Aula de literatura e estudos de adaptação: diferentes leituras do romance As Meninas
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- Felipe Angelim
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1 Aula de literatura e estudos de adaptação: diferentes leituras do romance As Meninas Introdução Este trabalho é um relato de estágio de docência em Literatura, realizado no primeiro semestre de 2018 para o curso de Letras da UFRGS. O projeto foi aplicado no Colégio de Aplicação - UFRGS, para uma turma de terceiro ano do Ensino Médio. O projeto teve início nas observações de aula que fizemos, acompanhando a turma nos períodos de literatura e também nos de matemática. A observação foi importante porque conseguimos entender um pouco da dinâmica da turma, das relações entre os alunos para assim conseguir propor algo que funcionasse melhor para aquele grupo. O professor de literatura titular nos recebeu prontamente e sempre esteve aberto a conversar sobre nossas ideias. Por sugestão dele, e de um projeto interdisciplinar entre as disciplinas de história e sociologia, optamos por trabalhar com o romance de Lygia Fagundes Telles, As meninas (1973). Neste relato, vamos apresentar o recorte que fizemos para trabalhar com As meninas, bem como algumas tomadas de decisões. No entanto, há uma ressalva a ser feita: o recorte do nosso trabalho partiu de um projeto no qual os alunos já estavam desenvolvendo na disciplina de literatura: a roteirização de curtas. A partir disso, pensamos no que poderia ser trabalhado sobre adaptações do par literatura-cinema, a fim de aprofundar e contribuir para os debates que já estavam sendo realizados pela turma. Questões como fidelidade à obra original surgiram com mais força, mas também pensamos em ressaltar durante as aulas que uma adaptação é, sobretudo, uma leitura da obra. Muito do que planejamos teve de ser repensado para um período menor de tempo, devido ao curto período de estágio, somado à suspensão de aulas entre outros eventos na escola. No entanto, esse projeto abre portas para um trabalho mais amplo acerca de roteirização e adaptação cinematográfica. Aqui, nos deteremos em falar Page48
2 sobre o que foi possível concretizar em sala de aula e como a experiência se desenvolveu. Desenvolvimento do projeto Para melhor trabalharmos o projeto, o dividimos em três módulos: a) leitura e análise do romance As meninas (1973), b) exibição e análise do filme As meninas (1995), c) análise comparativa entre o romance e o longa-metragem, com finalidade de sugestões de readaptação de trecho do romance. A nossa escolha em trabalhar com a adaptação do romance vem com o objetivo de contribuir para o trabalho da turma e do professor titular, que consiste em um projeto que dura todo o ano letivo e visa a elaboração de curtas-metragens adaptados de contos de Nelson Rodrigues. Para fins de melhor explicarmos o desenvolvimento do projeto, também o dividiremos desta forma neste relato. Deixando de fora a primeira aula, da qual falaremos aqui. Na primeira aula, fizemos uma dinâmica para nos apresentarmos aos alunos e os alunos se apresentarem para nós. Os alunos, em duplas, iriam apresentar o colega da dupla, e nós nos apresentaríamos uma a outra. Depois, apresentamos o projeto e fizemos combinações de avaliação, não só das tarefas, mas também da participação e postura em aula. Dado esse primeiro momento, contextualizamos o contexto da produção do livro: a ditadura. E também as influências estéticas da época: o pósmodernismo. O terceiro momento de aula, já no período seguinte, trouxemos o conto Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector, para discutirmos em aula. Primeiro discutimos o que felicidade clandestina pode significar, então os alunos levantaram significados. Os alunos realizaram uma leitura silenciosa, orientados para observar: a) comprimento das frases; b) voz da narradora: com quem ela tá falando? c) ordem dos acontecimentos; d) felicidade clandestina é o que havíamos pensado? Page49
3 Figura 1: definição dos alunos de felicidade clandestina, juntamente com algumas respostas das observações pós-leitura. Fonte: arquivo pessoal das autoras. Figura 2: orientação de leitura com as observações que os alunos fizeram sobre elas. Fonte: arquivo pessoal das autoras. Page50
