Método da Cobra: proposta de aprendizagem e ensino de mitos indígenas na escola brasileira. Mário Geraldo Rocha da Fonseca 1
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- Dalila de Sousa Veiga
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1 Método da Cobra: proposta de aprendizagem e ensino de mitos indígenas na escola brasileira. Mário Geraldo Rocha da Fonseca 1 Resumo: A cobra é um animal emblemático das culturas indígenas da parte baixa das Américas, como a dos grupos que vivem na Amazônia brasileira. O texto apresenta o projeto de pós-doutoramento do autor, que pretende tirar algumas consequências pedagógicas da afirmação anterior. Tal projeto visa produzir uma espécie de roteiro para ajudar educadores e estudantes da escola brasileira a se aproximarem dos mitos indígenas, respondendo, com isso, a exigência da lei que tornou obrigatório o ensino da cultura indígena na escola. Sem dúvida é avanço, mas acontece dentro de uma realidade que carece de material didático que possa estar em consonância com o que alguns antropólogos chamam de perpectivismo ameríndio, ou seja, a maneira própria a singular que os índios possuem de contarem ( e viverem) seus mitos. Palavras-chaves: cobra, mitos indígenas, perspectivismo ameríndio Resumen: La cobra(serpiente) es un animal emblemático de las culturas indígenas de la parte baja de las Américas, como los grupos que viven en la Amazonia brasileña. El artículo presenta el proyeto post-doctoral del autor, que desea tomar algunas consecuencias pedagógicas de la declaración anterior. Este proyecto tiene como objetivo producir una especie de hoja de ruta para ayudar a los educadores y estudiantes de la escuela para abordar los mitos indígenas brasileños, respondiendo, por tanto, la exigencia de la ley que hace obligatoria la enseñanza de la cultura indígena en la escuela. Sin duda es un avance, pero viene dentro una realidad que carece de material didáctico que pueden estar en línea con lo que algunos antropólogos llaman "perpectivismo amerindios", es decir, la forma singular que los indios tienen de contar ( y vivir) sus mitos. Palabras clave: cobra, mitos indígenas, perspectivismo amerindio Introdução O texto visa apresentar o projeto de pós doutoramento do autor, que pretende sistematizar um método de ensino e aprendizagem de mitos indígenas na escola brasileira. Vale lembrar que, como está em andamento, o referido projeto traça apenas o sua parte 1 Está desenvolvendo projeto de pós doutoramento, financiado pelo CNPq. Doutor em Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, onde também defendeu a sua dissertação de mestrado. mgeraldof@gmail.com
2 inicial, deixando clara que a exposição que ora se inicia é de caráter introdutório, ainda cheia de lacunas e perguntas por serem respondidas. Em linhas gerais, o projeto pretende atender à demanda surgida a partir da implantação da lei /08, que torna obrigatório o ensino de cultura indígena nas escolas públicas e privadas do Brasil. Assim, o projeto tem como finalidade última a produção de uma espécie de roteiro para ajudar os educadores e estudantes conhecerem um pouco mais os mitos indígenas, com base em uma metodologia que leve em consideração o que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro chama de perspectivismo ameríndio, ou seja, a maneira singular que os indígenas possuem de viverem e contarem seus mitos. O projeto, porém, deixa claro que, mesmo que não possa e não queira prescindir do material antropológico, são os elementos que aproximam as narrativas míticas de procedimentos que dizem respeito mais diretamente ao mundo das artes plásticas e literárias que serão privilegiados. Neste sentido, o diálogo com a arte e literatura, assim como é vivido e entendido por artistas ocidentais contemporâneos, será um recurso importante para aproximar a produção artística indígena da sensibilidade de professores e estudantes brasileiros, que pouco conhecem sobre a vida dos índios. Neste sentido, a figura da Cobra, animal considerado como um dos mais emblemáticos para expressar o modo singular de viver dos índios, e que, portanto, aparece de maneira muito forte nas suas cosmologias e mitologias, torna-se, no projeto, o vetor para expressar um perspectivismo ameríndio. A partir da fenomenologia daquele animal, que frequenta com bastante desenvoltura tanto o mundo da água, quanto da terra e do ar, e da maneira como é aproveitado nas narrativas míticas, os índios traçam uma marca ofídica para expressar o lugar específico e um pensamento próprio que gerou a Cobra como personagem mítica. Logo, o método que leva o seu nome é formado a partir destas três dimensões ( personagem, mapa e conceito), já que, tendo como ponto de partida os mitos, pretende evidenciar a relação das narrativas com a paisagem brasileira e com o chamado pensamento selvagem. Para colocar em evidência as três dimensões aludidas anteriormente, o projeto privilegia os mitos criados pelos índios que moram na região amazônica. O motivo é que, além da maioria dos índios brasileiros viverem naquela região, essa se tornou uma espécie de emblema dos desafios culturais, ecológicos e econômicos pelos quais passam a maioria das comunidades indígenas, cada vez mais conscientes do contato inevitável com dita sociedade
