A QUESITAÇÃO DA LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA
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- Luiz Fernando Deluca de Lacerda
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1 A QUESITAÇÃO DA LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA 1. Introdução David Medina da Silva Promotor de Justiça Muitas críticas se opõem ao Tribunal do Júri, desde as mais simplórias, como a falta de conhecimento técnico dos jurados, o que cede facilmente ao argumento de que sequer dos legisladores se exige formação jurídica, até as mais pertinentes, que não desafiam a instituição do júri, mas suas características, como a complexidade do modelo de votação, por exemplo. De fato, os quesitos transformam o júri, muitas vezes, em algo incompreensível até para os mais experientes. Nesse sentido, entre tantos temas espinhosos, avulta a discussão sobre os quesitos relativos à tese de legítima defesa putativa. A legítima defesa putativa é uma das teses mais utilizadas pela defesa de acusados perante o Tribunal do Júri. Adotada a teoria limitada da culpabilidade 1,que distingue a descriminante putativa por erro de tipo da descriminante putativa por erro de proibição indireto 2, é mister acolher uma fórmula de quesitação que possibilite a integral apreciação da matéria pelos jurados, sob pena de se recusar aplicação ao direito material. O problema maior reside na argüição, pela defesa, do erro derivado de culpa, previsto na parte final do art. 20, 1º, do Código Penal. Ocorre que a quesitação tradicional não permite a verificação dessa espécie de erro, considerado erro de tipo permissivo inescusável, que, segundo a fórmula legal, permite a punição por crime culposo, se previsto em lei, operando hipótese desclassificatória. Impõe-se, portanto, urgente revisão do modelo tradicional. 2. Legítima defesa putativa por erro de tipo 1 Malgrado certo dissenso doutrinário, é isso que consta no item 19 da exposição de motivos da nova parte geral do Código Penal. Ainda, conforme a orientação majoritária: A posição assumida pelo legislador de 1984 representou, no entanto, uma recusa à teoria extremada da culpabilidade e a adesão explícita à teoria limitada da culpabilidade. Embora ambas as teorias partam das mesmas idéias fundamentais (dolo na ação típica final e consciência da ilicitude, como elemento da culpabilidade) e tenham ainda, em comum, a mesma raiz finalista, força é convir que a teoria legalmente consagrada dá um tratamento diferenciado às subespécies do erro incidentes sobre as causas de justificação. Com efeito, se o erro sobre a existência ou sobre os limites da excludente de ilicitude se traduz em erro de proibição, igual conclusão não se mostra válida em relação ao erro sobre os pressupostos fáticos dessas excludentes (Adriano Marrey et alii, Teoria e Prática do Júri, 7. ed., São Paulo: RT, 2000, pp ). 2 Diferentemente da teoria extremada da culpabilidade, que considera que uma descriminante putativa sempre decorre de erro sobre a ilicitude do fato.
2 A legítima defesa putativa, como as demais descriminantes imaginárias, é forma especial de erro com relevância jurídico-penal. Pode consubstanciar um erro sobre elemento do tipo permissivo, o que é mais comum, ou constituir um erro de proibição indireto 3. Consabidamente, o erro de tipo constitui, sempre, um defeito na representação do agente, isto é, um problema cognitivo. O agente tem uma percepção errônea da realidade. Se essa falsa representação coincide com um elemento do tipo penal incriminador (ex.: matar uma pessoa, pensando tratar-se de um animal), tem-se um erro de tipo incriminador. Como o dolo deve abranger todos os elementos do tipo penal, opera-se a exclusão do dolo, já que este não se configura sem seus dois elementos estruturais: representação e vontade 4. Se as circunstâncias indicam que o agente podia, com maior diligência, evitar o erro, surge o erro evitável, vencível ou inescusável, permitindo-se a punição por crime culposo, se previsto em lei. Se a falsa percepção coincide com um elemento do tipo permissivo, surge, então, a descriminante putativa. É o que ocorre, por exemplo, no clássico exemplo de quem, diante de um gesto brusco da vítima, com quem trava discussão, supõe que esta sacará uma arma e, imediatamente, culmina por alvejála, errando sobre a legítima defesa. Tal erro é, também, um defeito de representação, só que este não recai sobre o tipo incriminador, mas sobre o tipo permissivo. Erro de tipo permissivo, portanto. Ocorre que, nesse caso, não há afetação do dolo, pois o agente conhece perfeitamente os elementos do tipo incriminador, já que seu erro só ocorre em relação ao tipo permissivo. Sendo esse erro invencível, ou seja, inevitável, há isenção de pena. Todavia, se o agente podia, com maior diligência, evitar o erro, diz-se que o erro deriva de culpa (omissão do dever de cuidado objetivo) e a pena aplicável deve ser a do crime culposo. Trata-se, pois, de um crime doloso punido como se culposo fosse. Essa culpa ficcional é conhecida como culpa imprópria, pois não é, genuinamente, forma culposa, e sim um crime doloso com pena de crime culposo Análise das espécies de erro nas descriminantes putativas por erro de tipo permissivo 3 Recomenda-se consultar Erro jurídico-penal: culpabilidade, erro de tipo, erro de proibição, Cezar Roberto Bitencourt, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal, v. 1, Rio de Janeiro: Forense, 1953, pp. 109 e Consoante Damásio de Jesus: Na culpa imprópria, também denominada culpa por extensão, assimilação ou equiparação, o resultado é previsto e querido pelo agente, que labora em erro de tipo inescusável ou vencível. A denominação é incorreta, uma vez que na chamada culpa imprópria temos, na verdade, um crime doloso a que o legislador aplica a pena do crime culposo (in Direito Penal, v. 1, 15. ed., São Paulo: Saraiva, 1991, 259).