4 O primeiro passo é ler Tratando-se de um projeto de literatura, entendemos que não há possibilidade de falar do livro sem o ler, nem de estudá-lo sem discutir a leitura. Portanto, as primeiras aulas foram reservadas para discussão do livro. A primeira aula foi dividida em dois momentos. No primeiro, os alunos deveriam reconstruir o enredo, contando quem eles já conheciam, o que cada uma das personagens fazia, se elas tinham algum vício de linguagem, e o que eles haviam achado da leitura. Entretanto, poucos alunos haviam lido os capítulos exigidos para aquela aula. Então a aula acabou ficando mais expositiva. Isso não resultou em grandes problemas, o importante é que o enredo fosse construído e que ficasse claro para todos quem eram as personagens. Ao final deste primeiro momento, mesmo os alunos que não haviam lido, sabiam identificar quem era quem e porquê. Sistematizamos no quadro as descobertas sobre as personagens: Figura 3: sistematização de enredo e personagens. Fonte: arquivo pessoal das autoras. No segundo momento da aula, selecionamos trechos para os alunos analisarem conforme o que revisamos da vida de cada personagem. Eles deviam identificar quem era a narradora daquele trecho e descobrir o que estava acontecendo naquele trecho, Page51
5 o que estava sendo contado. A turma ficou dividida em seis grupos, dois grupos para cada personagem. Através dessa atividade, foi possível identificar se os alunos conseguiram acompanhar o momento anterior mesmo sem ter lido o livro. O mais importante desta aula foi levar os trechos dos textos para os alunos. A dinâmica da turma nos indicou que a leitura seria realizada por poucos alunos, mas como dissemos acima, a leitura é fundamental em uma aula de literatura. Optamos por ir reconstruindo aula a aula a identidade das personagens e como isso se relaciona no romance e no mundo, e fizemos a maior parte desse trabalho por leitura de trechos e discussão em grupos em sala de aula. Oficina: Os altos silêncios em As meninas, de Lygia Fagundes Telles. Como parte da Semana de Línguas do Colégio de Aplicação, realizamos em horário de aula uma oficina cujo objetivo era aprofundar a discussão sobre os assuntos trabalhados pelo romance e seu contexto de publicação. O tema geral da Semana de Línguas, Para o que você se cala?, nos inspirou a analisar com os alunos o tratamento que a obra de Telles dá a questões como machismo, desigualdade social e violência de estado. O enredo de As meninas apresenta situações de abuso sexual, aborto e tortura no contexto da ditadura militar no Brasil; dessa forma, propusemos uma reflexão sobre os assuntos que muitas vezes são silenciados em nossa sociedade. A oficina foi realizada a partir da leitura de trechos do romance que apresentam situações traumáticas e silenciadas na história das personagens. Em grupos, os alunos deveriam ler as partes selecionadas e identificar o que estava sendo dito - quais os acontecimentos relatados pelas narradoras. Então, solicitamos aos grupos que comentassem com a turma o que havia lhes chamado a atenção enquanto liam; a partir dos eventos identificados, discutimos o silenciamento das situações apresentadas pelo livro. Apontamos como o romance expressa a dificuldade em retratar as violências sofridas pelas protagonistas por meio da narração fragmentada e, em sua maior parte, introspectiva. Page52
6 No segundo momento de aula, a discussão se centrou no contexto de publicação de As meninas. Chamando atenção para o ano de 1973, data da primeira edição do romance, perguntamos aos alunos o que estava acontecendo no Brasil nesse período; eles mencionaram a ditadura militar, e mencionaram um pouco do que sabiam sobre o período. A partir de seus comentários sobre censura e repressão, explicitamos aspectos estruturais da obra. Demonstramos a divisão de capítulos, que apresenta mais explicitamente a narração da personagem que expressa ideologia burguesa, enquanto os capítulos narrados por Lia, militante de esquerda, são curtos e escondidos no livro. Referimos também às discussões anteriormente realizadas em aula sobre a linguagem confusa e fragmentada do romance. Propusemos uma reflexão sobre as escolhas estéticas da narrativa como uma estratégia utilizada pela autora para questionar valores sociais, sem que sua obra fosse censurada e apagada pela ditadura. O que é uma adaptação? Elaborar um projeto que vise falar de adaptação no par literatura-cinema implica mais do que a leitura do livro, implica, também, em assistir ao filme. Nesse caso, assistir a um filme tem propósito pedagógico e, portanto, deve ser guiado. Para que os alunos prestassem atenção nos aspectos que gostaríamos que eles olhassem, elaboramos um roteiro de perguntas para eles responderem a partir do filme. As respostas do roteiro constituiriam parte da avaliação, mas também teriam papel fundamental na aula seguinte de finalização do projeto. As perguntas, mesmo as de caráter mais subjetivo, foram elaboradas com a intenção de trazer à tona uma discussão sobre as particularidades da narrativa cinematográfica, e explicitar alguns aspectos da linguagem audiovisual. Page53
