Ritmos biológicos: entendendo as horas, os dias e as estações do ano
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1 143 Revendo Ciências Básicas O objetivo desta subseção é apresentar revisões concisas sobre temas relacionados com as ciências básicas, ou seja, procurar rever as bases da prática médica. A justificativa para a inclusão de tópicos dessa natureza relaciona-se com os significativos progressos dessas ciências nas últimas décadas e à necessidade absoluta de atualização por parte da equipe de saúde, para o benefício dos pacientes. Magda M. S. Carneiro-Sampaio Editora Associada da einstein Ritmos biológicos: entendendo as horas, os dias e as estações do ano Regina Pekelmann Markus 1, Eduardo José Mortani Barbosa Junior 2, Zulma Silva Ferreira 3 1 Professora Titular do Laboratório de Cronofarmacologia (DF) do Instituto de Biociências da USP. 2 Graduado em Ciências Moleculares pela USP. Aluno do 6 o ano da FMUSP. 3 Professora Assistente Doutora do Laboratório de Cronofarmacologia (DF) do Instituto de Biociências da USP - Universidade de São Paulo (SP). Resumo Esta revisão tem por objetivo apresentar aos médicos em geral os principais conceitos e a evolução no campo da cronobiologia. Este campo busca o entendimento de como os seres vivos manuseiam as recorrências temporais e como os diferentes organismos são capazes de sincronizar as suas atividades a estas variações. Do ponto de vista físico, a alternância claro-escuro é a forma básica de marcação do tempo. Esta alternância pode variar de acordo com as estações do ano, de tal forma que a duração do fotoperíodo é maior no verão do que no inverno. Para que os seres vivos possam acompanhar estas variações há necessidade de um relógio endógeno, que marque o tempo de forma independente de qualquer variação ambiental; há necessidade de sensores que percebam a variação temporal e de sistemas humorais e neurais que informem a todo o organismo o estado de iluminação ambiental. Nesta revisão serão abordados os funcionamentos dos relógios biológicos, dos sensores retinianos para a luz e também a atuação da melatonina. Este é um hormônio liberado no período de escuro pela glândula pineal e tem como função básica informar ao organismo que está escuro. É importante frisar que este é o hormônio do escuro em todos os animais e plantas pesquisados. Assim sendo, a melatonina informa que está escuro e as células-alvo devem ter toda uma maquinaria adequada para adaptar-se a esta condição. Este hormônio ganha importância também na interação entre seres vivos, que será mostrado com detalhes no caso da malária. Em resumo, esta revisão abordará conceitos importantes na Biologia do Tempo. Fenômenos periódicos permeiam toda nossa existência. A importância destes fenômenos em nossas vidas é de tal ordem que basta imaginar que sem eles não desenvolveríamos a percepção e provavelmente nem sequer o conceito de tempo. Os fenômenos periódicos constituem o alicerce da ciência. A elucidação das leis da física baseia-se na detecção de eventos que ocorrem de forma repetitiva e previsível os quais definimos como fenômenos periódicos. Estes permitem-nos vislumbrar em um mundo extraordinariamente complexo, e à primeira vista aparentemente incompreensível, a existência de uma ordem subjacente. A lógica interna e a coerência da nossa representação mental do mundo exterior, e por extensão nossa própria mente, dependem crucialmente desta percepção. A moderna biologia deixa de tratar apenas de estruturas espaciais, de forma descritiva, ou de fenômenos que evoluem variavelmente no tempo, como o envelhecimento, passando a questionar a dinâmica dos sistemas biológicos. Da investigação de padrões regulares da ritmicidade biológica e da interação desta com a ritmicidade ambiental surgiu um novo ramo da ciência, a cronobiologia. Desta podem derivar várias aplicações médicas, como a cronofarmacologia, que não só lida com fármacos que podem alterar a estrutura temporal endógena, como também com a melhoria da resposta de fármacos convencionais, ao serem administrados nos horários mais convenientes. O organismo vivo multicelular precisa atuar de forma integrada e sincronizada. A comunicação entre diferentes órgãos e sistemas pode ser feita de forma rápida e direcionada, como