3 O artigo 20, 1º, do CP, trata de duas formas de erro na descriminante: a) erro plenamente justificado pelas circunstâncias (erro invencível, inevitável, escusável), que impõe isenção de pena (art. 20, 1, primeira parte); b) erro derivado de culpa (erro vencível, evitável, inescusável), que determina a punição por crime culposo, se previsto em lei, ou seja, a culpa imprópria (art. 20, 1, segunda parte).. 4. A quesitação tradicional da legítima defesa putativa Leal 6 : Costuma-se adotar a seguinte quesitação, proposta por Saulo Brum 1º) Fato principal (conforme libelo). 2º) O pertinente ao nexo de causalidade (letalidade ou tentativa, se for o caso). 3º) O réu, em conseqüência de erro plenamente justificável pela circunstância de a vítima ter feito um gesto, levando a mão à cintura, dando-lhe assim a impressão de que iria puxar uma arma, supôs estar agindo em defesa de sua pessoa? 4º) Essa suposta agressão era atual ou iminente? 5º) Essa suposta agressão era injusta? 6º) O réu usou, moderadamente,dos meios necessários para repelir essa suposta agressão? 7º) O réu excedeu, dolosamente, os limites da suposta legítima defesa? 8º) O réu excedeu, culposamente, os limites da suposta legítima defesa? 7 Essa formulação não permite a verificação da culpa imprópria, limitando, portanto, a atuação do direito material, de modo incompatível com a natureza instrumental do processo penal. Mesmo os autores que recomendam o quesito sobre o erro derivado de culpa ao final ( O réu cometeu o crime por erro derivado de culpa ) 8, incorrem num problema de contradição, já que a afirmação do erro derivado de culpa pressupõe a prévia afirmação do quesito relativo ao 6 Júri popular, 4.ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p Não há consenso entre os autores que apresentam esse modelo. Solimar Soares da Silva (Questões Práticas do Tribunal do Júri, 2 ed., Belo Horizonte: Del Rei, p. 222), assim como Tourinho Filho (Processo Penal, 18. ed., São Paulo: Saraiva, 1997, p. 118), entendem pela realização, desde que negada a moderação, do quesito sobre o excesso culposo, tão somente. Hermínio Marques Porto segue a mesma senda, mas introduz, ao final, o quesito do erro derivado de culpa ( O réu cometeu o crime por erro derivado de culpa? ), que resta prejudicado se for afirmado o excesso culposo (Júri, 11.ed., São Paulo: Saraiva, 2005, p. 253). 8 É o caso de Hermíno Marques Porto, conforme nota anterior.
4 erro plenamente justificado pelas circunstâncias(3. ). Ora, um erro não pode ser, ao mesmo tempo, plenamente justificado pelas circunstâncias (escusável) e derivado de culpa (inescusável). Outra é a fórmula sugerida por Aramis Nassif 9 : 1º) Fato principal (conforme libelo). 2º) O pertinente ao nexo de causalidade (letalidade ou tentativa, se for o caso). 3º) O réu cometeu o crime, supondo, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias de... (levar à mão à cintura, por exemplo), estar diante de uma agressão à sua pessoa (ou de terceiro)? 4º) Existindo essa agressão, seria lícito o procedimento do réu? 5º) O erro do réu derivou de culpa? Embora solucione o problema da culpa imprópria (5 quesito), esse modelo apresenta dois inconvenientes: a) não permite aquilatar, na íntegra, os requisitos da legítima defesa, que, no plano da tipicidade subjetiva, tirante o erro, deve ser idêntica à legítima defesa real 10 ; b) não permite verificação do excesso, que, se for doloso, torna irrelevante o erro sobre os pressupostos fáticos da causa de justificação, já que se trata de um novo processo mental, no qual o erro inicial deixa de existir para dar lugar a um excesso intencional. Além disso, tal modelo padece de grave contradição, pelo fato de questionar se o agente agiu por erro plenamente justificado pelas circunstâncias e, mais adiante, perguntar ao júri se o erro derivou de culpa.ora, se o júri afirma o erro plenamente justificado pelas circunstâncias, a isenção de pena decorre ex vi lege. O mesmo erro não pode ser, ao mesmo tempo, um erro plenamente justificado pelas circunstâncias (inevitável) e derivado de culpa (evitável). Seria considerar o erro, a um só tempo, escusável e inescusável. 5. A solução necessária A solução do impasse sobredito, para atuação integral do direito material, impõe a satisfação das seguintes etapas: a verificar se houve erro; b verificar se a ação do agente, não fosse o erro, seria legítima; c verificar se o erro é escusável, com isenção de pena, ou inescusável, com apenamento de crime culposo (culpa imprópria). o caso). Com efeito, propõe-se a seguinte quesitação: 1º) Fato principal (conforme libelo). 2º) O pertinente ao nexo de causalidade (letalidade ou tentativa, se for 9 O júri objetivo, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p É por isso que, na legítima defesa real, os requisitos do instituto são desdobrados em quesitos específicos.
