteger a sua filha do perigoso mundo e das más companhias. Entre todas as bailarinas, Nina conquista o papel da Rainha dos Cisnes, e seu trabalho é interpretar o doce Cisne Branco e o malicioso Cisne Negro, ambos personagens protagonistas do espetáculo. 101

A bailarina consegue se desenvolver em torno do personagem Cisne Branco, devido às características psicológicas que possui; entretanto, não se permite encarnar a sensualidade, o êxtase e a malícia do Cisne Negro. Nina não consegue se permitir romper com as limitações impostas por si mesmo e por sua mãe, que fantasiou para sua filha um imaginário de pureza, prudência e controle. O medo de Nina em perder a chance de consolidar uma carreira por meio do espetáculo se torna maior quando surge Lily, outra bailarina que é o oposto a protagonista: livre, sensual, permite-se embriagar pela dança e componentes narcóticos. Em torno do filme percebe-se, por meio dos conceitos imagem, a presença dos impulsos apolíneo na personagem Nina e como sua pureza e preocupação com a perfeição é abalada pela aparição do impulso dionisíaco, presente em Lily. A nova Rainha dos Cisnes teme romper com o impulso que lhe obriga a buscar a harmonia das coisas, da preocupação com a técnica e a bela aparência dos movimentos. Teme a presença da mãe que, como o véu de Maia já discutido por Nietzsche impede que a filha enxergue o mundo do prazer, e da desordem. O contato entre Nina e Lily nas noites causa a ruptura com o universo ilusório e, por fim, os dois impulsos artísticos se unem. A estética do filme, neste ponto, é bem trabalhada, através do posicionamento da câmera, a ponto de não saber mais quem é Nina ou quem é Lily. Retomando a reflexão de Nietzsche (1992), é a partir da conciliação entre o impulso apolíneo e o dionisíaco que a tragédia nasce. A protagonista, após se libertar de todos os limites, consegue encarnar o Cisne Negro (uma das cenas mais belas do filme, inclusive) e a câmera constrói na retina do espectador a imagem do trágico fim de Nina: para tornar-se perfeita, ela destrói o impulso apolíneo por completo, o que conduz a sua própria destruição. Este conceito imagem revela o dionisíaco como o deus 102

da morte e, sem unir-se com a beleza apolínea, é destinado à autodestruição. 5 CONCLUSÃO Somente por meio da união entre o apolíneo e o dionisíaco que a tragédia nasceu e transformou o conceito de arte. O apolíneo sem o dionisíaco é apenas uma figuração do fantasioso, ao passo que o dionisíaco sem o apoio do impulso apolíneo nada mais é senão desordem, caos, autodestruição. Dionísio precisa da beleza do deus Apolo, a fim de a tragédia ganhar forma. Assim, a presença de ambos os impulsos é necessária para a visualização da arte. É a figuração do apolíneo por meio das máscaras e vestes que dá forma e compreensão à música e ritmo da liberdade do espírito dionisíaco. No campo do cinema e da filosofia, a primeira possui um caráter educativo quando se alia à segunda. Trazer estes conceitos filosóficos ao território da imagem em movimento, sob o olhar da câmera, possibilita a construções de reflexões críticas acerca de conceitos desenvolvidos e expostos em obras literárias. Precisamente, por meio do filme pôde fazer a experiência logopática de buscar compreender o que Nietzsche desenvolveu em O nascimento da tragédia. A catarse construída pelo espectador em contato com o filme Cisne Negro possibilita uma compreensão acerca da luta entre os dois impulsos que conceberam a tragédia. REFERÊNCIAS BALÁZS, Béla. Nós estamos no filme. In: XAVIER, Ismail (ORG.). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal; Embrafilme, 1983, p. 84-6. 103

CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. DELEUZE, Gilles. Cinema 2: a imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2009. MUNSTERBERG, Hugo. A memória e a imaginação. In: XAVIER, Ismail (ORG.). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal; Embrafilme, 1983, p. 36-45. NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das letras, 1992. SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do belo. São Paulo: UNESP, 2003. CISNE NEGRO. Direção: Darren Aronofsky. DVD. (108 min). Colorido, legendado. Fox film: Estados Unidos, 2010. Alexandre Alves da Silva http://lattes.cnpq.br/1133038460997855 Marjorie Maia http://lattes.cnpq.br/3274848568531734 Home Índice Minicurrículos dos autores Revista Pandora Brasil Nº 37 Dezembro de 2011 - ISSN 2175-3318 "subjetividade e tragédia: A construção do indivíduo na literatura trágica e alhures" 104