ocorre com as informações que transitam através da rede neural, ou de forma mais difusa e integradora, como ocorre com o sistema endócrino. Nos dois casos os sistemas transmitem a informação em tempo real e os órgãos-alvo vão reagir segundo o estado em que se encontram no momento em que recebem o estímulo. Para um excelente funcionamento do organismo multicelular há necessidade de que o organismo esteja preparado para receber uma determinada informação e responder de forma adequada. Este conceito implica prever o que irá ocorrer a fim de responder apropriadamente. Considerando os ciclos naturais aos quais somos submetidos, o organismo precisa estar preparado para o amanhecer e para todas as demais fases das 24 h do einstein 2003; 1:143
2 144 dia para que possa responder de forma apropriada aos desafios que surgem. Estar preparado para saber que horas são implica ter uma forma própria de marcar a passagem do tempo. Também implica que este mecanismo próprio possa ser modulado por variações ambientais. Por exemplo, o organismo deve ter como saber, de forma independente da percepção voluntária, que estamos no período de inverno ou de verão. Em vista do exposto fica claro que há necessidade de um sistema marcador do tempo, envolvido não apenas com a duração da vida, portanto com o passar do tempo ao longo de uma vida inteira (o envelhecer), mas que também permita marcar o tempo de forma recorrente, informando a cada momento em que hora do dia estamos (figura 1). O estudo da Cronobiologia foi iniciado em 1729, quando Jean Jacques d Ortous Mairan mostrou que o ritmo diário de abertura e fechamento de folhas em plantas era mantido mesmo no escuro constante. No entanto, apenas no séc. XXI começam a ser descobertos elementos essenciais para o entendimento dos ritmos em mamíferos, com a descrição dos mecanismos moleculares de funcionamento do relógio biológico e da existência de uma via de percepção de luz que não atinge o córtex, mas sim o hipotálamo, sendo portanto completamente independente da visão. Apenas estes dois tópicos justificariam um olhar especial sobre o tempo biológico, mas gostaríamos aqui também de deixar registrada a importância da melatonina, hormônio que participa como um sinalizador endógeno da Organização Temporal Interna. Este hormônio também é muito importante para que haja a interação de dois seres vivos, o que será exemplificado com a temporização da relação hemácia-parasita, no caso da malária. Este exemplo evidencia uma possível aplicação clínica de princípios e conhecimentos da cronobiologia, conforme descreveremos adiante. Relógio biológico Para que haja ritmicidade circadiana endógena em um ser vivo, é necessário que alguma estrutura opere como um marcapasso. Marcapassos podem ser definidos como osciladores primários, que exibem um padrão oscilatório geneticamente determinado, auto-sustentado, endógeno, mesmo na ausência de pistas temporais externas. Apesar de todas as células do organismo terem padrões de oscilação endógena que marcam ritmos de aproximadamente 24 h (1), dois pequenos aglomerados de neurônios no hipotálamo, adjacentes ao quiasma óptico, cada um perfazendo cerca de céls. e ocupando um volume de meros 0,1 mm 3 constituem os marcapassos geradores da ritmicidade circadiana em mamíferos, ou seja, os relógios biológicos circadianos. São os núcleos supraquiasmáticos (NSQ) (figura 2). Estes núcleos ciclam mesmo quando todas as conexões neurais são eliminadas ou quando os núcleos são mantidos em cultura (1). A confirmação do papel de Figura 1. Esquema dos sistemas envolvidos na Organização Temporal Interna de mamíferos. Todas as células do organismo possuem osciladores, mas o relógio biológico (oscilador principal que promove os ritmos circadianos) está localizado nos núcleos supraquiasmáticos. Este relógio comunica-se com o meio ambiente recebendo informações fóticas da retina, e controla o organismo através de vias neurais e humorais. A principal função da glândula pineal é produzir o hormônio do escuro, a melatonina. Este hormônio temporiza as atividades do organismo. Figura 2. A alternância claro-escuro controla a biossíntese de melatonina. O gene responsável pela produção da enzima N-acetiltransferase é transcrito a partir da ativação de adrenoceptores beta estimulados por noradrenalina liberada no período de escuro. O segundo mensageiro (AMP cíclico) desta via de transdução não só induz a tradução do gene, como também a estabilização da proteína. Em claro constante a produção da melatonina é abolida. Em escuro constante esta produção entra em livre curso, comandado pela oscilação do relógio biológico, localizado nos núcleos supraquiasmáticos. NAT - N-acetiltransferase, HIOMT, hidroxi-indol-o-metiltransferase, NAS - N-acetilserotonina. einstein 2003; 1:144