5 3º) O réu praticou o fato por erro, supondo estar diante de uma agressão à sua pessoa (ou terceiro)? 4º) Essa suposta agressão era injusta? 5º) Essa suposta agressão era atual ou iminente? 6º) O réu usou, moderadamente,dos meios necessários para repelir essa suposta agressão? 7º) O erro do réu foi plenamente justificado pelas circunstâncias de... (a vítima fazer movimento brusco, levar a mão à cintura etc.)? Assim, essencial para o acolhimento da descriminante putativa, é o reconhecimento pelos jurados de que houve um erro (3º). Negado o erro, não se cogita a existência da descriminante, pois se assume que o réu não errou. Afirmado o erro, é mister perquirir se, sem o erro, a ação seria uma legítima defesa, devendo ser examinados seus requisitos, um a um, em formulações distintas (4º, 5º, 6º). Finalmente, é mister classificar o erro: evitável ou inevitável. Afirmado que foi plenamente justificado pelas circunstâncias (7º), o réu deve ser absolvido, já que, segundo a lei, há isenção de pena. Negado o quesito, tem-se a desclassificação imprópria e o réu deve ser condenado pelo homicídio culposo. Trata-se de forma especial de desclassificação imprópria, já que os jurados, ao entenderem tratar-se de erro evitável, condenam por homicídio doloso, ao qual se aplica a pena de crime culposo (culpa imprópria). 6. A questão do excesso Não deve causar perplexidade, no modelo ora proposto, a negativa dos jurados ao quesito sobre a moderação na suposta legítima defesa. Nesse caso, deve o juiz perquirir sobre a existência do excesso doloso ou culposo, tal como já ocorre na prática forense. Afirmado o excesso, está afirmada a irrelevância do erro sobre a agressão, em face da conduta dolosa ou culposa superveniente. Se A, imaginando que será agredido por B, desfere-lhe um disparo, estará em erro que poderá ou não ser plenamente justificado pelas circunstâncias. Todavia, se efetuar disparos desnecessários, quando subjetivamente não identifica mais agressão, o erro inicial perde relevância, dando margem a um crime doloso ou culposo, em razão do excesso, salvo o caso de serem negados ambos os quesitos da espécie Conclusão 11 Com exclusão do excesso culposo, o réu será absolvido, pois o excesso anteriormente reconhecido foi considerado puramente acidental (Adriano Marrey et alii, Teoria e Prática do Júri, op. cit., p. 567).
6 É razoável crer que a fórmula ora proposta constitui salutar aprimoramento da quesitação da legítima defesa putativa, uma vez que responde aos problemas apontados nos modelos usuais, relativamente à verificação da culpa imprópria, dos requisitos da legítima defesa putativa e do respectivo excesso. O esforço pela superação das dificuldades e melhoria sistêmica constitui compromisso de todos quantos se proponham ao fiel cumprimento de seus deveres profissionais. Não há dúvida de que a quesitação proposta, em detrimento das fórmulas tradicionais, expressa esse compromisso, procurando contribuir para o aprimoramento dos julgamentos pelo júri, cuja especial complexidade é consenso no meio forense. Não se oponha resistência à fórmula proposta ao argumento de que favorece a atuação defensiva. O ideal científico não se coaduna com o estigma da parcialidade. Por outro lado, a mais efetiva atuação do direito material é desiderato transcendente a questões ideológicas ou institucionais. Só é legítima a condenação em que a defesa for bem e plenamente exercida, calando-se os críticos que acusam o júri de julgar pelos dotes em vez dos dados do process.uma acusação não é um massacre e não conhece rancores. É fruto da incondicional crença na justiça, na supremacia das leis e no valor imortal do direito.uma acusação bem exercida, com respeito às leis e à Constituição, é uma homenagem de cada acusador à grandeza histórica do Tribunal do Júri.
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