7 Figura 4: roteiro de perguntas As meninas (1995). Fonte: arquivo pessoal das autoras Após lermos com eles e explicarmos as questões do roteiro, exibimos o filme em aula. Os alunos deveriam trazer na aula seguinte o roteiro respondido. A aula seguinte foi em um sábado letivo para recuperação dos dias de greve. Seria o dia de finalização do projeto, onde os alunos produziriam um pequeno texto descrevendo como eles adaptariam cenas selecionadas do livro. A partir das respostas escritas por eles, a turma se dividiu em pequenos grupos para discutir especialmente as questões 4, 5 e 6. Para depois fazermos as discussões em grande grupo. Considerando as reflexões feitas pelos alunos, buscamos trabalhar com a noção de que uma adaptação é um trabalho de tradução. Filmes e livros contam com recursos diferentes para construir uma narrativa, e portanto a adaptação de uma obra literária sempre implica em escolhas. Buscando apoio nas prévias discussões feitas em aula, comparamos as duas obras a fim de demonstrar como o filme apresenta uma das leituras possíveis de As meninas, e portanto prioriza certos aspectos da narrativa, criando assim uma história própria. Solicitamos que a turma se dividisse em grupos e cada um recebeu um trecho do romance, sobre o qual deveriam pensar e descrever: qual a sua leitura daquela Page54
8 cena? Como a adaptariam para o cinema, como parte de um longa-metragem? Quais recursos utilizariam, e como? Encerramos o projeto discutindo o trabalho que os alunos estavam realizando na produção de seus curtas-metragens, ouvindo suas leituras dos contos e debatendo com o grupo quais recursos áudio-visuais poderiam auxiliar na construção destas narrativas. Considerações Finais Este estágio nos mostrou, sobretudo, a necessidade de se ter um projeto que faça sentido para o grupo que estará o realizando. E que o projeto mostre que haja relação entre as aulas. Buscamos construir junto com os alunos a noção de processo, de como uma aula estava diretamente relacionada com o andamento da outra. Dentro do possível, sentimos que ao final do projeto, as pontas que ainda estavam soltas para os alunos foram atadas. E percebemos que eles conseguiram ver como o estudo de adaptação da obra de Lygia Fagundes Telles poderia ser aplicada nos curtas que eles estavam produzindo. O mais importante, no entanto, foi o trabalho com o texto literário. Nas primeiras aulas, era visível o desinteresse dos alunos pela obra a ser trabalhada. Mas o trabalho com trechos em sala de aula e as discussões produzidas mostraram para eles o refinamento do romance de Telles. Especialmente no dia da oficina, em que debatemos o contexto de produção, os próprios alunos concluíram que o texto era muito refinado para ter passado pela censura da ditadura militar. Mais do que isso, conseguimos trabalhar leitura com eles, mesmo que eles não estivessem lendo em casa. Levar trechos para fazer discussão em pequenos grupos e com o grande grupo, mostrava e provava para os alunos que analisar aquele texto fazia sentido. Page55
9 Orientação teórica/bibliografia BOTELHO, Amara Cristina de Barros e Silva; LEITE Caio Victor Lima Cavalcanti. Gênero e Crítica Social em As Meninas de Lygia Fagundes Telles. In Linguagem - Estudos e Pesquisas Vol. 19, n. 02, p , jul./dez by UFG/Regional Catalão - doi: /lep.v19i CANDIDO, Antonio. O direito à literatura In Vários escritos. 3ª ed.. revista e ampliada. São Paulo: Duas Cidades, FERNANDES, Rosa Maria Valente; SANTOS, Thais Morgado dos. Por que a ditadura militar não censurou As meninas? Leopoldianum, Santos, n. 116, 117, 118, p.75-97, Contínuo. COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. São Paulo, Contexto, 2007 HATTNHER, Álvaro Luiz. Quem mexeu no meu texto In Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.16, 2010 LUCKESI, Cipriano Carlos. Avaliação na aprendizagem escolar: estudos e proposições. São Paulo: Cortez, 2011, 22ed. SCHNEUWLY, Bernard.; DOLZ, Joaquim. Os gêneros escolares - das práticas de linguagem ao objeto de ensino. In SCHNEUWLY e DOLZ. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, p SIMÕES, Luciene Juliano (org) et al. Leitura e autoria: planejamento em Língua Portuguesa e Literatura. Erechim: Edelbra TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira ZOLIN, Lúcia Osana. Pós-Colonialismo, Feminismo e Construção de Identidades na Ficção Brasileira Contemporânea Escrita por Mulheres. In Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.21, A literatura de autoria feminina brasileira no contexto da pós-modernidade. In Ipotesi, Juiz de Fora, v. 13, n. 2, p , jul./dez Page56
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