3 145 marcapasso central exercido pelo NSQ veio através de experimentos que envolviam a lesão completa dos núcleos em hamsters adultos, seguida de transplante de núcleos provenientes de fetos para o terceiro ventrículo cerebral dos ratos lesionados. Este procedimento restaurava a ritmicidade circadiana que havia sido perdida com a lesão. A maquinaria oscilatória do relógio está contida em uma única célula (1). Os genes do relógio são expressos de forma rítmica e são encontrados em várias outras localidades no sistema nervoso central e mesmo em células somáticas. No entanto, estes são considerados servo-relógios. Os mecanismos das células dos NSQ e dos servo-osciladores são muito semelhantes, e até hoje não se sabe por que aquele pequeno núcleo hipotalâmico funciona como o relógio central. No entanto, é possível que as principais diferenças estejam relacionadas à expressão e ao padrão de modulação de genes em proteínas, ao invés de em diferenças qualitativas entre ambos. Em resumo, o genótipo é essencialmente o mesmo, mas o seu padrão de ativação diferenciado é o que resulta em funcionamentos distintos. A base de funcionamento do relógio é a interação entre alças de retroalimentação positivas e negativas, que fazem com que determinadas proteínas e fatores de transcrição sejam expressos e transcritos com diferença de 12 horas. Em outras palavras, a proteína sintetizada a partir de um gene é capaz de inibir a ativação do mesmo e ativar a transcrição do gene que se expressa com alternância de fase. Este ciclo se repete indefinidamente (1). Os heterodímeros CLOCK-BMAL1 ativam a transcrição de três genes chamados período (mper1 mper3) e dois chamados criptocromo (mcry1 e mcry2). As proteínas derivadas de mper e mcry translocam-se de volta para o núcleo, onde as proteínas mcry interagem diretamente com os genes clock e bmal1, inibindo a sua transcrição. Portanto esta é a alça negativa. A alça positiva envolve a regulação da transcrição de Bmal1, cujo pico de RNAm ocorre 12 h defasado em relação aos mrna dos genes mper e mcry. O heterodímero CLOCK-BMAL1, ao mesmo tempo em que ativa os genes mper e mcry, também inibe a produção do RNAm responsável pela síntese de BMAL. O produto final deste ritmo gênico é uma saída neural que conecta os núcleos supraquiasmáticos através de uma via polissináptica à coluna intermediolateral da medula e daí para a saída autonômica simpática. Esta é a saída neural (2). Os núcleos enviam informações rítmicas, com um período de aproximadamente 24 h, e na fase de claro o sinal está OFF, enquanto na fase de escuro o sinal está ON. Portanto, estas fibras conduzem no período correspondente ao escuro, ou à noite subjetiva, quando o sujeito é mantido em escuro constante. Existe também uma saída humoral. Fibras que se originam no gânglio cervical superior (um gânglio simpático) inervam diretamente a glândula pineal. A liberação dos neurotransmissores noradrenalina e ATP (3) promove a síntese de melatonina. Portanto, melatonina é sintetizada apenas na fase de escuro. Lembrando que a duração do escuro é menor no verão do que no inverno, este hormônio também sinaliza as estações do ano. O ajuste do relógio O ajuste entre o meio ambiente e o relógio é feito por via neural. No caso dos mamíferos, incluindo o homem, a principal oscilação ambiental percebida pelo relógio biológico é a alternância claro-escuro. Existe uma via retino-hipotalâmica que informa aos NSQ a alternância claro-escuro, e o descobrimento de uma nova molécula fotorreceptora (melanopsina) feita recentemente abre uma nova fronteira para o entendimento da percepção da luz e sua influência sobre os ritmos biológicos (4). A fotorrecepção é feita na retina através de células especializadas, conhecidas como cones e