3 dos brancos. Esse diálogo, que sempre foi pautado de maneira a submeter a parte indígena aos padrões de pensamento e de expressão artística ocidentais, agora pede um novo lugar. O Método da Cobra, portanto, possui duas dimensões que se completam. Primeira: é um esforço para ajudar educadores e estudantes a se aproximarem dos mitos indígenas a partir de uma perspectiva que seja dos próprios índios, sabendo que, para isso, é preciso levar em conta a sensibilidade do outro lado, de quem vai ser educado nesta aproximação; logo, é um método de tradução de mitos indígenas de modo que possam ser compreendidos na sua beleza formal e cognitiva por uma platéia não-índia. Segundo: por meio do conhecimento dos mitos, que expressam a maneira indígena de viver, de pensar e se manifestar na arte, surge a possibilidade de promover um diálogo mais amplo, que reconheça nos índios protagonistas privilegiados para compreender a sociedade e cultura nas quais o próprio professor e estudante se encontram e das quais são parte. Justificativa: A partir de 2008, tornou-se obrigatório o ensino da cultura indígena nas escolas públicas e privadas brasileiras, mas o que se percebe é uma lamentação generalizada por parte de professores e estudantes de que o material disponível para o desenvolvimento daquela exigência padece de dois grandes problemas: de um lado, a escassa sistematização que ajude em uma abordagem didática a ser usada nas escolas, o que leva muitos educadores, como a professora Graça Graúna (UPE) a questionar: Para quem trabalha com formação de professores e não consegue encaminhar subsídios a respeito do tema, o que fazer?. Essa e outras indagações fazem parte da pesquisa Educação, Literatura e Direitos Humanos: visões indígenas da lei /08, publicada na revista Educação e Linguagem da Universidade Metodista de São Paulo,edição de dezembro de 2011, que aponta vários desafios que a obrigatoriedade do ensino da cultura indígena introduziu nas escolas. Ao problema colocado anteriormente, sobrepõe-se um outro, igualmente apontado por Graúna (2011), que faz o movimento aparentemente contrário ao do primeiro: a de que, embora as universidades brasileiras estejam produzindo consideráveis estudos sobre a cultura indígena, esses permanecem na sua versão estritamente acadêmica, inviabilizando uma transposição didática por parte de professores com poucos recursos para traduzir o jargão científico para a compreensão de estudantes que pouco (ou quase nada) possuem de conhecimento sobre a cultura indígena.
4 Por outro lado, mesmo com uma razoável produção acadêmica sobre o tema em questão, é notório a avaliação de que os parâmetros ali desenvolvidos tendem a apresentar a cultura indígena por uma perspectiva na qual os índios não se reconhecem ou os estudiosos mais atentos detectam falhas históricas e antropológicas. Daí justifica-se outra pergunta da professora Graça Graúna: Como traçar os objetivos em torno da lei, com base nos saberes ancestrais indígenas? (2011,p.237). Em outras palavras, o que falta para um melhor ensino e aprendizagem da cultura indígena nas escolas é um material que, se não responde totalmente ao avanço dos estudos históricos, antropológicos e literários dos e sobre os índios brasileiros, pelo menos demonstre claramente o esforço de se colocar dentro do que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro chama de perspectivismo ameríndio. Como explica Viveiros de Castro, o seu projeto etnográfico é um esforço intelectual e afetivo para entender as comunidades indígenas em seus próprios termos, isto é (e só pode ser), em relação às suas próprias relações: as relações que as constituem e que ela constitui, o que obviamente inclui suas relações com alteridade social, étnica e cosmológica (Cf. A Inconstância da Alma Selvagem,2002, p. 475). O que aqui se chama Método da Cobra nada mais é do que uma resposta com finalidade de apresentar didaticamente a cultura indígena em consonância com o projeto daqueles cujas propostas assumem claramente o desejo de percorrer uma viagem por dentro das tradições ameríndias, procurando neutralizar o olhar de quem sempre as viu como algo exótico. Os povos indígenas são vistos nos livros didáticos, de modo particular nos livros de História, de forma seletiva e estereotipada, confirma Fábio Pereira, índio Fulni-ô, cujo depoimento consta no estudo de Graça Graúna ( 2011,p. 240) Embasamento teórico Na perspectiva ameríndia, o poder da cobra não diz respeito somente à sua capacidade de frequentar a água, a terra e o ar. Um animal com esta capacidade já é, claro, muito poderoso. Mas, o que dizer de outro poder, aquele que serve para ampliar os exercícios poéticos e filosóficos do pensamento selvagem, que imagina e teoriza a potência ofídica para explicar a possibilidade de alguns seres, como a própria cobra, para os quais os reinos da natureza não são constituídos de fronteiras assim tão rígidas como acredita a nossa vã filosofia ocidental?