bastonetes. Estas células são capazes de traduzir a onda luminosa em um sinal químico e com isso iniciar alterações elétricas no nervo óptico. Recentemente foi mostrado que além de cones e bastonetes, existem fotorreceptores em células ganglionares. Estas células contêm moléculas de melanopsina, que fazem parte da superfamília de receptores acoplados a proteínas G e que estão presentes em células que se projetam diretamente para os núcleos supraquiasmáticos. Portanto, além de enviar informações luminosas para o córtex cerebral e formar a visão, a retina envia informações para o relógio biológico, promovendo o ajuste do mesmo. É importante frisar que este sistema de recepção de luz é redundante e os diferentes mecanismos compõem um processo que só é perdido totalmente com a enucleação do globo ocular. Estes achados recentes são a base estrutural que faltava para um antigo conhecimento clínico. Muitos sujeitos que são cegos totais, sem nenhuma percepção luminosa consciente, são capazes de ajustar o relógio biológico ao ciclo claro-escuro ambiental. Saber que a via retino-hipotalâmica opera de forma independente da visão consubstancia a percepção clínica existente. einstein 2003; 1:145
4 146 Melatonina - o hormônio do escuro As variações rítmicas do relógio central (NSQ) chegam a todo o organismo, principalmente através de um sinal humoral. O tráfego de potenciais de ação pelo terminal simpático que se origina no gânglio cervical superior ocorre na fase de escuro. Os neurotransmissores noradrenalina e ATP atuam respectivamente via receptores noradrenérgicos (alfa e beta) e purinérgico P2Y1 (5), controlando a produção de N-acetiltransferase (NAT), que é uma enzima-chave na produção de melatonina. A glândula pineal é capaz de captar o aminoácido 5-hidroxitriptofano e transformá-lo em serotonina (5- hidroxitriptamina). A concentração de serotonina durante o dia é alta. Na fase de escuro há síntese da enzima NAT, que metaboliza a serotonina em N- acetilserotonina. Parte deste produto lipossolúvel é lançada na circulação, mas parte é metabolizada pela enzima hidroxi-indol-o-metil-transferase (HIOMT) em melatonina. A melatonina também é uma molécula lipossolúvel e também é lançada prontamente na circulação. Assim, temos um sinal formado no escuro. Em seguida, é importante considerar a duração do sinal. No caso da enzima NAT esta, logo após ser sintetizada, pode sofrer dois destinos. O primeiro é ser rapidamente degradada pelo sistema de proteassoma e o segundo é ser fosforilada e protegida desta degradação. Produtos intracelulares derivados da estimulação simpática são responsáveis por esta proteção. Portanto, temos o sinal ideal; a luz controla tanto o desencadear do sinal como a sua duração. Por outro lado, as variações da enzima HIOMT não são diárias, mas variam com o fotoperíodo (2). Esta variação fotoperiódica faz com que a produção de melatonina tenha uma duração maior no inverno do que no verão, e com isto sejam determinadas as estações do ano. Ordem temporal interna e a fisiopatologia A melatonina é uma molécula filogeneticamente antiga, presente na maioria das espécies, inclusive organismos unicelulares. Sua incrível ubiqüidade levou a questionamentos sobre qual seria seu principal papel biológico, e existem evidências plausíveis de que esta substância possui, além da coordenação da ritmicidade biológica, múltiplas funções nos processos de defesa dos organismos. O nome desta substância deriva da descoberta feita em 1917 por McCord e Allen, que verificaram que extratos da glândula pineal de gado eram potentes clareadores da pele de sapos. Em 1958, Lerner e colaboradores isolaram o princípio ativo responsável pela agregação dos melanóforos (grânulos que contêm melanina, proteína responsável pela coloração da pele): a N-acetil-5-metoxitriptamina, à qual denominaram melatonina (2). Como se pode avaliar a importância de uma dada substância química para um ser vivo? A resposta é, em princípio, extremamente simples: elimine-a do organismo e observe quais são as conseqüências. Este procedimento teve (e ainda tem) um valor inestimável em pesquisas biológicas de todo tipo. No caso da melatonina, tendo em vista que a produção dessa molécula ocorre essencialmente na glândula pineal (apesar de haver produção local em outros tecidos, como a retina, NSQ, testículo, etc. (6) ), é possível reduzir sensivelmente sua concentração no plasma pela extração cirúrgica da glândula (pinealectomia). Vários experimentos dessa classe foram executados desde a década de 1950 em diversos animais de laboratório, e os resultados foram até certo ponto surpreendentes, se nos remetermos à vastidão de mecanismos de ação da melatonina e à sua ubiqüidade biológica. O que se verificou é que não há importantes efeitos agudos, que comprometam a vida do animal em curto prazo. Mas a observação e a análise mais cuidadosa evidenciaram numerosas (ainda que muitas vezes sutis) alterações, que aprofundaremos a seguir, e que forneceram um substrato para o nosso atual conhecimento da importância fisiológica da melatonina. O limite do texto impõe uma restrição na discussão dos tópicos pertinentes, e assim apresentaremos alguns importantes exemplos sobre estudos que demonstram ser a melatonina um cronormônio, que portanto pode ser entendida como um cronofármaco. De todos os ritmos biológicos circadianos, o mais proeminente é o ciclo sono-vigília. Passamos entre um quarto e um terço de nossas vidas dormindo, e adquirimos desde muito cedo a expectativa de dormir e acordar, diuturnamente. Juntamente com os sonhos, componentes indissociáveis, o sono é objeto de indagação filosófica, literária e social desde o início da civilização. Conforme foi descrito em detalhes, a melatonina, por ser secretada na fase de ausência de luz, é o sinalizador biológico do escuro e como tal está obviamente correlacionada com o sono em espécies de atividade diurna, como a humana. Entretanto, devido ao fato de que a secreção de melatonina ocorre à noite, tanto em animais de atividade diurna (que dormem à noite) quanto em animais de atividade noturna (que dormem de dia), é pouco plausível que haja relação causal direta entre sono e melatonina. De fato, a melatonina parece einstein 2003; 1:146
5 147 afetar o sono indiretamente, através da sua influência na fase dos osciladores circadianos. Modelos mais recentes do controle do ciclo sono-vigília postulam que a sonolência, ou propensão a dormir, é proporcional à diferença entre a amplitude do oscilador circadiano, que flutua como uma função senoidal, e a amplitude do processo relacionado ao ciclo sono-vigília, que aumenta quanto mais nos afastamos do horário do último despertar. Assim, a supressão da secreção de melatonina com antagonistas adrenérgicos não afeta notavelmente o sono. Entretanto, a sonolência exibe um ritmo circadiano positivamente correlacionado com a concentração de melatonina no plasma e negativamente correlacionado com medidas de atividade. Ao contrário de drogas hipnóticas que induzem sono por depressão universal do sistema nervoso central, tais como barbitúricos e benzodiazepínicos, a melatonina afeta a propensão ao sono (sonolência), mas não o induz diretamente. Um ensaio clínico controlado (7), comparando o efeito de diferentes doses de melatonina, temazepam (um benzodiazepínico) ou placebo no sono precoce (entre 18 e 24 h) e no sono tardio (entre 23:30 e 7:30 h) concluiu que a melatonina não difere do placebo no sono tardio, mas tem efeito semelhante ao temazepam no sono precoce, melhorando o tempo total de sono, reduzindo o período de latência para o adormecer e aumentando o número de episódios de sono REM. No sono tardio esse efeito só é observado com temazepan. Conseqüentemente, a atividade hipnótica da melatonina ocorre numa janela temporal específica. Outros dados indicam que melatonina pode ter efeitos clínicos benéficos no tratamento da insônia provocada por estados de desordem temporal interna (como viagens transcontinentais), primariamente devido à sua ação sincronizadora. A melatonina tem-se mostrado relevante na sincronização de processos ligados a respostas imunes inatas (resposta inflamatória) ou adquirida. Neste caso, foram descritos efeitos tanto em concentrações fisiológicas quanto em concentrações farmacológicas. A melatonina endógena é responsável pela variação rítmica do tamanho e da permeabilidade vascular de lesões granulomatosas, sugerindo que também haja janelas temporais diferenciais no caso de tratamento com drogas antiinflamatórias (8-9). Finalmente, é importante