5 A vocação natural da cobra para o trânsito e para a viagem, portanto, não é, portanto, um elemento menor para as culturas indígenas. Aliás, como demonstra o antropólogo Claude Lévi-Strauss, na sua monumental Mitológicas, ( de modo particular em O Homem Nu, 2011,p.533) aquele animal é de natureza estruturante do pensamento selvagem, uma vez que se trata de uma maneira de pensar no qual a relação entre as coisas pensadas conta mais do que as próprias coisas pensadas. Por isso, a viagem da cobra é emblemática de uma viagem ainda mais emblemática do que seja as culturas indígenas e que se manifesta no relato dos pajés e xamãs, estes humanos que, como a cobra, possuem a capacidade de transitar por todos os mundos que constituem a natureza, segundo a tradição ameríndia. E,quando voltam das suas viagens pelos reinos mais diversos da natureza, o que contam os pajés indígenas? Contam que os humanos, por mais que desconheçam que os outros mundos são também povoados por gente, estão sendo convocados para este diálogo entre subjetividades humanas e não-humanas. É esta a lição mais importante do perspectivismo ameríndio de Viveiros de Castro: de que, ao contrário do que prega certo multiculturalismo, para o pensamento indígena não é o homem que foi evolutivamente se distanciando da sua natureza animal originária - e por isso existem várias culturas com uma mesma natureza de fundo- mas foram os animais que, aos poucos, foram perdendo a sua humanidade de fundo e, desta forma, na perspectiva indígena, é a natureza que é plural. O antropólogo, prefere falar, portanto, em multinaturalismo querendo dizer que, no fundo ( o xamã, como a cobra, vê e frequenta exatamente o fundo ) todos são gente, e são as naturezas desta humanidade que são diferentes e com elas nos cabe entender e dialogar. Prova disso, sustenta Viveiros de Castro (2002), é a maneira como muitos mitos indígenas começam: Naquele tempo os animais eram gente. O Método da Cobra pretende tirar consequências desta que se pode entender como máxima dos mitos indígenas, segundo Viveiros de Castro (2002) : de que, no princípio, tudo era gente e que, se agora existem outros seres que parecem não sê-lo, isso implica que o desejo de ser humano (ou de voltar a sê-lo) é desejo de todo ser existente. O mito, portanto, (re)conta um tempo em que tal desejo era (ou pode vir a ser) real. Logo, o alcance deste método para o ensino da cultura indígena tem um apelo profundamente ético em um mundo em que se discutem, quase desesperadamente, as maneiras do homem-humano de se relacionar com os outros seres da natureza, ou melhor, com os humanos - outros. Ora, os mitos podem servir para dizer que os demais seres não-humanos da natureza estão querendo
6 nos ensinar a linguagem deles, que, aliás, um dia sabíamos e que, por isso, podemos, sim, voltar a saber. 5-Conclusão provisória: O material que a pesquisa pretende produzir, ele mesmo, pretende ser apresentado em forma de mito, já que, como defende Lévi-Strauss, um mito nada mais é do que a versão de um outro mito que, por sua vez, remete a uma outra versão e assim por diante. Os mitos são intermináveis, diz o antropólogo ( Cf. O Cru e o Cozido,2004,p.24, grifo do autor). Logo, não pretende reproduzir tão somente o que os índios contam como parte da tradição que tenta explicar o modo próprio deles estarem no mundo. Mas, com recursos das artes contemporâneas, em uma parceria com artistas plásticos e do teatro, criar uma metodologia de modo a fazer o interlocutor sentir, pela leitura, pelo desenho, pela encenação, um pouco da atmosfera que liga os ameríndios a uma maneira muito orgânica de viver. Ou seja, o mito indígena pode proporcionar uma viagem pela cultura dos índios, que, por sua vez, nos levará a outra mais ampla, que se pode chamar Brasil. E ainda pode continuar na viagem pessoal de quem leu, ouviu e aprendeu uma sabedoria ancestral! 6-Bibliografia ALMEIDA, Maria Inês de. Desocidentada: experiência literária em terra indígena. Belo Horizonte: Editora UFMG,2009 GUIMARÃES, Daniel W. Bueno. De que se faz o caminho-tradução e leitura de cantos Kaxinawa.2002.Dissertação de mestrado em Teorias da Literatura e Literatura Brasileira.- Faculdade de Letras da Universidade Federal Fluminense. Niterói,2002 GRAÚNA, Graça. Educação, Literatura e Direitos Humanos: visões indígenas da lei /08. In: Revista Educação e Linguagem. São Paulo: editora da Universidade Metodista Paulista, v.14, n 23/24, dez pp KAXINAWA. Huni Meka: cantos do nixi pãe. Rio Branco: Comissão Pró-Índio,2007
7 Shenipabu Miyui: história dos antigos/ Organização dos Professores Indígenas do Acre. Belo Horizonte: Ed. UFMG, LÉVI-STRAUSS, Claude. O Cru e o Cozido ( Mitológicas 1). São Paulo: CosacNaify, O Homem Nu (Mitológicas 4). São Paulo: CosacNaify,2011. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e Multinaturalismo na América Indígena. In: A Inconstância da Alma Selvagem e outros ensaios de Antropologia.São Paulo: Cosac & Naif, 2002, p
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