salientar que esse hormônio é essencial para a interação parasita-hospedeiro (10), tendo como exemplo a malária, doença endêmica em diversas áreas tropicais do planeta, e causa ainda importante de morbimortalidade no mundo. Já se sabe desde a metade do século passado que a lise de hemácias, causada por plasmódios que as infectam em diferentes espécies de mamíferos é um processo temporalmente ordenado, que ocorre na fase de escuro, tanto em animais de hábito noturno quanto em animais de hábito diurno. Ao inverter-se o ciclo de iluminação de camundongos infectados com plasmódios, foi possível observar que ocorre uma alteração proporcional da esquizogonia. Um outro fato interessante é que esse processo tão bem sincronizado nos animais torna-se um processo completamente dessincronizado quando os parasitas são mantidos em hemácias em cultura. Desta forma, teria que haver uma molécula que pudesse sincronizar o mamífero e os parasitas simultaneamente. Recentemente foi demonstrado que esse papel é exercido pela melatonina. A melatonina liberada pelo mamífero sincroniza o parasita presente na hemácia. Suprimido este processo, suprime-se boa parte da morbimortalidade da malária. Ou seja, mediante a aplicação de conceitos cronobiológicos, desenvolveu-se uma alternativa terapêutica potencialmente eficaz, que pode ter no futuro importantes repercussões clínicas e epidemiológicas, visto que a sincronização do processo de lise das hemácias é passo sine qua non na fisiopatologia dessa prevalente doença. No caso do sistema endócrino tem-se que dar destaque à glândula pineal, sede da síntese de melatonina, ao receber inervação simpática controlada pelos núcleos supraquiasmáticos hipotalâmicos e ao sintetizar melatonina sempre na fase de escuro. Em síntese, a cronobiologia elucidou, nas últimas décadas, a existência de um sistema de regulação temporal neuroendócrino-imunológico, ou seja, que congrega os três grandes sistemas de coordenação do organismo, Este sistema atua sincronizando todos os sistemas do corpo aos grandes ciclos ambientais, exemplificados pelo ciclo dia-noite e pelas estações do ano. Por conseguinte, sabe-se atualmente que os organismos vivos, e em particular a espécie humana, não reagem passivamente à ritmicidade ambiental, mas sim se preparam ativamente e preventivamente diante desta. Ainda há muito que descobrir em relação ao funcionamento e a dinâmica dos ritmos biológicos, e os mecanismos de operação e regulação dos relógios estão apenas surgindo. Todavia, certamente surgirão novas e importantes aplicações clínicas da cronobiologia num futuro próximo, razão suficiente para estarmos atentos aos progressos dessa área fascinante. einstein 2003; 1:147
6 148 Referências 1. Reppert SM, Weaver DR. Coordination of circadian timing in mammals. Nature 2002;418: Simonneaux V, Ribelayga C. Generation of the melatonin endocrine message in mammals: a review of the complex regulation of melatonin synthesis by norepinephrine, peptides, and other pineal transmitters. Pharmacol Rev 2003;55: Mortani Barbosa EJ, Ferreira ZS, Markus RP. Purinergic and noradrenergic cotransmission in the rat pineal gland. Eur J Pharmacol 2000;401: Rollag MD, Berson DM, Provencio I. Melanopsin, ganglion-cell photoreceptors, and mammalian photoentrainment. J Biol Rhythms 2003;18: Ferreira ZS, Markus RP. Characterisation of P2Y(1)-like receptor in cultured rat pineal glands. Eur J Pharmacol 2001;415: Hamada T, Ootomi M, Horikawa K, Niki T, Wakamatu H, Ishida N. The expression of the melatonin synthesis enzyme: arylalkylamine N- acetyltransferase in the suprachiasmatic nucleus of rat brain. Biochem Biophys Res Commun 1999;258: Stone BM, Turner C, Mills SL, Nicholson NA. Hypnotic activity of melatonin. Sleep 2000;23: Lopes C, de Lyra JL, Markus RP, Mariano M. Circadian rhythm in experimental granulomatous inflammation is modulated by melatonin. J Pineal Res 1997;23: Lopes C, Mariano M, Markus RP. Interaction between the adrenal and the pineal gland in chronic experimental inflammation induced by BCG in mice. Inflamm Res 2001;50: Garcia CR, Markus RP, Madeira L. Tertian and quartan fevers: temporal regulation in malarial infection. J Biol Rhythms 2001;16: einstein 2003; 1:148
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